Acertar o boi em cheio parece resumir o conceito de abate humanitário
Não sei se andam a pensar nisso, mas seria, a meu ver, o maior avanço
genético de todos os tempos. Animais que tenham vida breve. Tento
explicar minha teoria. Estou lendo o livro Libertação Animal
(WMF-Martins Fontes), de Peter Singer, professor de bioética da
Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Acredito que todos tenham
uma ideia das “maldades” cometidas com animais de variadas espécies,
para consumo ou testes. A ideia que eu tinha, garanto, é muito distante
do que de fato pode acontecer e tem acontecido. A crueldade parece não
ter fim, assim como as justificativas. Abate humanitário é algo que se
persegue há décadas. E vale dizer, claro, que em muitos lugares já se
pratica. Mas o que vem a ser um abate humanitário? Basicamente, um jeito
de matar sem dor, sem sofrimento.
Imagem de minha infância: uma tarde no
matadouro. O matadouro era do Olival, que tinha o melhor açougue da
cidade. Uma cidade pequena, 12 mil habitantes. Soube que estávamos perto
por culpa do cheiro. Um fedor insuportável. Não era de carniça. Vim a
descobrir que a farinha de osso, a sua confecção, conseguia ser mais
fedorenta que uma carcaça entrando em decomposição.
Em tempo, coisa que não mais se vê e se
via muito pelas estradas: caminhão carniceiro. Passava por matadouros,
recolhia as carcaças e as levava, imagino, para as profundezas do
inferno para atormentar almas merecedoras de tal punição. Alguma boa lei
deve ter proibido o desfile desse carro alegórico da morte.
Não diria que o matadouro do Olival fosse sujo. Não conhecia outros. Vi
terra, vi barro pisado por cascos de bois apavorados, vi estrume de boi,
todos os objetos de cena esperados naquele palco. E havia uma enorme
marreta. Tentei erguê-la. Meus primos também. Mal conseguimos. Mas um
dos filhos do Olival, às vezes até o próprio, conseguia fazê-lo. Eram
rapazes com uma patola de Maciste!
O movimento era belo. Belo o desenho, trágico seu significado.
– O boi entra aqui nesse corredor. A gente levanta essa porta e ele passa por esse espaço que é pequeno, justo, pra ele não se mexer muito. E aqui a gente manda a marreta bem na testa dele. Ele cai, a porta abre e ele escorrega lá pra dentro.
– O boi entra aqui nesse corredor. A gente levanta essa porta e ele passa por esse espaço que é pequeno, justo, pra ele não se mexer muito. E aqui a gente manda a marreta bem na testa dele. Ele cai, a porta abre e ele escorrega lá pra dentro.
Descemos e fomos ver o “lá pra dentro”.
Ali o boi era acorrentado pelos pés e erguido. Entrava em ação a
faca-vampiro, rasgando a jugular e fazendo o sangue escorrer. Por
roldanas começava o passeio do falecido. A cada parada lhe arrancavam
algo, até sobrar somente a tal carcaça.
Éramos moleques valentes e fizemos questão de assistir a uma marretada seguida de esquartejamento.
Éramos moleques valentes e fizemos questão de assistir a uma marretada seguida de esquartejamento.
Esqueci o nome do filho do Olival que
levantou a marreta e mandou na testa do pobre. Se eu disser que me
lembro até hoje do som da marretada e do boi caindo, você acredita? Acho
que acredita. E acredita que o camarada nos contou que, às vezes, um ou
outro caboclo menos preparado tentava, errava e acabava acertando
outras partes do boi? Aqui se entende um pouco o significado de “abate
humanitário”. É muito maluco imaginar a dor que um animal pode sentir ao
receber uma marretada que não o mate?
E, assim que o boi escorregou, fomos ver
todo o passeio. Fora do circuito, a poucos metros, havia mais uma cena
digna do Inferno de Dante. Vários trabalhadores com botas de borracha em
uma piscina de estrume, a limpar o bucho dos animais. E meu avô me
disse: “Olha lá! Aquilo lá é que vira a dobradinha. Tua mãe faz uma que é
um espetáculo!”
Nunca tive problemas com dobradinha por
conta dessa imagem. Curiosamente, tenho ouvido o som da marreta e
lembrado do olhar dos bois. Volto ao assunto na semana que vem, para
explicar a minha tese. O ideal seria ter animais que vivessem pouco.
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