SE AINDA SOU GAÚCHO
O bom da Internet é que
as crônicas não morrem. Sobre a crônica publicada no 20 de setembro, me
pergunta um leitor: ainda és gaúcho? É uma boa pergunta.
Minha
definição de gaúcho não é a que vige no Brasil, a de gentílico de quem
nasceu no Rio Grande do Sul. Entendo como gaúcho o homem que nasce no
campo, entre vacas, ovelhas e cavalos. Não concebo como gaúcho gente
nascida no asfalto. Quanto aos cetegistas, recorro à definição dos
catarinenses. Qual é o menor circo do mundo? São as bombachas. Só cabe
um palhaço dentro.
Nasci na pampa, entre vacas, ovelhas e
cavalos. Sei o que é o gaúcho. É homem que geralmente nasceu pobre, vive
afastado do mundo contemporâneo e tem uma visão peculiar de mundo, que
nada tem a ver com a do homem urbano. Para começar, um gaúcho sabe o que
é horizonte, noção cada vez mais rara nas cidades. Em minha infância,
tive 360º graus de horizonte, que se situava a mais de légua de
distância. Isso mexe com a psicologia de qualquer um.
Nasci em
um deserto verde, salpicado de capões de árvores e umbus solitários.
Quando fui para a cidade, meu primeiro espanto foi ver que nossa casa
terminava no pátio. Lá no Upamaruty, terminava no horizonte. Meu espanto
só foi maior quando passei a morar em apartamento. Meu espaço terminava
na janela.
Meu pai, quando foi para o "povoado" – em função de
minha educação – sentiu-se como peixe fora d’água. Cheguei em Dom
Pedrito numa época em que botas e bombachas eram sinônimo de “grosso lá
de fora”. Mesmo assim, Canário enfrentava a cidade com suas pilchas. Que
não eram para bailes, mas seus trajes costumeiros lá no campo. Quanto a
mim, larguei as botas, por uma questão de conforto. Mas mantive as
bombachas. Com sapatos. O que me valeu muitas piadas no colégio. Acabei
traindo os meus. Optei pela calça corrida. Meu pai morreu amargurado,
longe dos pagos. Jamais se adaptou à vida urbana. Sentia falta das lides
do campo, das vacas e dos cavalos.
A tapera ficou lá fora. Por
muitos anos a visitei, meus tios e primos ainda viviam lá. Um belo dia,
um fazendeiro da região procurou-me em Porto Alegre. Precisava de uma
saída para o Uruguai e me perguntou se eu não queria vender meu
“campinho”. Pensei um pouco e considerei que aquele rancho fazia parte
do passado, eu jamais voltaria para lá. Virei bicho da cidade e não
tinha mais vocação para fazendeiro. Com dor na alma, passei-lhe a
escritura. Naquele dia, morri um pouco. Mas que fazer? Não havia porque
manter um pedaço de terra ao qual eu jamais voltaria.
Em 77,
antes de ir para Paris, levei até lá minha companheira, para mostrar-lhe
os campos onde havia nascido. Foi certamente a viagem mais dolorosa que
já fiz. O Fusca atolou uma boa légua antes de chegarmos de chegarmos a
meu rancho e continuamos a pé. Era inverno e um mar revolto de
alhos-bravos e flechilhas agitava as coxilhas e canhadas. Subi pelo
Cerro da Tala, em cujo cume havia a Toca da Onça. Era um buraco sob uma
pedra onde, crianças, nos escondíamos, para tratar de nossos mistérios.
De minha lembrança, me parecia uma imensa caverna. Tentei entrar na Toca
da Onça. Já não cabia.
Desci o Cerro da Tala, e entrei pela
sanga no Passo do Vime, onde a prima Corininha, acocorada, lavava roupas
sobre o empedrado. Eu me postava do outro lado do filete de água, para
espiar aquele intrigante triângulo escuro que as mulheres tinham entre
as pernas. Rumei à Casa, último resquício da herdade, onde em meus dias
vivera tio Ângelo. Era um precursor. Um belo dia entre os dias, decidiu
que teria um rádio.
Era tido como um visionário. Sua primeira
providência foi cortar o mais reto e alto dos eucaliptos, no eucaliptal
do Toto Ferreira, a uma boa légua de distância. Teria uns quinze, talvez
vinte metros de altura. Falquejado, foi levado por uma junta de bois
até a Casa. Providência seguinte, pintá-lo de vermelho. O erguimento do
poste foi uma operação mais ou menos como a construção das pirâmides, da
qual participei com muito orgulho. Com quatro máquinas de alambrar,
levantamos o poste e o colocamos num buraco frente ao oitão do rancho.
Era
o primeiro passo para a instalação do rádio, o cata-vento. Depois
chegaram as baterias, de Villa Indarte, no Uruguai. Depois, finalmente
chegou o rádio, um Telefunken mastodôntico, que só meu tio sabia operar.
O universo começou a entrar em nosso pequeno mundinho. A propriedade do
tio Ângelo passou a ser conhecida como Estabelecimento do Pau Vermelho.
Quando o sol começava a cair, a gauchada chegava de longe, para escutar
rádio. Meu tio, com a solenidade de um sacerdote, girava o dial e
viajava pela Argentina e Uruguai.
À medida que me aproximava da
Casa, o coração batia com mais força. Tudo deserto. Sentei-me na laje
onde meu tio afiava facas e gritei: “Ô de casa!” Corininha apareceu na
porta e perguntou: o que o senhor deseja? Com a voz já embargada,
respondi: o tio Ângelo está?
Não estava mais. Ela reconheceu-me e
nos abraçamos chorando. Meu rancho ficava a uma meia légua dali. Desci
pela canhada e fui revisitar nossa cacimba. Era julho e escorria pelas
bordas. Debrucei-me sobre o pedregal e sorvi com gosto aquela água
salobra, com sabor de infância. Minhas lágrimas se misturaram às águas
da cacimba. Chorei como terneiro desmamado.
Aquela canhada, desci
milhares de vezes, sempre em pânico. Ficava até tarde da noite, sob o
cinamomo à frente da Casa, ouvindo dos adultos histórias de assombração.
Geralmente voltava para meu rancho lá pela meia-noite, hora sinistra,
sob um luar gelado que tornava a noite clara. E corria desesperado de um
vulto que me perseguia e não me dava quartel, juro que não minto. Era
minha sombra. Durante muitos anos, tive medo de passar à noite por um
cemitério. Também, pudera, até meu cavalo ficava sestroso, quando uma
alma penada montava na garupa.
Nunca mais voltei lá. Nem quero
voltar. Dói muito. Se ainda sou gaúcho? Diria que não. Tive um passado
de gaúcho, mas este passado ficou perdido no tempo. Bati na marca e saí a
correr mundo. Vivi em cidades onde a geada é grossa de mais de palmo.
Vaguei por terras onde no verão o sol não se põe e no inverno é noite o
dia todo. Ouvi línguas que mais parecem doença da garganta. Estou mais
longe dos cavalos e vacas que dos restaurantes da Europa. Faz 33 anos
que não volto aos pagos onde nasci. A Paris ou Madri, vou todos os anos.
Nasci
na fronteira seca entre Brasil e Uruguai. Coincidia que o Uruguai
começava justo no horizonte, onde ficava a Linha Divisória. Nesta linha,
de três em três quilômetros há um marco de concreto. De seis em seis,
há um marco maior. Em frente a nosso rancho, ficava o Marco Grande dos
Moreiras. Canário me erguia até o topo do marco, me fazia virar para o
nascente e dizia: “Fala para os homens do Uruguai, meu filho”. Depois,
me virava para o poente: “Fala agora com os homens do Brasil”. Nasci
entre dois países, sempre olhando para um e outro. Daí a querer ir mais
adiante foi só um passo.
Em verdade, diria que nem brasileiro
sou. Nasci voltado para o Prata, me sinto melhor em Montevidéu, Buenos
Aires ou Madri do que em Porto Alegre ou São Paulo. Martín Fierro foi o
primeiro poema que ouvi em minha vida, recitado por meu pai nas
fogueiras do galpão. Falar espanhol me proporciona mais prazer do que
falar português. Foi minha língua de cuna. Mas isto pouco importa. Não
há lei no mundo que obrigue quem nasceu no Brasil a sentir-se
brasileiro. Minha infância foi mais platina que rio-grandense.
Infeliz
do ser humano que morre igual como nasceu. Não evoluiu. A vida, as
viagens, as cidades me transformaram. Virei cidadão do mundo e não
consigo mais viver no deserto. Seria um tour de force dizer hoje que sou
gaúcho.
Mas à minha infância, continuo fiel.
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