Perfil

Advogado - Nascido em 1949, na Ilha de SC/BR - Ateu - Adepto do Humanismo e da Ecologia - Residente em Ratones - Florianópolis/SC/BR

Mensagem aos leitores

Benvindo ao universo dos leitores do Izidoro.
Você está convidado a tecer comentários sobre as matérias postadas, os quais serão publicados automaticamente e mantidos neste blog, mesmo que contenham opinião contrária à emitida pelo mantenedor, salvo opiniões extremamente ofensivas, que serão expurgadas, ao critério exclusivo do blogueiro.
Não serão aceitas mensagens destinadas a propaganda comercial ou de serviços, sem que previamente consultado o responsável pelo blog.



sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

O direito real de servidão e a passagem forçada no Código Civil de 2002




1 de dezembro de 2023, 6h31


O cotidiano imobiliário do país mostra que por vezes se torna necessário que a propriedade sobre um imóvel sofra determinada limitação para que outro direito de propriedade possa ser exercido com o alcance devido. Em outros casos, outra limitação se faz conveniente para permitir que um imóvel se torne mais útil ou a propriedade seja mais bem exercida. Em qualquer caso, forma-se uma relação na qual um dos proprietários sofrerá certa diminuição na faculdade de uso de seu imóvel, enquanto o outro a terá melhorada.



Neste contexto é possível que ocorra situação na qual um imóvel esteja de tal forma construído que impeça ou torne excessivamente dificultoso o acesso de outro imóvel a uma via pública. De modo diverso, é possível que, ainda que não seja tão dificultoso, neste mesmo exemplo o proprietário do primeiro imóvel julgue muito mais conveniente a passagem pelo imóvel de seu vizinho, pois lhe trará mais comodidade ou vantagem de alguma natureza.

O ordenamento trata dessas hipóteses de modo diverso. Isso porque se considera que a função social da propriedade e da posse exigem que seja ao menos garantida a possibilidade de os imóveis serem explorados economicamente, o que não é possível se o mesmo não contar com acesso à via pública. De outro lado, é perfeitamente possível que dois proprietários convencionem e formalizem negócio jurídico que crie certa relação na qual um terá sua propriedade restringida em favor do outro, de maneira gratuita ou onerosa.

As duas figuras que nasceram para regulamentar essas situações são, justamente, o direito real de servidão e a passagem forçada.

Direito real de servidão
A servidão tem natureza de direito real sobre coisa alheia, nascida de negócio jurídico com registro no Cartório de Registro de Imóveis, que vincula dois prédios vizinhos, contíguos ou não, de proprietários distintos, de maneira que limite a propriedade de um e aumente a utilidade de outro, extinguindo-se somente com seu cancelamento no CRI.

O negócio jurídico que institui a servidão pode ser bilateral, ou seja, realizado pela convergência de vontades que pretendam criar o direito, ou ser unilateral, nascido da vontade daquele que pretenda instituí-la por meio de testamento. Vale mencionar que a servidão pode nascer da usucapião em caso de posse ad usucapionem pelo prazo de 10 ou 15 [1] anos, a depender da existência ou não de título (artigo 1.379, CC), sendo necessário que a servidão seja aparente, ou seja, aquela que se exterioriza por obras visíveis no imóvel serviente.

É da natureza da servidão que ela incida necessariamente sobre um imóvel e que vincule este a um outro, de maneira que não importa quem sejam os proprietários, o imóvel serviente sofrerá alguma restrição em prol do dominante. A única ressalva que se faz é a de que os proprietários sejam distintos entre si, haja vista que não existe autoimposição de servidão, que se configuraria se os prédios vizinhos fossem de um mesmo proprietário. É dizer: se ambos os prédios são de um mesmo dono, ele poderá fazer as obras que lhe aprouver, respeitada a lei, para dar a melhor utilidade possível para eles [2].

É, também, da essência da servidão que de um imóvel se extraia maior utilidade em detrimento de outro em razão de conveniência. Diz-se que há limitação ao serviente e utilidade ao dominante.

O seu conteúdo é tão variado quanto permite a autonomia privada. A servidão pode ser positiva, quando o serviente deve permitir certa conduta por parte do dominante, como permitir que se dê passagem a pessoas ou veículos, que se passem aquedutos ou mesmo linhas de irrigação. Pode, também, ser negativa, quando impõe uma conduta de não fazer, como no caso de impedir a construção até certa altura em benefício do dominante ou mesmo impedir que se abra determinada janela de maneira permanente ou em intervalos.

Lembra-se que, nessas hipóteses, não importa quem seja o proprietário, todos os que forem titulares do direito de propriedade sobre esse imóvel deverão observar essas imposições até que haja o devido cancelamento da servidão no CRI, observado qualquer fato extintivo dos artigos 1.388 e 1389 do Código Civil.

Ainda, o direito real de servidão é protegido por meio dos interditos possessórios em caso de esbulho ou turbação, de maneira que o titular desse direito pode proteger sua posse contra interferências indevidas de terceiros ou mesmo do proprietário do prédio serviente. Exemplo claro é a conduta deste com a finalidade de impedir ou atrapalhar a atividade de conservação da servidão ou mesmo de sua utilização, como é o caso da limpeza e utilização do caminho para a passagem de pedestres ou veículos em servidão criada para esse fim.

Por fim, há de se mencionar brevemente a chamada “servidão administrativa”, que constitui forma de intervenção do Estado na propriedade por meio da qual se institui direito real sobre o imóvel a fim de realizar obras ou serviços de interesse público, como a passagem de fiação ou tubulação para a cidade através do imóvel serviente. É necessária autorização legislativa (Decreto-Lei 3.365/41).

A passagem forçada
A passagem forçada é um instituto pertencente aos chamados “direitos de vizinhança”, que nada mais são que um conjunto de regras cujo escopo é regular determinadas relações entre imóveis vizinhos.

A despeito de o direito de propriedade ser o mais amplo dos direitos subjetivos, ele sofre diversas restrições para que seja possível a convivência harmônica entre os vários direitos de propriedade na sociedade, ou seja, para que coexistam de modo que um não anule ou invada a esfera do outro.

A passagem forçada nasce, nesse contexto, para proteger o proprietário de imóvel que não possui acesso à via pública, nascente ou porto, pois encontra-se de tal forma preso que o único caminho para tais locais seria passando por um imóvel vizinho.

Justificativa
A razão de ser do instituto, segundo a doutrina, é a de que aquele que não possui acesso à via pública não pode dar destinação socioeconômica ao imóvel, o que é inadmissível tendo em vista a ideia constitucional de função social da propriedade e da posse. Considera-se mesmo que retirar “a possibilidade real e concreta de usar e fruir da coisa em razão de encravamento, significaria retirar do imóvel todo o seu valor e utilidade, violando o princípio da função social […]” [3].

Desta forma, a lei concede ao proprietário do imóvel encravado o poder de exigir do proprietário vizinho a passagem. Ele, no entanto, vem acompanhado necessariamente de indenização e, se a passagem não for amigavelmente estipulada, deverá ser estabelecia por decisão judicial.

Encravamento
A ideia de encravamento é indispensável para a caracterização da passagem forçada. Encravado é o imóvel que não dispõe de acesso à via pública, nascente ou porto diretamente, de forma que seja necessária a passagem pelo imóvel vizinho para atingir esses locais. Há, no entanto, certa divergência quanto à abrangência da ideia de inacessibilidade. Há quem sustente que essa impossibilidade deva ser absoluta, de forma que não exista outro meio que não a passagem pelo imóvel vizinho, pois esse instituto não existe para garantir comodidade ao proprietário, mas para assegurar o acesso àquele que não o tem.

Já há outros que entendem que, em realidade, não existe imóvel que realmente não tenha acesso à via pública, nascente ou porto de maneira absoluta, dado os avanços tecnológicos de que dispomos. O que existe, no entanto, são situações nas quais o proprietário do imóvel dito encravado deve dispor de maneira irrazoável de recursos para alcançar a via pública, de forma que não é proporcional exigir do proprietário que dispenda o montante necessário para fazer algo que deveria ser garantido a todos [4]. É a posição exposta, por exemplo, pelo Enunciado 88 do CJF, que dispõe: “O direito de passagem forçada, previsto no artigo 1.285 do CC, também é garantido nos casos em que o acesso à via pública for insuficiente ou inadequado, consideradas, inclusive, as necessidades de exploração econômica”.

Diferenças
Conforme separadas pela doutrina e jurisprudência [5], é possível elencar algumas diferenças claras entre esses institutos: 1) a servidão de passagem é um direito real sobre coisa alheia enquanto que a passagem forçada é um direito de vizinhança; 2) a servidão de passagem nasce da conveniência das partes (negócio jurídico que é levado a registro) enquanto que a passagem forçada nasce da lei; 3) a servidão não dá direito à indenização, já que é instituída por vontade, enquanto que a passagem forçada a garante, visto que a lei impõe limitação à propriedade alheia; 4) a servidão de passagem pode ser protegida por meio dos interditos possessórios, o que não ocorre na passagem forçada; 5) a servidão pode ser objeto de usucapião, o que não ocorre com a passagem forçada.

Conclusão
Viu-se que a servidão de passagem tem natureza de direito real sobre coisa alheia, nascida normalmente de negócio jurídico, por meio do qual as partes decidem dar maior utilidade a um imóvel em detrimento de outro, gratuita ou onerosamente. Por outro lado, demonstrou-se que a passagem forçada é um instituto legal que dá direito a todos os proprietários de imóveis encravados de exigir passagem ao vizinho, mediante indenização, para alcançar via pública, nascente ou porto.

É de se notar que os institutos absolutamente não se confundem, ainda que existam aqui e acolá algumas referências à passagem forçada com a nomenclatura de servidão.

Ainda que, em tese, seus desdobramentos sejam semelhantes, haja vista que concedem passagem a um imóvel através de outro, não se pode confundir um direito real registrado em CRI com um comando legal que regula o direito de propriedade. Em um há conveniência e, em outro, há necessidade. Convém, assim, diferenciar os institutos tendo em vista o distinto tratamento que foi dado a cada um pelo ordenamento pátrio.

Referências bibliográficas
AZEVEDO, Álvaro Vilaça. Curso de Direito Civil: Direito das Coisas. 2. ed. V. 5. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

PAMPLONA FILHO, Rodolfo; GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo Curso de Direito Civil: Direitos Reais. V. 5. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

Referências jurisprudenciais
STJ – REsp. nº 316.336/MS, relator ministro Ari Pargendler, Terceira Turma, julgado em 18/8/2005, DJ de 19/9/2005, p. 316.

STJ – REsp. nº 316.045/SP, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 23-10-2012, DJe 29-10-2012.

STJ – REsp nº 2.029.511/PR, relatora ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 14/3/2023, DJe de 16/3/2023.

[1] Apesar de a legislação estipular o prazo de 20 anos, a doutrina, sintetizada no Enunciado 251 do CJF, interpreta a norma restritivamente, tendo em vista que o prazo máximo de usucapião de imóvel é 15 anos.

[2] Há doutrina que enxerga aqui uma possibilidade de nascimento de servidão. É o caso do proprietário de dois prédios que, realizando uma obra que se adeque aos contornos da servidão, aliena um dos imóveis, de maneira que, por ato unilateral, a servidão foi criada.

[3] Ementa no REsp nº 2.029.511/PR, relatora ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 14/3/2023, DJe de 16/3/2023.

[4] Nesse sentido, vide: REsp nº 316.336/MS, relator ministro Ari Pargendler, Terceira Turma, julgado em 18/8/2005, DJ de 19/9/2005, p. 316.

[5] Quanto às diferenças, vide: STJ – Resp 316.045/SP, relator ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 23-10-2012, DJe 29-10-2012.


Alecsander Padula Panachão é bacharel em Direito pela FMU e pós-graduando em Direito Negocial e Imobiliário pela Ebradi.

Nenhum comentário: