Documentário retrata drama de mulheres presas por furtos
Marcelo Semer
De São Paulo
Imagem de divulgação do documentário "Bagatela", de Clara Ramos
Sueli ficou presa por furtar um queijo branco; ao final da
confusão, diz ela, de tanto ser levado de um lado a outro, o produto se
esfarelou.
Várias peças de picanha tiradas de supermercados levaram Vânia à cadeia.
Maria Aparecida ficou cega de uma vista, após agressões sofridas durante sua custódia pelo furto de cosméticos.
As histórias reais, ou quem sabe surreais, dessas três mulheres, foram
reconstituídas em "Bagatela", documentário da cineasta Clara Ramos, um
dos escolhidos para o projeto DocTV, da TV Cultura.
A partir dos casos que lhe foram trazidos pela advogada Sônia Drigo,
Clara cria um interessante painel a respeito das mulheres presas por
pequenos furtos, abrindo espaço para uma importante e atual discussão
dentro do direito.
O excesso de punição por atos assim singelos, diante da falta de
vigilância e fiscalização de condutas mais nocivas, bem explicita o
caráter de seletividade do sistema penal. Justifica ainda, em grande
parte, a pecha de criminalização da pobreza que se faz ao Estado.
Bagatela, para o direito penal, é o mesmo que insignificância.
Para muitos doutrinadores e juízes, furtos irrisórios estão fora da
proteção do direito penal. Embora a lei tutele o patrimônio, quando sua
violação é ínfima, não há sentido em utilizar as normas penais que
contêm as sanções mais invasivas.
A tese está longe de ser unânime, todavia. Muitas prisões em flagrante
ainda são feitas diariamente. Pessoas são processadas e, dependendo de
seus antecedentes, condenadas à prisão por esses diminutos atos.
Embora a jurisprudência dos tribunais superiores, incluindo-se o STF,
venha acolhendo a insignificância para excluir a bagatela do direito
penal, boa parte dos juízes ainda entende que a ausência de uma norma
explícita impede a aplicação do princípio.
A maioria dos crimes é cometida por mulheres e, por isso, o retrato que Clara Ramos traça é de uma pertinência perturbadora.
Com suavidade e leveza, o documentário viaja alternadamente pelos dramas
das três mulheres e ainda encontra espaço para expor opiniões
especializadas. Tive a oportunidade de oferecer a minha, lembrando
processo no qual um pintor de parede foi preso pela tentativa de furto
de um rolinho que custava R$ 1,67. Foram três anos e meio e duzentas
páginas de papel, até que o jovem fosse definitivamente absolvido.
Mas o retrato autêntico por intermédio dos olhos de Clara foge das armadilhas do maniqueísmo.
O documentário aponta as opiniões divergentes sobre o mesmo tema, tanto
dos juristas, quanto das próprias envolvidas. Enquanto Sueli e Maria
Aparecida se mostram indignadas com a prisão e o processo por tão pouco,
Vânia, ainda detrás das grades, admite sua reincidência e demonstra
resignação pela consequência dos atos.
Comidas simples, roupas baratas e cosméticos populares são os objetos
preferidos dos furtos. Em regra, ocorrem em lojas de auto-serviço,
aquelas que contam com inúmeros produtos em prateleiras, à disposição,
mas com vigilância disfarçada que, quase sempre, impede a consumação dos
crimes. O resultado são acusações por tentativas de furto.
O documentário não julga, mas traz uma preciosa contribuição para quem
tem essa tarefa. Descreve quem são, como vivem e o que pensam algumas
das destinatárias das decisões judiciais.
As entrevistas contam mais do que os processos conseguem revelar e
resgatam o sentido humano que não se alcança facilmente em um
julgamento.
Apesar de tratar de situações sempre dramáticas, o filme mergulha de
forma delicada nas intimidades de suas mulheres, compondo retratos
tocantes e até engraçados. Vê-se uma Maria Aparecida apaixonada pela
música da italiana Laura Pausini, a divertida Vânia e o amor que já lhe
fez se cortar por seu 'baixinho' e a implicante Sueli, que se revolta
até mesmo com a advogada voluntária que lhe atende.
O documentário, exibido periodicamente na TV Cultura, vem sendo mostrado
a estudantes universitários e outros profissionais do direito, que
quase sempre se emocionam nas sessões, sucedidas de um debate. Cumpre,
assim, uma relevante função de fazer pensar, além de trazer a vida para
dentro das salas de aula e de audiência, mostrando o quanto o direito
tem a aprender com a realidade.
Quanto ao tema de fundo, é possível resumir numa única frase a
indignação pela movimentação da máquina policial e judicial por coisas
de bagatela: é um absurdo que a liberdade ainda valha tão pouco.
Marcelo Semer é Juiz de Direito em São Paulo. Foi presidente
da Associação Juízes para a Democracia. Coordenador de "Direitos
Humanos: essência do Direito do Trabalho" (LTr) e autor de "Crime
Impossível" (Malheiros) e do romance "Certas Canções" (7 Letras).
Responsável pelo Blog Sem Juízo.
Fonte: TERRA
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