Projeto para repatriar até US$ 100 bi vai anistiar corruptos, alertam juízes
Magistrados se mobilizam contra proposta, em tramitação no Senado, que impede punição e estabelece benefícios tributários aos brasileiros que trouxeram para o País recursos mantidos no exterior e não declarados à Receita
Fausto Macedo, de O Estado de S.Paulo
SÃO PAULO - Juízes federais que atuam em processos sobre
crimes financeiros e desvios de recursos da União alertam para "efeitos
nocivos" do projeto Cidadania Fiscal (354/09), que avança no Senado e
contempla com anistia tributária e penal contribuintes brasileiros que
repatriarem valores mantidos no exterior e não declarados à Receita. O
governo estima em US$ 100 bilhões a fortuna que circula fora do País.
"O projeto é uma vergonha", classifica o juiz Sérgio Moro, titular da
2.ª Vara Criminal Federal de Curitiba, especializada em processos
contra réus por lavagem de dinheiro, evasão de divisas e fraudes.
"Embora a anistia seja destinada a crimes fiscais, de descaminho e
financeiros, incluindo a evasão de divisas, na prática vai favorecer
todo tipo de criminoso."
Na avaliação de Moro, o projeto poderá contemplar fraudadores do
Tesouro e políticos que remeteram recursos públicos para paraísos
fiscais. "Um corrupto não vai internar o dinheiro no País declarando ser
ele produto de corrupção. Vai ser muito difícil investigar e
discriminar a origem desse dinheiro."
O projeto concede extinção da punibilidade dos respectivos crimes
contra a ordem tributária e crimes contra a administração pública também
relacionados com a retificação da declaração.
Com relação aos bens e direitos declarados, serão mantidas a extinção
da punibilidade ou a anistia penal ainda que a autoridade fiscal
verifique que o patrimônio do contribuinte no exterior não tenha sido
declarado na sua integralidade.
Os magistrados assinalam que o projeto não exige que seja comprovada a
origem do dinheiro nem que se esclareça como ele foi parar no exterior.
"O ideal seria a comunicação a uma instituição confiável, como o
Ministério Público ou a Polícia Federal, para verificação da possível
origem e natureza criminosa dos valores, especificamente se provenientes
de outros crimes que não os abrangidos na anistia", sugere Moro.
Ao tratar da anistia, o projeto é taxativo. "Torna-se absolutamente
imperioso dar ao contribuinte a segurança jurídica de que sua adesão
afasta, inequivocamente, a aplicação de penalidades, principais ou
acessórias de natureza tributária e, particularmente, de caráter penal."
O projeto é de autoria do senador Delcídio Amaral (PT-MS). "Só faz
crítica quem não leu o projeto", ele rebate. "Esse dinheiro trazido de
volta poderá ser investido em infraestrutura, habitação, agronegócio,
ciência e tecnologia." O senador Garibaldi Alves (PMDB-RN), relator na
Comissão de Assuntos Econômicos, recomendou a aprovação e deu vista
coletiva.
Pessoa física que retificar sua declaração de IR, ao invés de pagar a
alíquota de 27,5%, deverá recolher à Receita, sem multa ou juros, 5%
sobre o valor global dos bens ou direitos recém-declarados localizados
no País.
Essa alíquota pode cair pela metade caso o contribuinte aplique os
valores repatriados em determinadas áreas definidas. No caso das pessoas
jurídicas, a regularização se dará pela incidência do IRPJ e da
Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), com alíquotas de 10% e
8% respectivamente.
A Associação dos Juízes Federais (Ajufe) entregou nota técnica a
todos os senadores. "O Brasil não pode aceitar esse tratamento benéfico
ao capital que vai para o exterior de forma criminosa, na maioria das
vezes fruto da corrupção ou do tráfico internacional de drogas", alerta
Gabriel Wedy, presidente da Ajufe. "Essas operações são promovidas por
organizações criminosas que fazem a remessa de seus lucros. O dinheiro
da corrupção na política brasileira é obviamente encaminhado de forma
ilícita. A sociedade não aceita mais esse tratamento privilegiado para
corruptos. O projeto viola o princípio constitucional da moralidade."
Os juízes alegam que haverá grande dificuldade para discriminar a
natureza e origem do dinheiro repatriado. "Fortalece o mercado negro de
câmbio, que é utilizado não só para sonegar e remeter fraudulentamente
dinheiro ao exterior por empresários e empresas, mas também usualmente
pelo crime organizado e por agentes públicos corruptos em esquemas de
lavagem de dinheiro", acentua Sérgio Moro.
"A lição passada aos cidadãos pelo projeto é ‘não declare, não cumpra
com suas obrigações que um dia o governo o anistia’", adverte o juiz
federal Ivo Anselmo Höhn Junior. "Por mais que a intenção seja a de
atrair recursos para investimentos, creio que os prejuízos à moralidade e
o incentivo à sonegação não compensam."
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