Perfil

Advogado - Nascido em 1949, na Ilha de SC/BR - Ateu - Adepto do Humanismo e da Ecologia - Residente em Ratones - Florianópolis/SC/BR

Mensagem aos leitores

Benvindo ao universo dos leitores do Izidoro.
Você está convidado a tecer comentários sobre as matérias postadas, os quais serão publicados automaticamente e mantidos neste blog, mesmo que contenham opinião contrária à emitida pelo mantenedor, salvo opiniões extremamente ofensivas, que serão expurgadas, ao critério exclusivo do blogueiro.
Não serão aceitas mensagens destinadas a propaganda comercial ou de serviços, sem que previamente consultado o responsável pelo blog.



quinta-feira, 14 de julho de 2016

Judiciário comete crime de obstrução hermenêutica com o CPC





 
Juarez Tavares fez palestra comigo na abertura do Congresso do Ebac – Encontro Brasileiro de Advogados Criminalistas em Curitiba. Dizia ele que continuamos com uma coisa que acontecia antes da modernidade: o crime de heresia. Referia-se à comparação do “crime” de antanho com o “crime” — sem tipificação — de “obstrução da Justiça” que hoje viceja. Leo Yaroschewski escreveu interessante artigo sobre isso. Isso quer dizer que basta alguém dizer que não gosta do proceder de determinado juiz ou conversar com outra pessoa a respeito de estratégia para reverter o feito e, pronto: está obstruindo a Justiça. Isso é antidogmático (no sentido de quanto necessitamos de uma dogmática penal séria). E por quê? Porque o utente pode ser condenado por intenção. Por cogitação. Até na Faculdade do Balão Mágico se sabe disso nas primeiras aulas de Direito Penal: ninguém pode ser processado pelacogitatio. Onde ficou a teoria do bem jurídico, indagava Juarez?

Hoje em dia, se você estiver em um fórum e olhar atravessado para um funcionário ou o próprio juiz, pode ser processado... por obstrução da Justiça. É o novo “crime de heresia”. Vejam o perigo disso. Condutas efetivamente nocivas à devida prestação jurisdicional, especialmente penal, como os casos de coação no curso do processo etc., podem ficar diluídas em meio a inferências abstratas de que tal ou qual age para "obstruir" a "Justiça". Alto lá! Houvesse uma dogmática confiável, que auxiliasse nossos aplicadores na interpretação dessas questões, tudo bem. Mas não há. Parcela considerável de nossa dogmática ainda acredita em coisas como verdade real e livre apreciação da prova (ou no livre convencimento). Semana passada li em um livro de processo penal e descobri “o princípio da busca da verdade, que se faria por intermédio da livre investigação”. O que seria isso[1]? Pois nesse contexto, todo, corre-se o risco de o exercício do direito de defesa (que engloba, sim, por exemplo, a montagem de estratégias, a interposição de recursos e o ajuste das narrativas — desde que não se altere a verdade e nem se ofendam as regras do jogo) acaba muitas vezes confundido com obstrução. Portanto, muito cuidado, causídicos de todo o Brasil.

Sigo. Para falar de como é engraçado e estranho isso tudo. Explico: ao mesmo tempo em que exsurgem acusações de obstrução no atacado, estamos presenciando uma obstrução de verdade. Real. O quero dizer é que hoje assistimos a uma verdadeira obstrução em relação à aplicação do novo CPC. E isso não é cometer heresia na acusação. Não. Setores do Judiciário não ficaram na mera cogitatio. Foram para a ação.

Ou seria uma "desobediência civil" de parte do Judiciário? Se for, faria um Thoreau corar. Lembremos que não se trata de um exercício de cidadania. Isto porque se tratam de agentes públicos (autorizados, pois, a mobilizar o uso da força coletiva) que, com a obrigação de aplicar leis aprovadas pelo Parlamento, escondem-se por trás de uma "objeção de consciência" (ou algo assim) para negar aplicação ao CPC. É isso: do "decido conforme minha consciência" parte-se ao "eu objeto a aplicação conforme minha consciência" ou "conforme aquilo que eu acho melhor para o processo brasileiro". Como isso é possível em uma demo-cracia? Ou estaríamos (já) em uma juristo-cracia? 

Afinal, o que dizer quando membros do Poder Judiciário se reúnem para conspirar — epistemicamente — contra uma lei aprovada pelo Parlamento? Ora, se uma lei é inválida — e há muitas — assim deve ser declarada. Já de há muito que apresentei à comunidade jurídica as seis hipóteses (aqui) pelas quais um juiz pode deixar de aplicar uma lei. Fora delas, a aplicação é obrigatória. Aliás, de dever fundamental de aplicar a lei passa-se ao direito fundamental que o cidadão tem de ver a lei aplicada. Simples assim.

Desculpem a minha chatice epistêmica de ficar pregando essa coisa velha que é a defesa da aplicação... da lei e (até) da Constituição (desculpem também a ironia...!). Do jeito que vai, quem defende a aplicação da legislação deve pedir desculpas pelo “conservadorismo” e por ser “serôdio”. Mas é para o bem do Direito e do país. Judiciário não faz lei. A CF diz: são poderes da União o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Não é possível que se leia a frase pelo seu lado contrário. Qualquer jurista do mundo, quando descobre o que aqui se faz, fica espantado (lembram-se da entrevista dos dois professores alemães que aqui estiveram e se espantaram com o pamprincipiologismo?). Penso até que, quando os juízes e membros do MP vão estudar no exterior (mestrado, doutorado ou pós-doc), não contam, com detalhes, o que aqui ocorre. Seria altamente embaraçoso. Seus professores não acreditariam.

A história nos prega peças
Veja-se a peça que a história nos prega. Luís Gama, o Apóstolo Negro da Escravidão, usava a letra da lei, que proibia o tráfico de escravos, para mostrar que qualquer lei posterior devia ser nula e que, estando o tráfico proibido desde 1833, a escravidão não era mais legal. Isso no século XIX. Já o juiz Alcides de Mendonça Lima, ao abrir a sessão do júri na Comarca de Rio Grande, no dia 28 de março de 1896, declarou contrários à Constituição dispositivos de lei estadual. Vejam: declarou-os contrários à Constituição. Foi processado. Ele fez aquilo que estava implícito na Constituição de 1891: o controle difuso de constitucionalidade. Seu advogado foi nada menos que Rui Barbosa, cuja tese foi: estão processando o juiz pelo crime de hermenêutica. Foi absolvido pelo STF.

Tempos difíceis, diria o ministro Marco Aurélio. Hoje, passados tantos e tantos anos, com centenas de livros escritos sobre controle de constitucionalidade, sobre vigência e validade, sobre teoria constitucional e tantos temas, deparamo-nos com um conjunto enorme de juízes e membros de tribunais que se negam a aplicar um código, sem fazer aquilo que Mendonça Lima ousou fazer: controle de constitucionalidade. Porque hoje o Judiciário simplesmente se nega a cumprir um código (e a própria Constituição) pelo motivo de que... bem, na verdade, nem motivo dão. Cortam caminho e, em vez de dizer o porquê, fazem enunciados e resoluções dizendo: onde está escrito x, leia-se y. Simples assim.

Ética e moralmente, em uma democracia, seus agentes políticos (juízes, membros do MP) estão comprometidos até o pescoço em cumprir a lei. Esse é o compromisso que assumem os agentes políticos. Quando assumi o cargo de promotor de Justiça em 1986, jurei cumprir as leis e a Constituição. E aqui valem todos os argumentos expostos pelos maiores teóricos do mundo sobre o que é o Direito e o seu papel na sociedade. O convescote epistêmico da Dacha aqui contado na coluna passada deve ser relido para melhor compreendermos o que aqui agora discuto. Da reivindicação de autoridade que o direito faz (Raz, cujo argumento pode ser visto na ADC 44) à integridade que deve ter o Direito (Dworkin — que pode ser visto no artigo 926 do CPC), passando pelo que dizem Hart, Kelsen, Müller e tantos outros. Nenhum deles aceitaria o que estão fazendo no Brasil com o CPC (para falar só no CPC e não no restante do ordenamento, incluindo... a CF). Já é até motivo de piada nas redes sociais a reiteração de decisões cuja conclusão foi feita pós-CPC/2015 citando exclusivamente o CPC/1973. 

Então, em face desse dever moral de os juízes aplicarem o Direito, pode-se dizer que os membros do Judiciário que se negam a aplicar o CPC sem fundamentação constitucional ou intrassistêmica estão obstruindo hermeneuticamente a própria democracia. Não queremos e nem pretendemos, Juarez e eu, dizer que, assim agindo em relação ao CPC e em relação à CF (por exemplo, a presunção da inocência), o Judiciário estaria cometendo heresia contra o Direito aprovado democraticamente. Apenas queremos chamar a atenção para essa estranha peça que a história nos prega, uma vez que:

a) Alcides de Mendonça Lima, no século XIX, foi processado por se negar a aplicar uma lei considerada e justificada como inconstitucional.

b) Hoje, deixa-se de aplicar uma lei recente, recentíssima, novinha, sem, nem de longe, invocar a Constituição.

c) Mais: não somente o Judiciário deixa de aplicar leis sem justificativa constitucional, como também seus membros “constroem leis” (enunciados) que dizem o contrário da lei (no caso, o novo CPC).

Aqui na ConJur já discuti com dois magistrados sobre o significado histórico-ideológico de um “enunciado”. E de como “elaborar enunciados representa a repristinação do velho positivismo da Begriffjurisprudence” (jurisprudência dos conceitos), como sempre tão bem denunciou Castanheira Neves. O sonho de quem “gosta de enunciados” é fazer pequenas pandectas, só que sem a responsabilidade de um Windscheid ou um Puchta. Ou alguém pensa que os alemães se reuniam em workshop para fazer seus “enunciados”?

Além disso, nossos neopandectistas esquecem a distância histórica-temporal. Chamei inclusive Müller à colação (ler aqui) no debate. Enunciados são tentativas de dar respostas antes das perguntas. E, bingo. Como bem perguntou Habermas, quando de sua estada na Dacha, “é o Fonaje o nome de vosso Parlamento?”. Será que é?

Para ilustrar, é só recordar a coluna da semana passada, em que discuti uma decisão do STJ. Cabe como uma luva aqui. E, já que sofro de LEER, pela primeira vez coloco o ler aqui duas vezes. Também é relevante que os conjuristas leiam o artigo de Dierle Nunes, Jéssica Galvão Chaves e Giselle Santos Couy. Mais: em comentário a essa coluna, o advogado Maxuel Moura contou que fez uma audiência em um JEC, juntou procuração específica para o filho da proprietária da empresa representar a pessoa jurídica em audiência, como permite o artigo 334, parágrafo 10, do CPC/2015. Todavia, foi surpreendido pela informação do magistrado de que, nos JECs, quando a pessoa jurídica é parte autora, deve ser representada somente pelo empresário individual ou pelo sócio dirigente, consoante enunciado 141, do Fonaje, aprovado antes do CPC/2015. O advogado arguiu nada mais, nada menos, do que... o CPC. E o juiz brandiu o enunciado do Fonaje. Luta desigual, meu caro causídico. Perdeu.

Enunciado 1º: juiz deve obedecer à lei que não ofende a Constituição
A propósito: que tal uma filtragem constitucional desses enunciados do Fonaje (e de outros feitos por aí)? Sugiro um: "O juiz deve cumprir a lei que não ofenda a Constituição"[2]. Seria uma espécie de “enunciado fundamental”. Um “Grund” enunciado. Que seria o fundamento de todos os demais enunciados. Uma norma fundamental dos enunciados (a Grundnormdos enunciados). Parece-lhes bom? Ora, sei bem do que falo: uso alternativo do Direito não combina com democracia. Se o Direito for democraticamente produzido (respeitados os princípios da dignidade, num plano mais geral, para falarmos com Dworkin), temos, sim, o dever moral de observar seus ditames. O resto é decisionismo, mesmo. É desobediência. Ou obstrução hermenêutica da aplicação da lei. Escolham.

P.S. Habermas tem toda razão ao fazer aquela pergunta quando da reunião na Dacha.



[1] De que modo podemos enfrentar esse quadro de crise da dogmática jurídica com professores que ainda defendem o jusnaturalismo como modo de “superar a letra da lei”? Ainda estamos nessa dicotomia? Como enfrentar esse quadro quando há professores discutindo o conceito e aplicação de prazos com base no “princípio” (sic) da continuidade? Isso é princípio? Logo, vai aparecer alguém que defenda o princípio do motocontínuo (ou do contínuo de moto, o que dá no mesmo). Essa overdose de voluntarismo e pamprincípios ainda vai intoxicar tanto o Direito a ponto de explodi-lo.
Bom, li, há pouco, que a Constituição não necessita de cláusulas pétreas... Será um novo constitucionalismo à brasileira? Cartas para a coluna, com o título “quem nos salvará do ativismo”.
[2] Em Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica (Saraiva, 2014), conto o que ocorreu em Espanha, dois anos após a Constituição de 1978. Em face a constante desobediência de os juízes não aplicarem a Constituição, o Tribunal Constitucional estabeleceu em um acórdão que os juízes deveriam interpretar todas as leis de acordo com a Constituição.

Lenio Luiz Streck é doutor em Direito (UFSC), pós-doutor em Direito (FDUL), professor titular da Unisinos e Unesa, membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional, ex-procurador de Justiça do Rio Grande do Sul e advogado.



Revista Consultor Jurídico, 14 de julho de 2016, 8h00

Nenhum comentário: