Julgando que os fiéis desperdiçavam seu tempo, as autoridades da época proibiram todos os jogos que exaltavam o corpo. Nem os torneios de cavalaria escaparam dessa regulamentação
Biblioteca do Monastério de Escorial, Madri / (C) Gianni Dagliorti / The Archive / AFP
O jogo de pelota, praticado na Espanha medieval, era muito parecido com a versão do soule com bastão, muito popular na França no mesmo período. Jogo de pelota ao ar livre, ilustração do manuscrito As cantigas de Santa Maria, escola espanhola, séc. XII.
por Jean Verdon
Em 393, o imperador romano Teodósio (347-395) aboliu os Jogos Olímpicos, que havia mais de um milênio reuniam atletas de várias partes do mundo grego. Foi o ponto final de um longo processo de decadência das competições esportivas na Antiguidade clássica, que vinham sendo desvirtuadas havia já muito tempo por um profissionalismo crescente e pela falta de interesse dos romanos, que tinham conquistado a Grécia.
Foi o cristianismo, no entanto, que deu o golpe fatal nesses jogos, que exaltavam o corpo e, ligados ao paganismo, constituíam um perigo para a nova religião, transformada em credo oficial do Império Romano por Teodósio. A vida terrestre, acreditavam os seguidores de Cristo, não era mais que um breve interlúdio antes de o homem alcançar a vida eterna. O corpo não podia ser exaltado.
Ao longo da Idade Média, as autoridades eclesiásticas e leigas condenaram com frequência os jogos esportivos, na tentativa de evitar que os fiéis desperdiçassem um tempo que poderiam aproveitar melhor dedicando-se a orações ou a diversos trabalhos. Desse modo, em 1369 o rei Carlos V da França (1338-1380) proibiu quase todos os esportes, principalmente o soule (jogo de bola muito popular na França medieval) e o jogo da pela (ancestral do tênis praticado no período). Em contrapartida, incentivava a prática do arco e flecha e o treinamento com a besta. Na época da Guerra dos Cem Anos (1337-1453), convinha se preparar para o combate.
O termo “esporte”, que data de 1828, tem sua origem em uma palavra do francês antigo, desport, que significa “divertimento”. O homem não pode ter o espírito e o corpo continuamente tensos. Segundo Santo Tomás de Aquino (1225-1274), o divertimento e o repouso não eram fins em si, mas meios para se preparar para a ação. Ele afirma que “o homem moderado deseja coisas agradáveis para conservar sua saúde e manter seu corpo em boa forma”. Assim, o cristianismo, que enterrou o esporte antigo, de modo paradoxal abriria caminho para o surgimento do esporte moderno.
REPRODUÇÃO
Equipamentos utilizados no jogo da pela, ancestral do tênis surgido no século XIII. Ilustração de uma edição resumida da Enciclopédia de Diderot e d’Alembert, gravura em cobre, Pietro Scattaglia, séc. XVIII
O poeta Eustache Deschamps, que viveu na época do reinado de Carlos VI na França (1380-1422), recomendava a seus compatriotas que exercitassem o corpo nos campos, florestas e prados e, se o tempo não permitisse, treinassem em casa. Havia, porém, uma grande diferença entre os esportes praticados na Antiguidade e na Idade Média. Enquanto na Grécia clássica as competições eram individuais e reservadas à classe dominante, na França medieval os jogos eram coletivos e abertos a todas as classes sociais.
Como o cristianismo valorizava a alma em detrimento do corpo, não havia espaço para o ressurgimento dos Jogos Olímpicos (o que só aconteceria em 1896), mas ao longo da Idade Média os homens nunca deixaram de treinar o corpo e se interessar por exercícios violentos. Exemplo disso era o soule, o jogo mais popular da Idade Média, que consistia em bater em uma bola de couro ou de madeira com os punhos, com os pés ou com bastões curvos. O primeiro registro histórico conhecido da prática data do final do século XII, e a partir do XIV as menções se tornaram cada vez mais frequentes nos documentos.
Não conhecemos as regras exatas; sabe-se apenas que o jogador devia pegar a bola e levá-la o mais rápido possível até um lugar determinado, evitando que os outros participantes a pegassem. Na modalidade com taco, os competidores deviam bater na bola com um bastão curvo, mandá-la o mais longe possível, depois correr e bater nela novamente até atingir o objetivo.
Cada partida era disputada por duas equipes, mas só uma pessoa a vencia, o que explica a violência. Um documento de 1374 afirma que era preciso tomar a bola, não importava como: “osoule permitia socos, pontapés, golpes violentos à vontade”. A prática exigia, portanto, bom preparo físico.
Outro esporte em voga na Idade Média era o jogo da pela, ancestral do tênis moderno. As primeiras menções datam do século XIII, e os praticantes eram essencialmente aristocratas. Em seus primórdios consistia em lançar uma bola de couro ou lã, chamada de pela, com a palma da mão; daí o nome original em francês – jeu de paume (jogo de palma).
Por volta do fim do século XV, a palma da mão foi substituída pela raquete ou pelo bastão. No final da Idade Média, os dois tipos de jogo coexistiam. Quando se usava a mão, não era preciso um lugar especial, mas o uso de acessórios exigia um local adequado para a prática. No século XV e no início do XVI, o jogo passou a ser realizado em uma quadra coberta de 25 a 30 metros de comprimento por 8 a 10 metros de largura.
As partidas eram geralmente disputadas por dois jogadores, cada um procurando impedir o adversário de recuperar a bola e devolvê-la. O número de participantes, porém, podia chegar a quatro, seis ou até oito.
Por fim, outros dois “jogos” faziam muito sucesso na Idade Média: os torneios de cavalaria, em que vários combatentes se enfrentavam, e as justas, em que o confronto era entre dois adversários. Há registros desses duelos desde o século XI, mas foi só mais tarde que as justas antigas se transformaram em batalhas fictícias com regras específicas, em que cavaleiros montados se batiam com armas adaptadas, como espadas sem pontas nem corte e lanças com a extremidade arredondada.
Os apaixonados por tais exercícios percorriam a Europa de torneio em torneio, como Guilherme Marechal (1146-1219), “o melhor cavaleiro do mundo”, cuja carreira foi descrita pelo historiador francês Georges Duby. Cada cavaleiro era acompanhado por escudeiros e outros auxiliares, e cada equipe representava uma casa nobre, com um grito de guerra e uma insígnia pintada em seus escudos.
COLEÇÃO PARTICULAR
Bastante violento, o soule consistia em fazer uma bola de couro ou madeira chegar a um lugar determinado, batendo nela com as mãos, com os pés ou com bastões. O soule na Normandia, detalhe de ilustração, M. J. L. de Condé, 1852.
A partida se desenrolava no decorrer de um dia, com as equipes agrupadas em dois campos. Combatiam em um terreno de grande extensão, delimitado por barreiras: as paliçadas. Os torneios às vezes degeneravam em batalhas reais, e os acidentes mortais não eram raros. A Igreja condenava também esse esporte. Incapaz de proibir completamente o costume, o papa Inocêncio IV (c. 1190-1254) suspendeu a prática por três anos no Concílio de Lyon em 1245, alegando que as competições impediam os senhores de participar das cruzadas.
Os torneios sobreviveram ao fim da Idade Média e só foram abandonados, aos poucos, depois que o rei Henrique II da França foi morto em um deles, em 1559. Os outros esportes medievais, como o soule e o jogo de pela, também desapareceram com suas regras primitivas, mas nos deixaram alguns vestígios.
O soule, por exemplo, sobreviveu até o século XIX em algumas regiões da França, como a Bretanha e a Picar-dia. E deixou uma grande herança aos esportes atuais, do futebol ao golfe, passando pelo rúgbi e pelo polo. Já o jogo da pela entrou em decadên-cia na época do reinado de Luís XIV (1643-1715), mas se desenvolveu na Inglaterra sob uma forma diferente, voltando à França mais tarde com o nome de tênis.
Fonte: http://www2.uol.com.br/
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