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Advogado - Nascido em 1949, na Ilha de SC/BR - Ateu - Adepto do Humanismo e da Ecologia - Residente em Ratones - Florianópolis/SC/BR

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quarta-feira, 30 de maio de 2018

Bancos israelitas fazem negócio às custas da ocupação


Judeu ultraortodoxo passeia-se no colonato religioso de Ramat Shlomo, numa área da Cisjordânia anexa a Jerusalém Foto Baz Ratner / Reuters
Baz Ratner/ reuters

Os bancos israelitas são cúmplices da ocupação da Palestina. Financiando projetos de construção, concedendo empréstimos ou simplesmente abrindo balcões — aos quais a população palestiniana não pode aceder — contribuem para perpetuar uma situação ilegal e discriminatória. Um relatório da Human Rights Watch, divulgado esta terça-feira, põe o dedo na ferida




Margarida Mota


O que de ilegal pode ter uma caixa multibanco num aglomerado populacional? Tudo, se o terminal pertencer a um banco israelita e a povoação em causa for um colonato judeu no território palestiniano da Cisjordânia. Ao abrigo do direito internacional, os colonatos são ilegais, pelo que o financiamento de projetos de construção, a concessão de empréstimos a autoridades locais ou a abertura de agências bancárias nos colonatos tornam os bancos israelitas cúmplices de crimes de guerra.

“Fazer negócios com ou nos colonatos contribui para graves violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário”, defende ao Expresso Sari Bashi, diretora do programa da Human Rights Watch (HRW) para Israel e a Palestina. “Infelizmente, as empresas não podem mitigar esses abusos, porque eles são inerentes aos colonatos”, que se desenvolvem em terras confiscadas ilegalmente e em condições de discriminação.

Esta terça-feira, a HRW divulgou o RELATÓRIO BANKROLLING ABUSE: ISRAELI BANKS IN WEST BANK SETTLEMENTS no qual defende que os maiores bancos de Israel fornecem serviços que “apoiam e ajudam a manter e a expandir os colonatos na Cisjordânia”.

Judeus atravessam uma rua do colonato de Beitar Illit, a sul de Jerusalém. Palestinianos trabalham na obra em curso

Foto Menahem Kahana / AFP / Getty Images

“Os serviços prestados nos colonatos são intrinsecamente discriminatórios, porque os palestinianos da Cisjordânia não podem entrar nos colonatos, exceto se forem trabalhadores e tiverem licenças especiais”, explica Sari Bashi. “Por isso, os palestinianos não podem obter hipotecas para comprar casas nos colonatos — porque não podem aceder às terras dos colonatos. Não podem usar os multibancos nos colonatos — porque não podem lá entrar. Não desfrutam dos empréstimos dos bancos aos colonatos para a construção de piscinas e centros recreativos — porque o acesso a essas instalações está-lhes vedado.”

Os bancos israelitas defendem-se alegando estarem obrigados pela lei do Estado. A HRW contesta, dizendo que os bancos podiam cessar muitas das suas operações nos colonatos sem consequências legais adversas. “Contrariamente ao que dizem os bancos israelitas, eles não estão obrigados à maioria dos serviços que prestam nos colonatos”, diz Sari Bashi, que antes de trabalhar na HRW cofundou o grupo israelita de direitos humanos Gisha — Centro Legal para a Liberdade de Movimento. “Para cumprir as suas responsabilidades ao nível dos direitos humanos, os bancos deveriam cessar as suas atividades nos colonatos.”

Militares israelitas protegem o colonato de Har Homa, na região de Belém, Cisjordânia

Foto Issam Rimawi / Anadolu Agency / Getty Images

Num relatório publicado em setembro, a HRW já tinha feito um levantamento das atividades bancárias nos colonatos. “É um mapeamento muito parcial, porque os sete grandes bancos contactados recusaram-se a divulgar publicamente o âmbito e a extensão das suas operações nos colonatos”, diz Sari Bashi. “Esse levantamento sugere que os serviços são prestados mediante oportunidades de negócios.”

Por exemplo, os bancos optam por estabelecer balcões em colonatos grandes, onde potencialmente têm mais clientes. Concorrem entre si na concessão de empréstimos às autoridades locais. E escolhem os projetos de construção que querem “acompanhar”. “Os bancos fazem negócios, mas na opinião da HRW essas decisões são contrárias às suas responsabilidades relativas aos direitos humanos” — que constam dos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos, adotados pelas Nações Unidas em 2011.

Segundo a HRW, quatro grandes bancos israelitas — Bank Hapoalim, Bank Leumi, Bank Discount e Mizrahi Tefahot — subscreveram o Pacto Global da ONU, uma iniciativa que encoraja as empresas a adotarem políticas sustentáveis e de responsabilidade social e que inclui um compromisso no sentido do respeito pelos direitos humanos proclamados internacionalmente. “Cada banco publica um relatório anual sobre responsabilidade social empresarial”, lê-se no documento da HRW. Porém, “nenhum deles, nas edições de 2016, as mais recentes, aborda especificamente atividades nos colonatos israelitas”.

O Bank Hapoalim é um dos grandes bancos israelitas que operam nos colonatos. No restante território da Cisjordânia, há bancos palestinianos ou estrangeiros

Foto Nir Elias / Reuters

O relatório divulgado esta terça-feira concretiza a cumplicidade entre bancos e ocupação. Na aldeia palestiniana de Azzun, atravessada pelo chamado “muro da Cisjordânia”, o Leumi é parceiro num projeto de construção de cinco novos edifícios no colonato de Alfei Menashe, que cresceu em terras que anteriormente pertenciam à aldeia.

Noutro caso, o Mizrahi Tefahot “acompanha” dois novos projetos residenciais, nos arredores da aldeia palestiniana de Mas-ha, num total de 251 casas. Basicamente, estes planos expandem o colonato de Elkana na direção de Mas-ha, restringindo o acesso dos palestinianos às terras e forçando a deslocalização de populações.

“A transferência, por parte do ocupante [Israel], de membros da sua população civil para o território ocupado [Cisjordânia] e a deportação ou transferência de membros da população do território são crimes de guerra”, conclui o relatório. “As atividades dos bancos financiam um passo perigoso” desse processo. Ao viabilizarem a expansão dos colonatos, facilitam a transferência ilegal de população.
 
Fonte: http://expresso.sapo.pt

Petroleiros iniciam greve mesmo com proibição da Justiça


No Rio, trabalhadores da Reduc, em Duque de Caxias, não iniciaram jornada de trabalho


Por ESTADÃO CONTEÚDO


Publicado às 03h54 de 30/05/2018
Petroleiros iniciam paralisação de 72h Petroleiros iniciam paralisação de 72h - Reprodução / Facebook




A Federação Única dos Petroleiros (FUP) informou, via redes sociais, que a greve da categoria começou nos primeiros minutos desta quarta-feira, apesar de o Tribunal Superior do Trabalho (TST) ter considerado o movimento ilegal, nesta terça. "Não vamos arregar para a Justiça do Trabalho", disse o coordenador geral da FUP, José Maria Rangel, em vídeo divulgado pela entidade (assista abaixo). "A greve está mantida".


Leia Mais


Comunicado da FUP publicado pouco depois da 1h relata que os funcionários "não entraram para trabalhar" nas refinarias de Manaus (Reman), Abreu e Lima (Pernambuco), Regap (Minas Gerais), Duque de Caxias (Reduc), Paulínia (Replan), Capuava (Recap), Araucária (Repar), Refap (RS), além da Fábrica de Lubrificantes do Ceará (Lubnor), da Araucária Nitrogenados (Fafen-PR) e da unidade de xisto do Paraná (SIX).


Também não houve troca dos turnos da zero hora nos terminais de Suape (PE) e de Paranaguá (PR).


Na Bacia de Campos, as informações iniciais eram de que os trabalhadores também aderiram à greve em diversas plataformas.
Petroleiros iniciam paralisação de 72h - Reprodução / Facebook


Paralisação de 72h


Os petroleiros decidiram parar as atividades por 72 horas em solidariedade ao movimento dos caminhoneiros e para pedir a destituição de Pedro Parente do comando da estatal, entre outras reivindicações.


O TST tomou a decisão de declarar ilegal a greve por causa de sua "natureza político-ideológica". O tribunal estipulou multa de R$ 500 mil em caso de descumprimento da ordem.


segunda-feira, 28 de maio de 2018

PELO DIREITO AO VOTO - A atriz britânica feminista que passou a agir como 'terrorista'


Megha Mohan Da BBC Stories

 

Quando Fern Riddell foi ler a respeito do atentado que acabara de ocorrer em uma estação de metrô em Londres, em 15 de setembro de 2017, imediatamente reconheceu o tipo de bomba usado na explosão.

A cobertura midiática do atentado mostrava fotos de um balde plástico queimado, enrolado em uma sacola plástica de supermercado, e com uma bomba dentro.

"É uma bomba (típica das) suffragettes", percebeu Riddell, referindo-se ao movimento feminista britânico que, no início do século 20, foi às ruas para exigir o direito ao voto.

"Era uma bomba caseira, feita com materiais que você pode comprar em lojas de produtos químicos ou de construção. Era o tipo de bomba que as mulheres usaram para aterrorizar o país (Reino Unido) e fazê-lo prestar atenção nelas."

O interesse de Riddell nas sufragistas começara cinco anos antes, quando ela estudava para um PhD em História - ainda que tenha relutado inicialmente em abordar o assunto.

"Parecia uma armadilha: se você for uma jovem historiadora mulher, tem necessariamente de escrever sobre mulheres e sufragistas", diz.

Mas uma descoberta acidental nos arquivos do Museu de Londres, feita com a ajuda da arquivista Beverley Cook, a fez mergulhar de vez no assunto.

"Bev me disse: 'Tenho uma autobiografia não publicada de uma jovem artista, vista por muito poucas pessoas. Ela também era suffragette. Será que você está interessada nisso?'", conta Riddell.

Era a autobiografia de Kitty Marion, uma proemiente sufragista.

"Na época, eu tinha a mesma impressão de muita gente sobre as sufragistas: sabia que elas quebravam vitrines, se acorrentavam a trilhos, eram alimentadas à força (em greves de fome), protestavam. Eu achava que sabia tudo o que havia para saber sobre essas mulheres." 
 
Image caption Fern Riddell descorbiu por acaso a história de Kitty Marion - e a transformou em livro
Radicalização

Ao ler meras cinco páginas da tal autobiografia, porém, Riddell se surpreendeu: no texto, Kitty falava abertamente sobre organizar incêndios criminosos. Há relatos também de que a autora do texto tenha sido responsável por atentados a bomba. Ou seja, diz Riddell, Kitty poderia ser chamada de "terrorista".

"Kitty fala de modo tão poderoso (no livro)", diz a pesquisadora. "E ela me contava uma história que eu nunca havia escutado. Mais tarde, perguntei a amigos, parentes e a outros acadêmicos, e eles tampouco haviam escutado isso. É uma parte da história que a maioria dos historiadores parece ter se esquivado de explorar - e eu estava ali, com acesso a uma fonte primária, a uma mulher que não era como ninguém outro dos livros de história."

Riddell ficou no arquivo do museu até a hora de fechar. Leu a história de Kitty Marion de uma vez só.
Origens

Katherina Maria Schafer chegou a Londres aos 15 anos, fugindo de um lar abusivo em seu país natal, a Alemanha. Sua mãe morrera quando ela era um bebê, e Katherina ficou sob os cuidados de um pai violento e nada amoroso - que matou um bichinho de estimação da filha quando notou que havia afeição entre ela e o animal.

Katherina foi morar com seus tios e primos no leste de Londres e rapidamente aprendeu a falar inglês. Entrou por acaso no mundo do teatro de variedades londrino e, pela primeira vez, sentiu que pertencia a um ambiente. Mudou seu nome para Kitty Marion e começou uma carreira como atriz e dançarina.

"Kitty ficou fascinada pelo mundo (do teatro de variedades)", conta Riddell. "Os cabarés eram um nicho empolgante e cosmopolita da Londres vitoriana. Mulheres profissionais e casamentos inter-raciais eram comuns ali. Kitty tinha um grupo diversificado de amigos - o filho de um diplomata chinês lhe deu seu primeiro cigarro. Ela fez amizade com mulheres fortes, liberadas sexualmente, diferente das que eu conheço pelos livros de história. As mulheres da Era Vitoriana britânica são descritas como vítimas sofredoras, não livres como as descritas na autobiografia de Kitty." Direito de imagem Alamy Image caption Kitty Marion era considerada pela polícia como uma das mais perigosas sufragistas

A princípio, Kitty não se interessava pela causa da igualdade de gênero ou do direito das mulheres ao voto. Até que foi assediada por um agente, a quem se refere como "Sr. Lixo". O episódio a fez questionar seriamente sua carreira, em uma indústria comandada por homens poderosos. Na autobiografia, Kitty diz que "todo o seu ser ficou revoltado" com o assédio.

"Poucas mulheres esquecem a primeira vez que foram assediadas - a primeira vez que alguém decidiu que tem o direito de te tocar, de te beijar e te pegar sem pedir permissão", diz Riddell.

E, ao perceber que ela não era a única a passar por aquilo, Kitty começou a elaborar a ideia de que "as mulheres merecem se sentir seguras em seu ambiente de trabalho e ter independência, sem ter de sacrificar seus corpos por isso. Foi o que fez Kitty se envolver com o movimento sufragista", conta a pesquisadora.

Kitty entrou para uma liga de atrizes, que frequentemente realizava peças sufragistas. Depois, se uniu a grupos feministas e aderiu a manifestações populares, até, aos poucos, passar a praticar atos radicais de desobediência civil.
Prisão

Sua primeira passagem pela prisão ocorreu após Kitty atirar um tijolo em uma janela de um escritório dos correios da cidade de Newcastle. Assim como muitas outras suffragettes, ela participou de greves de fome, e foi alimentada pelas autoridades de modo extremamente violento: por um tubo enfiado à força no nariz ou na boca.

Em protesto contra esse tratamento, Kitty quebrou a lâmpada de gás de sua cela prisional e, usando o colchão, ateou fogo ao local.

Ela acabou sendo presa diversas vezes, a maioria delas por incêndios criminosos. Direito de imagem Alamy Image caption Suffragettes que faziam greve de fome eram submetidas a duras formas de alimentação forçada

Na noite de 13 de junho de 1913, ela e uma amiga sufragista atearam fogo à arquibancada de um jóquei clube em retaliação à morte da ativista Emily Wilding Davison, atingida pelo cavalo do rei britânico George 5º durante um protesto no Dérbi de Epsom. Kitty e a amiga foram detidas na manhã seguinte.

Na ocasião, ela foi alimentada à força 232 vezes em um único dia.
Onda de violência

Riddell ficou fascinada pela história de Kitty, uma mulher que, ainda que não fosse particularmente conhecida, estava na trincheira do movimento sufragista e era conhecida de suas líderes.

A historiadora passou horas, e depois dias, meses e anos analisando centenas de materiais de arquivo (como diários, cartas, registros policiais e judiciais, memórias e reportagens de jornais) para traçar um panorama da vida de Kitty dentro do movimento. Assim, começou a emergir uma pouco conhecida história das suffragettes.

Além de quebrar vitrines e iniciar incêndios, as mulheres colocavam frascos de fósforo nas caixas de correio - que rompiam quando manejadas e provocavam queimaduras graves nos carteiros. Elas também plantavam bombas. Image caption Sufragistas adotaram táticas radicais em sua luta pela igualdade de gênero

"No princípio de 1913, as suffragettes já haviam se tornado um grupo terrorista altamente organizado", argumenta Riddell. "Em maio de 1913, houve 52 ataques, incluindo 29 bombas e 15 incêndios no país."

Bombas caseiras, muitas parecidas às que Riddell viu no atentado recente ao metrô de Londres, foram plantadas em igrejas, carros de trens lotados, estações, e a historiadora diz que a intenção por trás dos explosivos era causar ferimentos.

"As bombas não detonavam instantaneamente como fazem hoje em dia. Elas soltavam ruídos e fumaça e davam tempo para que as pessoas escapassem. Mas eram colocadas em locais públicos."

Em panfletos, a líder sufragista Emmeline Pankhurst chamou sua militância de "uma guerrilha continuada e destrutiva contra o governo". Tanto as suffragettes quanto a polícia diziam haver um "reino do terror". Jornais falavam de "terrorismo suffragette".

"Sem dúvida, tudo isso tinha as marcas do que hoje definimos como terrorismo", diz Riddell. Image caption Kitty guardava registros jornalísticos dos atos violentos atribuídos às sufragistas
'Confissões'

Em sua autobiografia, Kitty é mais clara a respeito dos incêndios.

Ela guardou registros dos incêndios que provocou, mas também reportagens sobre explosões de autoria não identificada. Riddell acredita que foi uma forma de Kitty assumir responsabilidade por esses ataques.

Há, também, cartas com informações reveladoras.

O texto indica, segundo Riddell, que as sufragistas fizeram uma tentativa coordenada, em anos posteriores, de remover referências a seus atos mais violentos nas memórias que publicaram.

Quando a historiadora começou a falar publicamente sobre os atos mais violentos de Kitty, enfrentou críticas de historiadores do sufragismo.

"Um me escreveu dizendo que minha pesquisa era 'vergonhosa' e eu 'não deveria prosseguir', o que foi muito intimidatório para mim, uma jovem estudante em início de carreira", conta.

"Outros agiram na defensiva, dizendo que não havia maior forma de ocultar a memória sufragista. (Mas) gostaria de perguntar às pessoas que não estão na bolha da elite acadêmica: você ou seus amigos já ouviram falar de mulheres-bomba sufragistas? Já ouviu elas serem chamadas de terroristas?"

Riddell diz que apenas a eclosão da Primeira Guera Mundial, em 1914, conteve a escalada da militância suffragette.

A última detenção de Kitty Marion ocorrera no ano anterior. Ela foi condenada a três anos de prisão e cumpriu alguns meses de pena até ser transferida a um hospital, após a aprovação de uma lei liberando prisioneiros demasiadamente enfraquecidos por greves de fome até que sua saúde melhorasse.

A Primeira Guerra deu ao governo britânico a oportunidade, diz Riddell, de acusar uma das mais perigosas mulheres do movimento suffragette de ser uma "espiã alemã".
 
Exílio

Mas Kitty tinha amigas leais, e muitas sufragistas a ajudaram a viajar aos EUA, em vez de voltar à prisão.

Ao chegar a Nova York, Kitty se dedicou a uma nova causa feminista: o movimento pelos direitos reprodutivos das mulheres.

"Eis uma mulher cuja vida fez um elo entre dois dos grandes movimentos do nosso tempo, e ainda assim ninguém a conhece", diz Riddell.

A pesquisa da historiadora acabou se transformando em um livro recém-publicado, Death in Ten Minutes (Morte em Dez Minutos, em tradução livre).

Riddell afirma, porém, que não está tentando manchar a reputação das suffragettes, que tiveram um importante papel na luta pela igualdade de gênero.

"Fiquei muito admirada com essas mulheres", diz. "Mas não podemos ocultar o fato de quem elas eram em sua plenitude. Há um velho ditado que diz, 'o terrorista de um homem é o combatente da liberdade de outro homem'. É a mesma situação aqui."

Hoje, Riddell mantém uma foto de Kitty em sua casa.

"Kitty queria desesperadamente que sua história fosse contada, e tenho orgulho em finalmente poder fazer isso por ela", diz. "Todos deveriam conhecer as escolhas difíceis e perturbadoras que essas mulheres fizeram para que nós pudéssemos ser livres."
 
Fonte: BBC 

Cientistas criam curativo que pulsa para tratar sequelas de corações infartados


David Cox BBC Future



Direito de imagem Getty Images Image caption Curativo vivo para o coração? Cientistas estudam alternativas para 'remendar' danos causados por ataque cardíaco

Os médicos costumam dizer que quando alguém sofre um ataque cardíaco, "o tempo é músculo".

O coração depende de um fornecimento contínuo de oxigênio proveniente das artérias coronárias. Se elas entopem e o abastecimento para, as células musculares do órgão começam a morrer em questão de minutos.

Em muitos casos, a menos que os cirurgiões consigam aliviar a obstrução dentro de uma hora, mais de 1 bilhão de células musculares são irreversivelmente perdidas.

Os pacientes que sobrevivem costumam desenvolver um quadro de insuficiência cardíaca permanente. E, cinco anos após o ataque, 50% deles não estarão mais vivos. No Brasil, cerca de 50 mil pacientes morrem anualmente em decorrência de insuficiência cardíaca, de acordo com a Sociedade Brasileira de Cardiologia.

"No fim das contas, seus corações ficam tão fracos que não conseguem sustentar um fluxo de sangue suficiente e simplesmente param por completo", explica Sanjay Sinha, cardiologista do Hospital Addenbrooke, em Cambridge, no Reino Unido.

Nos próximos cinco anos, no entanto, a medicina regenerativa poderá oferecer uma nova alternativa radical: curativos para o coração, preparados em laboratório.

Diferentemente de alguns órgãos, como a pele e o fígado, o coração tem uma capacidade muito limitada de regeneração. As células musculares cardíacas se replicam a uma taxa de apenas 0,5% ao ano, o que não é suficiente para reparar qualquer dano significativo.

As células mortas acabam sendo substituídas por camadas espessas de tecido cicatrizado rígido e resistente, o que significa que essas partes do coração simplesmente deixam de funcionar. Direito de imagem Getty Images Image caption Atualmente, o transplante de coração é a única opção para pacientes com insuficiência cardíaca

Atualmente, o transplante é a única opção para pacientes com insuficiência cardíaca. Mas, na ausência de doadores em número suficiente, menos de 400 procedimentos do tipo são realizados por ano no Brasil.

As células-tronco podem oferecer uma alternativa. Em ensaios clínicos, cientistas tentaram "recuperar a musculatura" de corações lesados injetando células-tronco individuais - do sangue ou da medula óssea do próprio paciente - diretamente no coração.

Embora essa abordagem tenha regenerado com sucesso os vasos sanguíneos comprometidos e melhorado, assim, o fluxo de sangue para o coração, apresentou um benefício mínimo em termos de resolver o problema principal: fazer crescer novamente o músculo cardíaco perdido. Isso porque 95% das células-tronco injetadas não são incorporadas ao órgão e desaparecem imediatamente na corrente sanguínea.
Curativos

Mas, em parceria com uma equipe de biólogos do Instituto de Células-Tronco da Universidade de Cambridge, Sinha está desenvolvendo uma solução ligeiramente diferente: curativos para "remendar" o coração. São retalhos minúsculos de músculo cardíaco que pulsam - cada um com menos de 2,5 centímetros quadrados de área e meio centímetro de espessura - criados em pequenas placas no laboratório.

Cultivados ao longo de um mês, os curativos são feitos a partir de amostras de células do sangue, que são reprogramadas para a função de um determinado tipo de célula-tronco (capaz de se transformar em qualquer célula no corpo humano) - no caso, em células do músculo cardíaco, dos vasos sanguíneos e do epicárdio, membrana que envolve e dá forma ao coração.

Esses aglomerados de células cardíacas são então cultivados em um suporte especial, sendo organizados e alinhados em uma estrutura semelhante à do tecido cardíaco verdadeiro.

"Acreditamos que esses curativos terão uma chance muito maior de serem naturalmente assimilados pelo coração do paciente, já que estamos criando um tecido totalmente funcional que já bate e se contrai através da combinação de todos esses tipos diferentes de células que se comunicam entre si", explica Sinha.

"Sabemos que as células epicárdicas são particularmente importantes na coordenação do desenvolvimento adequado do músculo cardíaco. Pesquisas mostram que, nos embriões, ocorre muita interferência entre o epicárdio e o coração que está se desenvolvendo", acrescenta. Image caption Simulação de um 'curativo que pulsa' para o coração | Foto: Reprodução de vídeo da Universidade de Stanford

Sinha se prepara atualmente para testar os curativos em camundongos e, em seguida, em porcos. Se tudo der certo, o cardiologista pode estar pronto para realizar as primeiras experiências em seres humanos em cinco anos.
Em busca da batida perfeita

E ele não está sozinho. Nos Estados Unidos, uma equipe formada por cientistas das universidades de Stanford, Duke e Wisconsin também está tentando desenvolver curativos cardíacos.

Assim como Sinha, os pesquisadores imaginam um procedimento que começaria pela identificação dos tecidos cardíacos lesados por meio de exames de ultra-sonografia e ressonância magnética. Com base no formato das cicatrizes, eles imprimiriam um curativo personalizado em 3D. Os cirurgiões abririam então a caixa torácica e costurariam o "remendo" diretamente no órgão, de maneira que fique conectado às veias e artérias existentes. Direito de imagem Getty Images Image caption Curativo impresso em 3D seria costurado diretamente no coração

"Para pacientes com insuficiência cardíaca particularmente grave, serão necessários vários curativos em diversos lugares, pois o coração inteiro se dilata para tentar se adaptar ao dano", afirma Tim Kamp, professor de biologia regenerativa da Universidade de Wisconsin.

"Ele muda de forma, pode ter a aparência de uma bola de rúgbi, de basquete ou de um grande balão."

Um dos principais desafios é integrar eletricamente o curativo ao coração, a fim de garantir que ambos pulsem sincronizados. Qualquer conexão elétrica defeituosa poderia resultar em um ritmo cardíaco anormal.

"Podemos colocar o curativo no coração com nossas ferramentas cirúrgicas, mas não podemos forçá-los (o órgão e o curativo) a se entender", diz Kamp.

"Esperamos que eles façam isso. Acreditamos que os sinais elétricos que passam como uma onda através do músculo cardíaco, dizendo para ele contrair, façam com que o curativo contraia na mesma proporção." Image caption Células do curativo cardíaco visualizadas de perto | Foto: Reprodução de vídeo da Universidade de Stanford
Procedimento mais barato

Se os desafios forem superados, Sinha afirma que eles poderão não apenas salvar vidas, mas também economizar dinheiro.

No Reino Unido, um transplante cardíaco custa cerca de £500 mil - algo em torno de R$ 2,5 milhões, incluindo os custos da internação hospitalar. Para os milhares de pacientes com insuficiência cardíaca que não conseguem um transplante, as despesas com cuidados médicos contínuos e repetidas internações podem ser ainda maiores. Já o valor estimado atualmente para um "curativo cardíaco" gira em torno de £70 mil - quase R$ 350 mil.

Além disso, os curativos são feitos a partir do sangue do próprio paciente, o que significa que eles não precisariam passar por algumas complicações associadas aos transplantes - como as altas doses de drogas imunossupressoras para evitar a rejeição do órgão.

"Um coração ferido é um ambiente hostil, altamente inflamado, em que pode ser difícil para o novo tecido sobreviver", diz Kamp.

"A vantagem dos curativos cardíacos é que eles são customizados para o paciente, então é improvável que o coração os rejeite."

Segundo os pesquisadores, a tecnologia pode mudar a vida de milhões de pessoas ao redor do mundo.

"A insuficiência cardíaca pode muitas vezes incapacitar o indivíduo", diz Sinha.

"Você está sempre exausto, não consegue subir sequer um lance de escadas. Mas, pela primeira vez, achamos que somos realmente capazes de recriar o tecido cardíaco vivo, que é idêntico ao do paciente, onde as células se comunicam de maneiras misteriosas e maravilhosas, trabalhando juntas como fazem no corpo."

"Se conseguirmos ajustar o procedimento nos próximos anos e garantir que seja completamente seguro, ele poderá ajudar essas pessoas a terem uma vida normal novamente."

Fonte: BBC 

O mundo se une contra as picadas de cobra, outra grande doença mortal

OMS aprova resolução para agir contra envenenamentos provocados por répteis que matam mais de 70.000 pessoas por ano


Nyajinma, 6, foi mordida por uma cobra enquanto dormia no do Sudão do Sul.
Nyajinma, 6, foi mordida por uma cobra enquanto dormia no do Sudão do Sul.


Na Espanha, cerca de 130 pessoas são internadas todos os anos devido a picadas de cobra. Cada internação custa em torno de 2.000 euros (cerca de 8.566 reais) e as mortes por essa causa são pouco frequentes. Entre 1997 e 2009 foram registradas 17 mortes, quase todas porque houve muita demora para aplicar o tratamento. Como na Espanha, nos países mais desenvolvidos os animais venenosos não são um grande problema de saúde pública, mas a situação muda quando se observam as áreas rurais dos países tropicais.



Um exemplo das dificuldades enfrentadas pelos habitantes dessas regiões é o de Nyajinma, uma menina de seis anos do Sudão do Sul. Uma cobra a mordeu enquanto dormia e a mãe carregou-a durante uma hora e meia até o posto de saúde mais próximo. Lá não havia tratamento disponível e mãe e filha tiveram de ir ao hospital que a ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF) tem em Agok, onde recebeu duas doses de um antídoto e começou a se recuperar. Muitas pessoas demoram muito tempo para chegar ao lugar onde recebem tratamento adequado e morrem no caminho, perdem algum membro ou ficam cegas.

As carências dos Estados e dos sistemas de saúde dessas nações dificultam o dimensionamento do problema. A Organização Mundial de Saúde (OMS) tentou fazer isso pela primeira vez em 1954. Estimou que entre 30.000 e 40.000 pessoas morriam em consequência de picadas de cobra em todo o mundo. Em 2016, uma nova compilação de dados da OMS atribuiu cerca de 79.000 mortes ao veneno de cobra, com 400.000 vítimas de problemas incapacitantes, como amputações ou cegueira. A esses danos é necessário acrescentar que muitas das centenas de milhares de vítimas de picadas sofrem um estresse pós-traumático semelhante ao das vítimas de acidentes de trânsito.

Para enfrentar essa ameaça, em junho de 2017 a OMS incluiu o envenenamento por mordida de cobra em sua lista de doenças negligenciadas. Na quinta-feira, durante a realização de sua 71ª assembleia, adotou uma resolução que inclui várias iniciativas para melhorar a situação nos países mais afetados.

O grande número de vítimas de picadas de cobra em países de baixa e média renda significa que, em muitos casos, elas não têm acesso a tratamentos muito caros. Um estudo realizado em Bangladesh em 2006 estimou que 75% das pessoas envenenadas gastaram suas economias com o tratamento e 60% delas precisaram tomar empréstimos para pagá-lo. De acordo com dados de 2010 e 2011 fornecidos pela OMS com base em uma análise dos países da África subsaariana, apenas o antídoto custa em média 124,7 dólares, podendo chegar até 640. Na Índia, o país com o maior número de casos de envenenamento por picada de cobra, o custo a longo prazo de sofrer uma picada pode chegar a 5.890 dólares. Isso significa que, além da toxicidade do veneno, as vítimas enfrentam uma toxicidade financeira.



O custo dos tratamentos faz com que muitos afetados tenham que gastar suas poupanças ou pedir empréstimos

A resolução da OMS pretende que os Estados membros facilitem o acesso a recursos como antídotos e a treinamentos em hospitais rurais de países pobres. Na parte farmacológica, a organização quer buscar modelos para incentivar a criação de produtos seguros e eficazes, algo complicado considerando que grande parte do mercado que se beneficiaria deles está em países com poucos recursos financeiros. Além disso, a produção de antídotos mais baratos, mas com poucos controles de qualidade, faz com que as empresas farmacêuticas que seguem padrões mais altos não possam competir.

Um exemplo deste problema é o que aconteceu com o Fav-Afrique, um antídoto de amplo espectro que cobre dez toxinas diferentes e é muito útil quando a pessoa que sofreu a picada não é capaz de identificar a cobra ou sequer a viu. Fabricado pela Sanofi, esse soro antiofídico considerado o mais útil na África Subsaariana, deixou de ser produzido em 2014 e o estoque acabou em 2016. A empresa explicou que a produção foi abandonada “em um contexto em que existiam outros produtores capazes de responder às necessidades mundiais”. Além disso, foi apontado o surgimento de produtos alternativos ao Fav-Afrique que tinham preços com os quais a empresa não podia competir. O medicamento custava entre 250 e 300 euros, um valor inviável para muitos dos cidadãos dos países afetados, que necessitavam de financiamento do Estado ou de ajudas de ONGs para recebê-lo.



O antiveneno mais eficaz na África subsaariana deixou de ser produzido em 2016 porque não era rentável para a indústria farmacêutica

Ao contrário do que aconteceu com as drogas contra o vírus da Aids, que podiam ser replicadas de forma idêntica, porém mais barata, os antídotos contra venenos de serpentes são medicamentos biológicos, mais difíceis de copiar. Julien Potet, especialista em doenças negligenciadas da MSF, diz que o Fav Afrique “talvez volte a ser produzido por uma empresa do Reino Unido, mas dentro de dois anos no mínimo”. Potet explica que “outros soros antiofídicos com perfil similar ao do Fav-Afrique podem ser encontrados no mercado”, mas que, dadas as particularidades dos produtos biológicos como os antídotos, “podem existir diferenças significativas entre os dois produtos que são parecidos”, como potências diferentes ou efeitos secundários diferentes. “O que estamos tentando fazer é avaliar outros soros antiofídicos parecidos com o Fav-Afrique para avaliar sua eficácia em nossos diferentes projetos na África Subsaariana”, explica.

Os antídotos neutralizam o efeito do veneno, mas não revertem o dano que este já causou à vítima. Para melhorar os tratamentos necessários até a recuperação do paciente, a OMS vai elaborar estratégias para melhorar os sistemas de saúde dos países, treinar profissionais de saúde, melhorar a distribuição de soro antiofídico e garantir que seja usado de forma segura. Em outras doenças tropicais, como a malária, algumas medidas preventivas relativamente simples, como mosquiteiros que mantêm afastados os mosquitos transmissores da doença, mostraram-se muito eficazes na proteção dos habitantes dessas regiões. Potet diz que os mesmos mosquiteiros serviriam para proteger meninas como Nyajinma durante o sono e que botas apropriadas protegem contra picadas de cobra.

Como representante da MSF, Potet comemora a adoção da resolução da OMS, o que significa que a partir de agora as “picadas de cobra estarão nas agendas de saúde nacionais e internacionais”. “Agora os governos precisam assumir compromissos concretos”, conclui. 
 
Fonte: EL PAIS

quinta-feira, 24 de maio de 2018

Guerra dos Trinta Anos: a Europa imersa em caos

Guerra dos Trinta Anos: a Europa imersa em caos

Há 400 anos começava, por motivos religiosos, um conflito que deixaria o centro europeu arrasado, tanto do ponto de vista social como econômico. Paz de Vestfália, de 1648, pode conter lições para conflitos atuais.
default Gustavo Adolfo 2º, rei da Suécia, em pintura de Louis Braun representando batalha da Guerra dos




Há 400 anos começava, por motivos religiosos, um conflito que deixaria o centro europeu arrasado, tanto do ponto de vista social como econômico. Paz de Vestfália, de 1648, pode conter lições para conflitos atuais.



Trinta Anos



Em 23 de maio de 1618, nobres protestantes invadiram o Castelo de Praga. Eles exigiam liberdade de religião dos representantes do imperador católico do Sacro Império Romano-Germânico – Matias havia limitado os direitos dos protestantes. Depois de um bate-boca, os nobres da Boêmia, a atual República Tcheca, jogaram os apoiadores do imperador pela janela. Por sorte, eles sobreviveram à queda na fossa do castelo.

O imperador habsburgo Matias viu nesse ato de insurgência, que entrou para a história como a Defenestração de Praga, uma declaração de guerra e resolveu sufocar a rebelião protestante ainda no nascedouro. Era o início da Guerra dos Trinta Anos, que envolveria quase toda a Europa Central. Para a Alemanha, o conflito se transformou num trauma.

"Essa guerra deixou, sem dúvida algumas marcas muito mais profundas na Alemanha do que qualquer guerra posterior, exceto talvez as duas grandes guerras mundiais do século 20", afirma o cientista político Herfried Münkler, da Universidade Humboldt.

Uma combinação explosiva de fatores fez com que o conflito na Boêmia virasse um incêndio generalizado e descontrolado. Enquanto uma onda de frio duradoura destruía colheitas, um clima de fim de mundo, alimentado por superstições, espalhava-se pela população. Questões confessionais pioravam ainda a mais situação: cerca de cem anos depois do início da Reforma Protestante e da divisão da Igreja, católicos e protestantes cultivavam uma enorme rivalidade.

E, para piorar, havia interesses mundanos em jogo. "A religião foi manipulada para fins políticos", comenta a cientista política Elisabeth von Hammerstein, da Fundação Körber. "Os fatores políticos desempenharam um papel no mínimo da mesma importância", acrescenta.

O imperador e alguns soberanos regionais brigavam para decidir quem ditava os destinos do império. No meio disso, forças externas se envolveram. "Os franceses, os habsburgos, os suecos, os ingleses e até os otomanos consideravam a região muito importante para a própria segurança e lutavam pelo seu domínio ou para impedir a influência de outras potências", explica Von Hammerstein. Nesse contexto, a religião foi a lenha usada para alimentar o fogo.

Mortes, saques e destruição

Historiadores e cientistas políticos veem paralelos com conflitos atuais, como a guerra civil na Síria. No início, tratava-se de um levante local de forças sunitas contra o domínio do xiita-alauita Bashar al-Assad. Logo, porém, o conflito virou uma guerra por procuração, com Irã, Arábia Saudita, Turquia, Rússia e também Estados Unidos perseguindo interesses próprios e complicando a situação.


Vala comum da Guerra dos Trinta Anos em exposição na Saxônia, em 2015: conflito deixou até 9 milhões de mortos

Da mesma forma, a Guerra dos Trinta Anos alcançou uma nova dimensão do horror quando mais países se envolveram. Exércitos de mercenários desenfreados e sedentos por butins, vindos de todos os lados, atravessavam os campos de batalha como hordas de gafanhotos apocalípticos. Eles tocavam fogo em cidades e vilas, massacravam moradores, violentavam mulheres.

As crianças também não eram poupadas. Inúmeras pessoas morreram de fome ou sucumbiram a doenças como a peste, disseminada por legiões de mercenários itinerantes e dezenas de milhares de vítimas em fuga.

Um testemunho histórico é o diário do mercenário alemão Peter Hagendorf. Num trecho, ele lista "uma bela donzela" como parte de seu butim, ao lado de dinheiro e roupas. Algumas páginas adiante afirma que quase todas as igrejas, cidades e vilas do Bispado de Liège foram saqueadas ou roubadas.

Retrocesso e paz

A estimativa do número de mortos da Guerra do Trinta Anos varia de 3 milhões a 9 milhões, para uma população, também estimada, de 15 milhões a 20 milhões. Proporcionalmente é mais do que o número de mortos na Segunda Guerra Mundial. São poucas as regiões que não foram destruídas, e o sistema de poder ficou em ruínas. Enquanto outras nações saíram lucrando, a Alemanha sofreu com a ruína e a depressão.

"No aspecto social-econômico, a guerra catapultou a Alemanha décadas para trás", afirma o cientista político Herfried Münkler. Uma guerra na qual um quarto ou até um terço da população morre "é uma ruptura na percepção que as pessoas têm de si mesmas", diz.

A experiência de virar um joguete nas mãos de potências estrangeiras e um palco para os conflitos marcou profundamente a Alemanha, argumenta Münkler. Ele vai além e diz que esse trauma ajudou o Império Alemão e mais tarde o nazismo a justificarem seus ataques na Primeira e na Segunda Guerra Mundiais.

Na metade da terceira década de combates, as partes litigantes começaram a dar sinais de cansaço ou de estarem satisfeitas com suas áreas de influência. Ao longo de cinco anos elas tentaram chegar a um acordo de paz em negociações conduzidas em Münster, uma cidade católica, e em Osnabrück, uma cidade protestante.

Em 24 de outubro de 1648, a tão almejada paz foi finalmente alcançada em Münster. A série de acordos entraria para a história com o nome de Paz de Vestfália e também como um triunfo da diplomacia por conter inúmeras concessões, por exemplo, à liberdade de religião.

Protestantes e católicos concordaram que "controvérsias religiosas não podem ser resolvidas pelo viés teológico e que, em vez disso, deve-se buscar soluções pragmáticas ao largo das discussões sobre quem tem razão", explica Von Hammerstein.

Assim, entre outros avanços, a paz solidificou a equiparação dos credos cristãos. "Com isso criaram-se as bases para uma convivência pacífica entre as confissões, o que parecia impossível depois de décadas de violência."

Exemplo para outros conflitos?

Um sistema de garantias foi responsável pela manutenção da paz. Por exemplo: se um dos lados desrespeitasse os acordos, os outros signatários tinham o direito de intervir para restabelecer o status quo.

Além disso, a soberania do imperador foi limitada, e os príncipes receberam mais poderes. Com isso, o império se transformou em definitivo numa aliança flexível de Estados. Se em países como a França o poder central era fortalecido, na Alemanha a evolução transcorria de forma exatamente oposta. O ganho de poder dos soberanos regionais se reflete até hoje no federalismo alemão, no qual os governadores vigiam com afinco os poderes dados aos estados.

A Paz de Vestfália é frequentemente apontada como exemplo de resolução para outros conflitos. Em 2016, o então ministro do Exterior da Alemanha, o atual presidente Frank-Walter Steinmeier, relatou que um intelectual árabe havia lhe dito que sua região necessitava de uma versão própria da Paz de Vestfália. Von Hammerstein também vê o acordo com fonte de inspiração e lembra que ele provou que também um conflito com fortes elementos religiosos e emocionais pode ser resolvido de forma pacífica.

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Fonte: Deutsche Welle
  • Dreißigjähriger Krieg - Pluenderer (picture-alliance/akg-images)

    A Guerra dos Trinta Anos

    Saques e violência

    A guerra foi frequentemente travada em lugares onde ainda havia alimento ou algo para pilhar. Os agricultores foram torturados com o objetivo de forçá-los a revelar estoques escondidos de comida. Mercenários suecos aterrorizavam a população com a chamada "bebida sueca": um método de tortura no qual uma mistura de urina, excremento e água suja era despejada na boca dos prisioneiros.

quarta-feira, 23 de maio de 2018

Rádio Ratones - Música portuguesa


O café causa câncer?


O tema gerou polêmica depois que um juiz da Califórnia determinou que a venda de café naquele estado seja acompanhada de uma advertência sobre a doença
 


Simon Baker

  Xícara de café expresso Getty Images

Sentença do juiz Elihu Berle, do Tribunal Superior da Califórnia, na ação do Conselho de Educação e Pesquisa sobre Tóxicos contra a Starbucks Corporation e outros, em 28 de março de 2018.

Um juiz da Califórnia determinou recentemente que a Starbucks e outras empresas que vendam café naquele estado sirvam a bebida com uma advertência sobre o câncer. A ação decorre da presença de acrilamida no café. A substância é normalmente encontrada em muitos alimentos com alto teor de carboidratos que são expostos a temperaturas elevadas, como bolos, batatas fritas, pão e cereais. Há evidências que demonstram que a acrilamida é provavelmente cancerígena em seres humanos.

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A acrilamida do café é formada no início da torrefacção, que dá aos grãos de café verdes a cor marrom escura que conhecemos e seu sabor profundamente amargo. Uma vez dentro do corpo, a acrilamida pode ser convertida em glicidamida, um epóxido, e ambas as substâncias podem se ligar às nossas proteínas e ao nosso DNA, causando-lhes danos. Os danos ao DNA podem ser a primeira fase do desenvolvimento do câncer, e a acrilamida também interfere na reparação do DNA.

O problema da recente decisão judicial é que a pessoa que moveu a ação só precisou demonstrar que havia traços de acrilamida no café para que a ação prosperasse. É aqui que a realidade dos nossos estilos de vida faz com que a sentença pareça excessivamente cautelosa.

Ninguém duvida que o café contenha acrilamida, nem que a acrilamida cause danos ao DNA, mas o importante é a quantidade que se consome. Na realidade, o risco está relacionado com a quantidade total de exposição ao longo da vida, mas um cálculo indica que em um adulto de 80 quilos que consuma menos de 208 microgramas de acrilamida por dia o risco de câncer não aumenta.

A principal opção relacionada ao estilo de vida que expõe as pessoas às toxinas é o tabagismo. Cada cigarro contém, no meio de um coquetel de diferentes substâncias cancerígenas, cerca de 2,3 microgramas de acrilamida. Mas todos os alimentos que torramos ou fritamos para obter uma deliciosa caramelização também contêm acrilamida. Assim, o estilo de vida dos não fumantes também não é isento de acrilamida. Por exemplo, uma torrada de pão contém 5 microgramas e um saco de batatas fritas, 7 microgramas.

O café adiciona à nossa exposição diária à acrilamida entre 0,9 e 2,4 microgramas por xícara de 150 mililitros. Mas cada xícara também contém uma gama diversificada de antioxidantes e outros compostos considerados benéficos para a saúde (exceto em caso de gravidez).

O mesmo grupo de cientistas (da Organização Mundial de Saúde) que classificou a acrilamida como substância possivelmente cancerígena determinou que não existem evidências conclusivas de que o café provoque câncer. Na verdade, o grupo indicou que o consumo de café poderia proteger contra cânceres de fígado e de endométrio, e estudos mais recentes confirmaram essa ideia. Em 2016, a OMS retirou o café da lista de possíveis cancerígenos.

A preocupação original dos cientistas com o consumo de café derivou de alguns estudos que indicaram a existência de uma possível relação com o câncer de bexiga. Mas uma análise mais detalhada dos dados e estudos mais amplos deram a entender que a pesquisa original cometeu o erro de não levar em conta o tabagismo. É possível que o consumo de café interaja com os agentes cancerígenos do tabaco e aumente o risco de câncer de bexiga nos fumantes. Nos não fumantes, não há evidências sólidas de que exista uma relação entre o café e o câncer de bexiga.

Se você ainda está preocupado com a presença de acrilamida no café, vale a pena observar que parece haver menos acrilamida na xícara quando o café é coado do que quando é tomado na forma de café expresso. A escolha dos grãos e a torra também pode ter importância, já que a variedade Robusta contém mais acrilamida do que a Arábica, e as torras mais escuras contêm menos do que as claras.
Conclusão


A acrilamida não é boa para a saúde, mas a quantidade presente no café não representa uma contribuição observável para o risco de câncer. Não há evidências consistentes de que exista uma relação entre o consumo de café e o desenvolvimento de câncer. Embora alguns estudos tenham indicado que aumenta o risco de câncer de bexiga, a enorme maioria dos estudos rigorosos aponta que, se o consumo de café tem alguma consequência, é oferecer de fato um leve efeito protetor contra alguns tipos de câncer.

Simon Baker é pesquisador em câncer de bexiga da Universidade de York.

Annie Anderson (revisora) é professora de Nutrição em Saúde Pública da Universidade de Dundee.

Cláusula de divulgação

Simon Baker recebe financiamento da organização sem fins lucrativos York contra o Câncer e do Wellcome Trust. Embora não tenha interesses financeiros no setor cafeeiro, toma várias xícaras por dia.

Annie Anderson recebe financiamento da administração pública escocesa, do MRC (Conselho de Pesquisa Médica do Reino Unido), do WCRF (Fundo Mundial para a Pesquisa do Câncer), do NIHR (Conselho Nacional de Pesquisas Médicas britânico) e do FP7. É codiretora da Rede escocesa da Prevenção do Câncer e tem interesse pela relação com o café devido à sua sensibilidade à cafeína.

Este artigo foi originalmente publicado em inglês no site The Conversation.

Fonte: EL PAIS

O devastador negócio do tráfico de areia






Carmen Gómez-Cotta Em Tuas, oeste de Singapura, se avançou em direção ao mar no últimos anos para a construção de um megaporto. Sim Chi Yin

19 MAI 2018 - 19:00 BRT


É o recurso natural mais requisitado, depois da água. O rápido crescimento urbano do planeta transformou esse humilde material em um bem escasso. Sua exploração excessiva tem efeitos ambientais devastadores





Conéctate






Mergulhar por um dos maiores recifes de coral nas primitivas águas das Ilhas Gili. Percorrer as infinitas praias de areia branca de Lombok. Sucumbir à cativante espiritualidade de Bali. Ficar maravilhado com os templos e vulcões de Java. Descobrir os orangotangos da selva de Bornéu. Ficar surpreso com os dragões de Komodo. São algumas das maravilhas da Indonésia, país de sonho composto por 17.500 ilhas. Um paraíso que corremos o risco de perder, porque está afundando lentamente.

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O motivo? A atividade clandestina dos ladrões de areia, que de noite se aproximam da costa para roubá-la e vendê-la no mercado negro. No começo da década de 2000, o comércio ilegal de areia na Indonésia chegou a uma situação tão extrema que o país começou a perder território. Atualmente 25 ilhas já desapareceram e, com elas, suas praias.
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A areia é hoje o recurso natural mais requisitado do mundo, depois da água e à frente dos combustíveis fósseis. Ela se transformou em um bem muito valioso, imprescindível às civilizações modernas. “Nossa sociedade está literalmente construída sob areia”, diz Pascal Peduzzi, chefe da unidade de Mudança Global e Vulnerabilidade do Programa das Nações Unidades para o Meio Ambiente e autor do relatório Areia, mais escassa do que pensamos (2014).
Um imenso guindaste para dragagem extrai areia do leito marinho para um novo terminal do porto de Tuas, na costa oeste de Singapura. VII (Contacto)


Tudo o que nos cerca contém areia: o cimento, o vidro, o asfalto, os aparelhos eletrônicos. Até os plásticos, os cosméticos e a pasta de dentes contêm esse elemento. Mas seu principal uso é a construção, que consome um quarto da areia do planeta. Pelos grãos angulares e desiguais da areia de praia, esta adere melhor ao se fabricar cimento; de modo que o boom imobiliário devora quantidades enormes desse recurso. A regulamentação escassa em muitos países encoraja a presença de redes mafiosas.

De acordo com um relatório das Nações Unidas, 54% da população mundial vive em áreas urbanas e se prevê que o número aumente até 66% em 2050, sendo a Índia e a China os dois países em que o aumento será maior. Esse desenvolvimento urbano exige enormes quantidades de areia para o cimento. Uma casa de tamanho médio precisa de 200 toneladas; um hospital, 3.000; um quilômetro de estrada, 30.000. Por ano são extraídos 59 bilhões de toneladas de materiais ao redor do mundo; até 85% é areia para construção, diz Pascal Peduzzi.



Tudo o que nos cerca contém areia: o cimento, o vidro, o asfalto… Até o plástico

O problema é que a formação de areia é um processo natural lento, que precisa de anos, e a demanda é superior à capacidade de regeneração e fornecimento da própria natureza. “A nível mundial, consumimos o dobro de areia que os rios podem transportar, de modo que precisamos escavar em outras parte”, explica Nick Meynen, do Escritório Europeu do Meio Ambiente. “Agora ela é obtida dragando rios e, em escala bem menor, fundos marinhos. A estimativa é que entre 75% e 90% das praias do mundo estão diminuindo”.

As consequências ao meio ambiente são irreversíveis: destruição dos habitats, degradação dos leitos marinhos, aumento de materiais em suspensão, aumento da erosão... Se o ritmo vertiginoso da extração de areia continuar, as gerações futuras verão entornos de paisagens lunares, praias de rocha e ondas agitadas, rios e pântanos secos, territórios áridos e extinção da flora e da fauna. “Todas essas mudanças ambientais colocam em risco os ecossistemas nos rios, deltas e áreas costeiras, de modo que existem inúmeras espécies ameaçadas, de pequenos crustáceos a golfinhos de rio e crocodilos”, diz Aurora Torres, pesquisadora do Centro Alemão à Pesquisa Integral da Biodiversidade. E isso não é tudo. “Não somos conscientes do efeito cascata que essa degradação causa em nosso bem-estar”, alerta, já que a exploração excessiva de areia é ligada a um aumento de secas, inundações, vulnerabilidade contra tempestades e tsunamis e a proliferação de doenças infeciosas, como a malária. Também pode expulsar a população dos locais mais afetados e transformar as pessoas em refugiados climáticos.
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Montanhas de material para construção, provavelmente com areia misturada com granito, entram no porto ocidental de Singapura de barco. Sim Chi Yin


Não é preciso viajar à Indonésia para comprovar os efeitos do tráfico de areia. O negócio está em alta no Marrocos. Armados com simples pás, os trabalhadores ilegais carregam a areia em lombos de burro a caminhões de transporte. Entre Safim e Essaouira, no oeste do país, o contrabando transformou a costa dourada em uma paisagem rochosa. A areia é obtida até do Saara. Apesar de não ter a qualidade da areia das praias, as cidades de hoje precisam tão desesperadamente desse recurso finito e limitado que o obtêm de qualquer lugar.

As Ilhas Canárias são um dos principais destinos espanhóis da areia desse deserto, de acordo com denúncia da ONG Western Sahara Resource Watch (WSRW), que há anos investiga o material que sai do porto de El Aiune (Saara) em direção à Espanha para a regeneração de praias e construção de edifícios. “As Canárias importam areia do Saara; a praia de Las Teresitas é um exemplo conhecido”, diz Cristina Martínez, porta-voz da WSRW.

O Ministério da Agricultura e Pesca, Alimentação e Meio Ambiente da Espanha admite que a areia das praias do país é um recurso muito escasso. “A Lei de Costas de 1988 estabeleceu uma série de medidas para limitar a extração de materiais rochosos naturais nos trechos finais dos leitos dos rios e proibiu taxativamente a extração de areia para construção”, diz um porta-voz. O ponto 2 do artigo 63 dessa lei proíbe as extrações de areia para a construção, com exceção à criação e regeneração de praias. O Ministério de Fomento acrescenta que a tendência atual espanhola é “usar areia de trituração, que é a gerada pelos seres humanos através da trituração de material de construção”.
Vista aérea das obras para aumentar a área terrestre em Tuas, em Singapura, para a construção de um dos maiores portos do mundo a partir da escavação do leito marinho e da abertura de túneis na terra. Sim Chi Yin


O negócio da areia é tão lucrativo que se tornou um fenômeno mundial, expandindo-se na mesma velocidade que a urbanização. O que há um quarto de século era uma matéria-prima comum, abundante e barata, é hoje um recurso escasso. Sua exploração é difícil de se controlar, porque está ao alcance de todos. Apesar de existirem cada vez mais leis que regulamentam sua extração, ainda não é o suficiente. “Em muitos casos o problema não é a ausência de leis e sim sua falta de aplicação”, diz a pesquisador Aurora Torres.

Essa aplicação frouxa das leis cria o cenário perfeito para que apareçam grupos organizados que controlam o negócio. Na Índia essas máfias são particularmente poderosas, porque têm ligações com a Administração e podem ter acesso aos processo de contratação. A extração e venda de areia nesse país são regulamentadas a nível provincial, mas o Governo central não é firme no cumprimento da lei. A corrupção é palpável. “Normalmente, os políticos estão envolvidos e controlam diretamente o negócio ilícito de areia” afirma Sumaira Abdulali, ecologista, fundadora da Fundação Awaaz e uma das principais vozes de denúncia em seu país. “Os dirigentes consideram que colocar restrições a esse negócio deteria os ambiciosos planos de crescimento da Índia”. O país extrai por ano 500 milhões de toneladas de areia, alimentando uma indústria que movimenta 42 bilhões de euros (185 bilhões de reais). As redes de extração de areia utilizam frequentemente pessoas em condições deploráveis, sem equipamento e ferramentas, mergulhando no fundo dos rios com um balde metálico.



A cada anos são extraídos do lago Poyang, na China, 236 milhões de metros cúbicos de areia

Como a Índia, nenhum dos países que vivem um período de expansão e prosperidade urbana sem precedentes estão dispostos a deter esse lucrativo negócio. Uma vez que a areia está cada vez mais em alta, esses cenários são caldo de cultura para seu contrabando, que está crescendo em outras partes do mundo. E quanto mais esse recurso é explorado em excesso, mais rápido aumentam os impactos no meio ambientes e na economia a nível global.

A China usa 57% do cimento do mundo e é também o principal produtor mundial. Com tudo o que usa, poderia construir por ano um muro de 27 metros de largura por 27 de altura ao redor da Terra, de acordo com Pascal Peduzzi. A maioria da areia usada sai do lago Poyang, uma das maiores reservas de água doce e hoje a maior mina de areia do mundo, segundo pesquisadores de Harvard. Por ano são extraídos desse lago 236 milhões de metros cúbicos de areia, e os efeitos ao meio ambientes são devastadores.


Fotos tiradas durante a construção do novo megaporto em Tuas, na costa ocidental de Singapura. Sim Chi Yin


E não se trata somente de cobrir as necessidades imobiliárias de sua população: desde 2014, a China construiu sete ilhas artificiais no arquipélago de Spratly, no Pacífico Sul, que disputa com Taiwan e o Vietnã. O dano ao ecossistema marinho é irreparável. Uma das principais consequências que mais preocupam os ecologistas é que está destroçando as barreiras de coral que existem nessa área, que usam como base para construir o novo território. Seu vizinhos Vietnã, Malásia, Filipinas e Taiwan também expandiram seu território nesse arquipélago, mas nenhum o fez com a magnitude e velocidade da China.

Mas liderando os países que estão aumentando seu território de maneira artificial encontra-se Singapura, que além disso é o maior importador per capita de areia do mundo. Nos últimos 40 anos cresceu 130 quilômetros quadrados em terra (20%) utilizando 637 milhões de toneladas de areia. E ainda pretende aumentar mais 100 quilômetros quadrados antes de 2030. Os principais fornecedores são países vizinhos: Indonésia, Filipinas, Vietnã, Myanmar (antiga Birmânia) e Camboja. Mas todos eles começam a ver como suas reservas escasseiam e estão parando as exportações, o que disparou o preço da matéria-prima em 200%.

O primeiro a fazê-lo foi a Indonésia, após ver como muitas de suas ilhas afundavam e desapareciam. Em 2007 decidiu acabar com todos os negócios de areia, especialmente com Singapura, seu principal exportador. Uma decisão que lhe custou uma disputa política com seu vizinho sobre os limites exatos de suas fronteiras e o direito de uso desse recurso.



“Muitas praias das Canárias se regeneram com areia de fora”, diz um empresário

Em 2017, o Governo do Vietnã anunciou que se o ritmo da demanda continuasse como estava, em 2020 ficaria sem areia. Ao mesmo tempo, o Ministério de Minas e Energia do Camboja anunciou que impediria todas as exportações de areia a Singapura, que na última década comprou desse país, de acordo com dados das Nações Unidas, mais de 72 milhões de toneladas, equivalente a 624 milhões de euros (2,75 bilhões de reais). Mas muitos especialistas duvidam que a situação tenha mudado. “No Camboja governa uma cleptocracia que saqueia os recursos naturais em detrimento do meio ambiente”, afirma George Boden, diretor da ONG Global Witness.

Os Emirados Árabes Unidos são outros dos maiores importadores de areia, apesar de estarem cercados de deserto. Como consequência da erosão do vento, essa areia não é a mais adequada ao cimento porque é de baixa qualidade. Nas últimas décadas, Dubai importou da Austrália enormes quantidades de areia para a construção de diversos complexos e edifícios. Só para a torre Burj Khalifa, a mais alta do mundo, com 828 metros, foram necessários 110.000 toneladas de cimento. E as ilhas Palm, um projeto ainda não terminado formado por três conjuntos de ilhas que aumentará em aproximadamente 520 quilômetros a superfície das praias de Dubai, devoraram 385 milhões de toneladas de areia, com um custo de 10 bilhões de euros (44 bilhões de reais).

O mercado manda. E a demanda de areia está em alta. Nada irá deter a exploração excessiva e o comércio ilegal desse recurso se a sociedade internacional não unir forças. “Os Governos e líderes políticos devem aumentar sua consciência sobre o tema e procurar alternativas ao uso de areia”, diz Peduzzi. E é necessário fazê-lo rápido, porque o tempo joga contra.

Em um país como a Espanha, que vive do turismo, a erosão das praias pode causar estragos na economia. Não é preciso somente uma regulamentação legal nacional – que já existe – e sim padrões internacionais que regulem a extração e obriguem países como a Índia, Marrocos e Camboja a cumprir as regras do jogo para preservar o meio ambiente e a economia tanto de seus países como de terceiros.



Singapura cresceu 20% e é o maior importador de areia ‘per capita’ do mundo

“Nossa dependência da areia é enorme e em um futuro próximo não vamos deixar de usá-la”, diz Peduzzi. Mas sua utilização pode ser racionalizada com medidas como evitar a construção de infraestrutura desnecessária, planejá-la para que dure mais e modernizar as existentes. Várias equipes de pesquisa em todo o mundo estudam materiais alternativos na construção, a partir da reutilização de entulho e vidro, mas hoje não existe nada que possa responder à enorme demanda desse recurso. “Em áreas que não têm um ritmo de desenvolvimento elevado, a reciclagem de materiais de construção pode cobrir parte da demanda, mas os países que estão experimentando um rápido desenvolvimento urbano não podem satisfazer a necessidade de areia com a reciclagem”, afirma Torres. Além disso, o preço do material alternativo costuma ser mais alto e causa mais emissões de gases de efeito estufa em sua produção.

“É absolutamente necessário criar uma regulamentação internacional para evitar o descumprimento que certos países cometem”, diz Sumaira Abdulali. E isso significa saber a quantidade de areia usada a nível local e global, assim como a quantidade que pode ser reposta através de processos naturais. “É preciso conhecer quais são as reservas e supervisioná-las para que a lei seja cumprida”.

Caso contrário, nesse ritmo, o dragão de Komodo, os recifes de coral e amplas áreas do deserto do Saara estão a caminho de se transformarem em recordações que as futuras gerações só poderão ver em fotografias e documentários.

Fonte: https://brasil.elpais.com

A supremocracia e o desamor pela Constituição Federal





23 de maio de 2018, 6h09

Por Lúcio Delfino


Há algo cujo odor vem incomodando narizes mais sensíveis à detecção de arbitrariedades do poder. Parcela da doutrina, pouco deslumbrada com progressismos de ocasião, já advertia para o risco de excessos, e hoje em dia editoriais e artigos publicados em conhecidos periódicos alertam que não se constrói uma democracia lacerando direitos fundamentais (entre os quais aqueles inerentes ao devido processo legal) (por todos: Lenio Luiz Streck, em obras e ensaios jurídicos). Não importa o órgão ou agente estatal, tampouco os argumentos e as intenções que empregam, não é tolerável a implosão daquilo que configura o alicerce sobre o qual se devem(riam) projetar o Estado Democrático de Direito e a sociedade.

O que está em jogo, sendo erodida paulatinamente, é a estabilidade constitucional. E o exemplo, por mais bizarro que seja, surge de cima, pois seu principal algoz é a instituição desenhada sobretudo para protegê-la: o Supremo Tribunal Federal. É evidente que, em tempos nos quais a legalidade tem seus limites semânticos evaporando ao sabor dos ideários daqueles que detêm o poder decisório, o argumento não tem lá muita valia, mas é preciso insistir na obviedade de que quem estabeleceu a razão de existir do STF foi ninguém menos que o constituinte originário. O comando está gravado, com clareza invejável, para conferência e apreensão de qualquer um: “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente a guarda da Constituição...” (CRFB/88, artigo 102, caput). Decerto que o advérbio grifado não foi ali plantado, no coração da frase imperativa, por obra do acaso ou para fins estéticos, senão para assinalar o papel contramajoritário que deve(ria) distinguir a atuação desse órgão judicial.

Infelizmente, tem-se visto o STF curvar-se não ao texto constitucional, e sim ao “sentimento do povo”, seja lá o que isso possa significar. As bolas da vez: a garantia de não ser preso antes do trânsito em julgado (HC 152.752, relator ministro Edson Fachin) e o foro por prerrogativa de função (AP 937, relator ministro Roberto Barroso). A Carta Constitucional brasileira é daquelas rígidas, porquanto a sua alteração exige processo legislativo especial, mais dificultoso (votação em dois turnos, nas duas Casas do Congresso Nacional), e um quórum qualificado para a aprovação (ao menos três quintos dos integrantes de ambas as Casas Legislativas) (CRFB/88, artigo 60, parágrafo 2º), lembrando existirem nela prescrições invioláveis, haja vista a importância que as distingue, de modo que a sua abolição (ou relativização) é inadmitida mesmo por emenda constitucional. Pois ao que parece, a cada novo julgamento, o Supremo coloca em xeque essa concepção, afastando a rigidez característica da Constituição para dotá-la de uma tamanha flexibilidade que as mudanças das quais é alvo, atingindo até aquilo que não tolera fraturas, sequer dependem da atuação parlamentar, porque bastante é a força da autoridade de julgadores supostamente iluminados.

É a “voz das ruas” sobrepujando inclusive garantias seculares, muitas delas conquistadas a duras penas, com sangue, suor e lágrimas, revestidas por uma carapaça normativa que em tese deveria ser suficiente para impedir o seu extermínio pelos exercentes do poder estatal (CFRB/88, artigo 60, parágrafo 4º). Nunca é demais lembrar, aliás, que no nazismo, nas legislações que produzia, já se fazia usual referência ao “sentimento do povo” como maneira de sustentar uma estrutura jurídica absurda, totalitária e racista, cujas consequências nefastas mancharam para todo o sempre a história da humanidade. É expressão amorfa, que por isso pode exprimir pretensões múltiplas e até dissonantes, cujo manuseio serve para a apologia de toda e qualquer bandeira, boa ou ruim, mas que não deveria integrar o vocabulário de juízes, pois o compromisso deles é com a lei e com a Constituição, e, por implicação lógica, com julgamentos referendados pela racionalidade e transparência.

Em reforço, não se olvide, pois fator agravante do problema, que o atentado à estabilidade constitucional, com profundos impactos na sociedade, é com frequência fruto de uma prática isolada por parte dos ministros. O Plenário do STF não participa de muitas das decisões ali produzidas, e, quando resolve fazê-lo, eventual modificação fica inviabilizada porque o status quo experimentou contundente perturbação. Ou, ainda, às vezes nem mesmo uma decisão é proferida, sendo suficiente a adoção de determinadas manobras capazes de afetar o comportamento dos atores políticos envolvidos.

Os recursos dos quais se valem para balizar uma atuação em esquiva à colegialidade são variados, de índole formal ou não, indo desde o manejo de decisões liminares monocráticas (que permanecem por meses ou anos sem apreciação do Plenário) até o exercício de poderes para pedidos de vista e definição de agendas para julgamentos (timing control).

As sinalizações públicas sobre decisões futuras em jornais, manifestações em congressos e entrevistas, não raramente entrecortadas de críticas abertas a seus colegas, representam outro mecanismo muito comum, embora legalmente proibido (sobre a temática, consultar o excelente trabalho: ARGUELHES, Diego Werneck; RIBEIRO, Leandro Molhano. Ministrocracia – O Supremo Tribunal individual e o processo democrático brasileiro. Revista Novos Estudos. Cebrap, São Paulo, ano 1, n. 37, p. 13-32, jan./abr., 2018)[1].

Se a justificação do poder judicial praticado pelo STF encontra problemas seriíssimos em circunstâncias de afronta à Constituição (supremocracia), mormente quando barreiras contramajoritárias são ultrajadas por argumentos não jurídicos, ainda mais preocupante, e injustificável sob a perspectiva da legitimidade democrática, é verificar tais ocorrências sendo perpetradas pelo agir individualizado de seus integrantes (ministrocracia).

Já há análises sociológicas defendendo que alguns ministros da corte suprema trabalham em respeito a uma agenda política. E para implementá-la é estratégico atribuir a empreitada ao “sentimento popular de justiça”, espécie de aval para que magistrados “interpretem” a ordem jurídica a partir de uma miragem vanguardista. Vale tudo, até decidir contra legem, se esse for o melhor caminho para se fazer “justiça social” ou atender certos reclamos, pouco importando a ausência de inconstitucionalidades. No fundo, nada além de uma armadilha retórica que esfola no osso o Direito em sua autonomia, fazendo dele mera racionalidade instrumental à mercê de um realismo jurídico à brasileira subserviente a toda sorte de voluntarismos.

Propositadamente ou não, sobra o sentimento de que foram esquecidos os motivos que levaram ao surgimento do constitucionalismo moderno, em especial acerca da importância de uma Constituição e da própria função de uma corte constitucional. Basta dizer que se o constitucionalismo do segundo pós-guerra transferiu aos juízes um papel relevante, liberando-os dos grilhões do exegetismo e da jurisprudência dos conceitos aos quais estavam submetidos no século XIX, assim foi com o intuito de fortalecer a autonomia conquistada pelo Direito, jamais para favorecer ativismos judiciais. Muito pelo contrário, pois a substituição da discricionariedade de legisladores e/ou doutrinadores pelo voluntarismo de juízes só faz fragilizar a ordem jurídica, acarretando inseguranças, além de representar um oximoro para a própria teoria constitucional, que há séculos concentra esforços em elaborar mecanismos institucionais para o controle do poder (LIMA, Danilo Pereira. Constituição e Poder. Limites da Política no Estado de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018).

A pergunta que não quer calar: para que queremos um Supremo Tribunal Federal (ou 11 Supremos”, que legislam sem mandato popular) que insiste em menosprezar a Constituição e desatender o anseio de viver sob o governo das leis?

*Este texto corresponde ao editorial da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro) n. 102, ainda no prelo.



[1] Confira-se a (preocupante) conclusão a que chegaram Diego Werneck e Leandro Molhano: “Diante de seus ministros, portanto, o Supremo não parece tão supremo assim. Mostramos que o STF aloca de maneira individual e descentralizada uma série de poderes individuais de agenda, de sinalização e mesmo de decisão formal. A experiência brasileira recente, envolvendo alguns dos mais importantes conflitos políticos que já chegaram ao STF desde a redemocratização, sugere que o uso de poderes depende muito mais da virtude individual do que de mecanismos institucionais de controle. E, enquanto o plenário não se pronuncia sobre essas ações individuais mais ou menos virtuosas, ministros solitários mudam o status quo e moldam a política nacional. Esse cenário está em conflito direto com algumas das categorias que tipicamente usamos para pensar o papel do STF na democracia brasileira”.
Em outro trecho do estudo, os pesquisadores exemplificam o fenômeno a partir da (controversa) liminar proferida pelo ministro Gilmar Mendes, que suspendeu a nomeação do ex-presidente Lula como ministro de Dilma Roussef: “Nas três semanas (18 de março a 7 de abril) que se passaram até que ele liberasse a questão para julgamento, Dilma já havia sido suspensa provisoriamente do cargo, ficando prejudicada a questão. Por uma liminar monocrática, portanto, um ministro anulou a nomeação de um ministro de Estado, em um momento crítico para o destino do governo Dilma. O plenário não se pronunciará sobre questão tão decisiva para os rumos do país e para o direito constitucional brasileiro — tudo que temos é a decisão liminar de Gilmar Mendes. Ministro decide individualmente, e ministro decide individualmente se e quando poderá haver decisão colegiada sobre sua decisão individual: esse 'loop' entre poder de agenda e poder de decisão individual tem sido decisivo para entender a atuação do STF na política brasileira, muito além das situações 'excepcionais' previstas na legislação” (ARGUELHES, Diego Werneck; RIBEIRO, Leandro Molhano. Ministrocracia – O Supremo Tribunal individual e o processo democrático brasileiro. Revista Novos Estudos. Cebrap, São Paulo, ano 1, n. 37, p. 13-32, jan./abr., 2018).


Lúcio Delfino é advogado, pós-doutor em Direito (Unisinos) e doutor em Direito (PUC-SP). Membro-fundador da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro) e diretor da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro).

Revista Consultor Jurídico, 23 de maio de 2018, 6h09