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quinta-feira, 5 de abril de 2018

O HC de Lula — maioria transformada em minoria: a "colegialidade" em ação!

5 de abril de 2018, 17h24

Por Lenio Luiz Streck e Emilio Peluso Meyer


Um dos autores mais citados no julgamento do HC de Lula (HC 152.752) foi Ronald Dworkin. Ele foi utilizado pela ministra Rosa Weber para justificar seu voto em nome da coerência e integridade. Pois ele tem uma opinião bem diferente da ministra Rosa Weber. No seu livro Justice for Hedgehogs[1], há uma observação certeira sobre a responsabilidade institucional que juízes devem ter para com uma resposta correta. Não a citaremos aqui porque o teor é duro demais e poderia ser mal interpretada. E não é isso que queremos. De todo modo, quem for ler o livro que leia a citação com espírito acadêmico.

Dworkin, assim como os principais juristas do mundo (e do Brasil), jamais aceitaria que, em nome de uma duvidosa tese chamada “colegialidade”, uma pessoa pudesse ser condenada ou ir para a prisão a partir de maiorias que se transformam em minorias. Um direito fundamental não pode ser suprimido em nome de uma convicção equivocada.

Invocando a “colegialidade”, a ministra Rosa Weber promoveu um verdadeiro cherry picking da doutrina nacional e estrangeira, na expressão consagrada pelo justice Scalia (veja-se, um insuspeito originalista) para criticar a citação de precedentes e institutos estrangeiros em decisões da Suprema Corte americana. Recorreu a fundamentos pouco convincentes para fazer algo que demonstra uma total irresponsabilidade no exercício da função judicante (por mais que ela quisesse dizer o contrário): aderir a uma maioria “ocasional” — pois a depender de seu voto — com a qual ela mesma não concorda. Tudo em nome de um suposto princípio (sic) da colegialidade (aqui).

Ou seja, interpreta-se a Constituição, lê-se o direito fundamental à presunção de inocência como a exigir, pela “letra da lei”, o trânsito em julgado para cumprimento da decisão penal condenatória, mas defende-se que isso só pode ser objeto de decisão no julgamento de mérito das ADCs 43 e 44. Há melhor descrição para o que viria a ser um voto (e um julgamento) de exceção?

Já advertimos que as restrições à presunção de inocência apareceriam mais claramente no voto da ministra Ellen Gracie no julgamento do HC 85.866, em que há uma superficial avaliação do Direito Comparado, e serviriam de base para a decisão do Plenário no HC 126.292, que reduziu a abrangência do Direito para permitir a execução provisória da pena após o julgamento em segunda instância (aqui)[2]. Vale lembrar que a decisão questionável do Plenário foi enfrentada pelo ministro Celso de Mello, vencido no HC 126.292, ao conceder a cautelar no HC 135.100. As divergências buscariam ser solvidas com a insatisfação da comunidade jurídica e o ajuizamento das mencionadas ADC 43 e 44, que já contam com um julgamento de medida cautelar. Os votos dos ministros Edson Fachin e Roberto Barroso, que compuseram a maioria vencedora de 6 votos a 5, colocam de lado o texto da Constituição, estabelecido no artigo 5º, inciso LVII, para, ainda assim, dar interpretação conforme ao artigo 283 do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei 12.403/2011[3]. Em outras palavras, dá-se interpretação conforme a Constituição a partir de um texto contrário ao objeto interpretado (aqui).

No julgamento das cautelares das ADCs 43 e 44, exigências de efetividade e credibilidade do sistema criminal decorreriam de uma “proteção não deficiente” (sic!) de direitos fundamentais para restringir os efeitos do dispositivo constitucional e do próprio Código de Processo Penal. Ou seja: procedeu-se a uma interpretação conforme a partir de parâmetro textual que indicava o contrário e para um objeto que também indicava o contrário. O difícil exercício hermenêutico fica claro quando o ministro Barroso recorre tanto ao artigo 637 do CPP, quanto ao artigo 312[4]: os textos legais que embasariam a prisão poderiam ser aqueles que a fundamentam na pendência de recursos para a instância especial, como também aqueles que embasam a prisão preventiva para a garantia de ordem pública. O que se vê, portanto, é que a decisão da maioria segue uma política criminal encarceradora contrária à evolução legislativa e jurisprudencial que se formara nos últimos anos, regredindo em termos de proteção de direitos fundamentais[5].

Ora, se a ministra Rosa Weber compôs a minoria vencida nas ADCs 43 e 44, qual a razão pela qual ela se sente livre para se dissociar de seu próprio “precedente” e votar de modo contrário? Seria o suposto “princípio da colegialidade”? E por que esse princípio deve governar sua decisão e não a decisão da maioria apertada que tem defendido a relativização da presunção de inocência? Faltam razões e sobram idiossincrasias. Ou sobra o temor de algo. Não se deve ignorar que o ministro Celso de Mello proferiu um corajoso voto rechaçando as ameaças feitas ao STF pelo comandante do Exército, general Villas Bôas. Aliás, vale sempre estar atento à presente “militarização da política” que tem se difundido no Brasil (aqui).

No cerne dos julgamentos dos HCs 126.292 e 152.752, pode-se verificar que o STF, efetivamente, substitui o texto previsto constitucionalmente (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”): ao dissociar o trânsito em julgado do julgamento de recursos extraordinário e especial, com base no argumento de que as instâncias superiores não analisam a questão de fato, o STF avança claramente sobre o texto. Não faz mutação; faz uma mutilação do texto.

O trânsito em julgado depende, obviamente, de que todos os recursos sejam, ao cabo, esgotados. E não é isso o que ocorre quando se permite o cumprimento da pena antecipadamente; com ele, há claro avanço sobre o texto e sobre a exigência de que a coisa julgada (também assegurada no artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição) seja, por exigência constitucional e relativa a direitos fundamentais, necessariamente observada. Aliás, ainda faltaram aos votos no HC 152.752 enfrentarem adequadamente a constitucionalidade do artigo 283 do CPP: nenhuma palavra foi dita sobre isso.

Esse conjunto de razões pareceu estar próximo de uma minoria apertada dos votos dos ministros do STF no HC 152.752. E parece que esta seria a maioria no julgamento de mérito das ADCs 43 e 44. Ora, então estamos ou não diante de um julgamento de exceção? Vale, portanto, dar razão ao ministro Gilmar Mendes quando ele compara o julgamento do HC 152.752 ao julgamento do HC 82.959, no qual se declarou inconstitucional a proibição da progressão de regimes para crimes hediondos. Algumas razões de julgamento vão ultrapassar a esfera do caso concreto, não por uma objetivação do controle difuso de constitucionalidade, mas por questão de equanimidade no exercício da função jurisdicional. Aliás, o julgamento do HC 152.752 só foi afetado ao Plenário porque a tese principal deveria ser resolvida por ele. O STF, ao contrário, acaba por julgar de forma ad hoc o ex-presidente Lula. E por isso será historicamente lembrado. Este pode ser o caso Dred Scott da suprema corte brasileira. A ver.

Numa palavra final, o julgamento em questão representa, além de tudo, a vitória de um voluntarismo jurídico que não deveria ter lugar em uma democracia. Em qual democracia do mundo se aceita que a opinião pública valha mais do que a Constituição? Constituições e tribunais existem para fazer o filtro dos clamores sociais pelo direito. Mas, fosse o caso, digam-nos: como saber qual é a opinião da maioria? Fazendo um plebiscito a cada vez? Mas, então, porque precisaríamos de um tribunal?

O julgamento também representou um massacre da literatura jurídica. Um bom exemplo foi a invocação de Konrad Hesse para justificar que as decisões judiciais, para terem legitimidade, devem corresponder à vontade do povo. Também a ponderação alexyana foi mais uma vez vitimada, transformada em uma katchanga real. Princípios constitucionais foram transformados em valores. A coerência e integridade tiveram seus santos nomes invocados em vão. Ora, ser coerente no erro vale? Pois não é a integridade que serve para barrar uma falsa convencionalidade (colegialidade ad hoc)? Dworkin, ao contrário do que sustentou a ministra Rosa Weber, diz isso claramente.

Aliás, uma advertência: essa “nova” tese utilizada pela ministra Rosa Weber, a colegialidade, abre um perigoso flanco para uma leitura convencionalista e/ou pragmatista. Não é por nada que Dworkin (tão cantado em prosa e verso no julgamento) dizia que positivismo e realismo são faces de uma mesma moeda. Ambos não têm uma compreensão principiológica do direito, não levam direitos a sério e não levam a sério a exigência de integridade do direito.

Uma pergunta final: será que nos próximos anos será possível juntar os cacos da Teoria do Direito, estilhaçada no julgamento? E será possível ainda falar em Direito Constitucional depois desse julgamento? Eis a questão.

[1] Cambridge, Massachusetts, London, England: The Belknap Press of Harvard University Press, 2013, p. 151.
[2] Cf. MEYER, Emilio Peluso Neder. Decisão e jurisdição constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 59 e ss.
[3] “Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).”
[4] “Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
[...]
Art. 637. O recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância, para a execução da sentença.”
[5] O mesmo tipo de pensamento que permeou o voto da ministra Ellen Gracie no HC 83.868 volta no discurso do ministro Barroso: “A verdade, porém, é que no atual estágio da condição humana o bem nem sempre consegue se impor por si próprio. A ética, o ideal de vida boa precisa de um impulso externo também. Entre nós, no entanto, a ausência de um direito penal minimamente efetivo e igualitário funcionou como um estímulo a diversos tipos de criminalidade” (BRASIL, STF, MC nas ADCs 43 e 44, rel. min. Marco Aurélio, j. 5/10/2016, p. 11).

 é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
 é professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre e doutor em Direito.
Revista Consultor Jurídico, 5 de abril de 2018, 17h24

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