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quarta-feira, 24 de maio de 2023

Disputa por terras e "grilagem de águas"

Por 

A partir da análise do processo de ocupação das terras brasileiras, do Sistema das Sesmarias e da Lei de Terras e focando no momento do correto ou não "destaque" do patrimônio público para o privado, uma vez que aquele, se correto, estabelece a migração do sistema de direito público para o direito privado, definimos a grilagem de terras como "irregular ou ilegal ocupação de terra pública, com objetivo de sua apropriação privada" [1]. O fenômeno ingressou, há muito, no cotidiano jurídico-político-histórico do Brasil, embora não seja fenômeno exclusivamente nacional, já que a sua ocorrência é global, correspondendo à expressão land grabbing, da língua inglesa.

Parecemos já conhecer e dominar o universo da grilagem de terras e as suas formas de atuação, inclusive desvirtuando, também, o bom uso do CAR (Cadastro Ambiental Rural), dando-lhe uso assemelhado ao que no passado se atribuiu ao registro paroquial, sobre o que já havíamos escrito [2] em 1997 e o Congresso agora discute [3].

O fenômeno parece se atualizar e a servir, também, como instrumento qualificado de um novo tipo de colonialismo [4], se alastrando no continente africano [5] e em outras áreas do globo, já sendo bem tratado em obras estrangeiras, não traduzidas para a língua portuguesa e não lançadas no Brasil [6].

Agora o mundo se surpreende com processos de apropriação da água doce potável, num fenômeno que, nos círculos doutrinários estrangeiros, se chama de water grabbing, passível de tradução como "grilagem de água" [7].

Antes de avançar, é bom desde logo se fixar a ideia de que não haverá soberania alimentar sem que haja abundância da oferta de água doce para as atividades ligadas à agricultura. Não se pode plantar ou criar sem que haja água nos vários estágios das atividades do setor e da cadeia produtiva.

Portanto, a terra fértil é um dos lados da moeda, compondo-se o outro da água doce. Uma depende da outra em estreita ligação, para que a soberania alimentar seja realidade.

Portanto, nesse viés político-estratégico, as relações internacionais e as gestões das transnacionais passam pela consideração de que a água começa a faltar ou rarear em alguns seguimentos e regiões do planeta, elevando a preocupação dos mais atentos observadores, o que pode ser assim resumido: "Se os governos dos países carentes de água não adotarem medidas urgentes para estabilizar a população e elevar a produtividade hídrica, a escassez de água em pouco tempo se transformará em falta de alimentos[8].

Sem nos alongar a respeito, devemos nos lembrar da ocorrência de situações alarmantes pelo Globo, como as que já ocorrem em Portugal [9], Israel e Jordânia [10]. E mais:

"Como calculou a revista National Geographic [...] apenas 0,007% da água do planeta está disponível para o uso e consumo de 7 bilhões de pessoas [...] 'conforme o Banco Mundial revelou, a disponibilidade de água doce nas cidades ao redor do mundo pode cair em até dois terços. No total, segundo as Nações Unidas, 5 bilhões e pessoas poderão ter acesso precário à água doce em 2050'." [11]

Daí a relevância da ideia de "grilagem de águas", que representa a apropriação das fontes naturais e dos cursos de água e o uso de água para a produção que será consumida noutras localidades.

A nossa Carta Política de 1988 atribui à União (artigo 20) "os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio" que banhem mais de um Estado ou sejam limítrofes com outros países, as terras marginais e as praias fluviais e, aos estados (artigo 26, caput c/c I e III), comete "as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União", bem como "as ilhas fluviais e lacustres não pertencentes à União".

Apesar desse cuidadoso tratamento constitucional e das leis que regulam a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (Lei nº 9984/2000) e a Política Nacional de Recursos Hídricos e o seu Sistema nacional de Gerenciamento (Lei nº 9433/1997), é conveniente que o tema seja analisado em cotejo com paradigmas de outros países e regiões, pois a realidade se impõe, a pauta global por água e comida é urgente e as mudanças ocorrem em velocidade que atropela algumas das nossas mais polidas ideias e precisos conceitos.

Divulgação

Quando se fala nas aquisições de terra, na tomada da terra, na grilagem, nos apossamentos, nas invasões e práticas ligadas a pretensão de apropriação, de ocupação ou qualquer modo de assunção da propriedade sobre o imóvel, envolvendo interesses estrangeiros, isso não é o fim em si mesmo, pois se constitui em mecanismo a propiciar longa manus sobre terras noutras regiões para a produção e o uso da água.

Curiosamente, não há interesse maior na aquisição de terras secas e desérticas, porquanto as práticas mencionadas sempre focam nas terras férteis.

A partir desta singela ideia, fica fácil se compreender que a ideia genérica de tomada de terras, ocupação ou "grilagem" de terras bem público imóvel carregue consigo a água, como um valor absoluto, até aqui talvez subdimensionado no seu preço e importância estratégica e real, até pelo fato de que, como visto, está inexoravelmente conectada à terra.

A captação de água doce e o seu armazenamento eficaz envolvem outros aspectos, pois ocorrem tanto o desperdício  onde é excessiva — quanto a subcaptação — onde é de menor ocorrência — e, ainda, a evaporação.

De toda sorte, o nosso foco, aqui, não é avaliar a água por suas potencialidades. Buscamos, apenas, considerar a apropriação indevida da água doce no que chamamos de "grilagem de água", algo que no exterior se chama de water grabbing e o seu potencial para piorar aspectos relacionados à soberania alimentar e aos impactos que, por si só, é capaz de ocasionar hoje e no futuro, sobre os destinos de povos e nações.

Se não estamos atentos a respeito, não significa que outros não estejam.

Em primeiro lugar, como se diz popularmente, "quem desdenha quer comprar", tanto quanto quem discursa sobre proteção abrangente do meio ambiente e levanta bandeira de gestão estrangeira sobre território alheio, no que chamamos de "pansoberania" [12] (neologismo que introduzimos e trouxemos ao debate) ou de gerenciamento pseudo-partido sobre a Amazônia brasileira e outros fortes multisistemas de água doce.

É notória a poluição de grandes rios pelo mundo e perceptível que lençóis freáticos tiveram perdas, por aumento significativo na extração, prejuízo da cobertura vegetal, poluição das águas na superfície e diminuição na precipitação de chuvas. O contexto se reflete em situações vaticinadas por estudiosos, relacionadas à oferta de água doce pura, tanto para consumo direto pela população quanto para servir às atividades industriais e agrícolas.

Alguns conflitos ocorrem por forte influência dos recursos hídricos, como o que envolve a Faixa de Gaza, nos permitindo perceber que o exemplo não nega a capacidade de ver tal motivação se reproduzir em larga escala em curto espaço de tempo, na medida em que a realidade se faça mais visível e perceptível, em escala global.

O exercício mental não é de agouro ou de alguém ser o portador de más notícias, sendo apenas o registro de uma realidade que já se faz presente em várias regiões do planeta e que, para alguns, poderia parecer que não representaria algo a nos impactar, na medida em que estamos acostumados com uma fartura de águas e matas e florestas e minérios.

Mas não podemos ficar isolado do mundo por muralhas inacessíveis ou por força bélica hábil a inibir as de países mais fortes militarmente. Ficar sujeito à cobiça e manobras por aquisição de — mais e maiores — imóveis rurais por estrangeiros, mais ainda quando se alvitra modificar a Lei 5.709/71, que regula o tema, como reflexo direto da CPI da Venda de Terras a Estrangeiros e dos escândalos a respeito, noticiado pela imprensa da época [13], que ocorreu no Congresso , em 1967, já havendo quem entenda que a Lei 13.986/2020 flexibilizaria regras, embora tramite no Congresso o projeto de lei a respeito — este sim, especial proposta normativa a tratar do tema.


[1] DEVISATE, Rogério Reis. Grilagem das Terras e da Soberania. Rio de Janeiro: ImagemArtStudio, 2017, p. 27.

[2] DEVISATE, Rogério Reis. Grilagem e cadastro ambiental rural  uma análise, para que o cadastro ambiental rural não seja desvirtuado e sirva à grilagem. Internet, artigo publicado em https://www.analisegeo.blog.br/single-post/2017/10/09/GRILAGEM-E-CADASTRO-AMBIENTAL-RURAL, 09.10.2017.

[3] DEVISATE, Rogério Reis. Projeto de lei criminaliza o uso do CAR para fins de grilagem. Site Consultor Jurídico, 25.3.2022. https://www.conjur.com.br/2022-mar-25/rogerio-devisate-pl-criminaliza-uso-car-grilagem

[4] LIBERTIStefanoLand grabbing. Come il mercato delle terre crea il nuovo colonialismo. Italian. Minimum Fax, 2011, 903 páginas.

[5] FRENCH, Howard W. China's Second Continent: How a Million Migrants Are Building a New Empire in Africa. USA. Knopf; 1st edition. 2014. 304 pages.

[6] DEVISATE, Rogério Reis. Terras para estrangeiros: e se o maior parceiro comercial virar concorrente? Site Consultor Jurídico, 28.4.2023. https://www.conjur.com.br/2023-abr-28/rogerio-devisate-compra-terras-produtor-estrangeiro

[7] BOMPAN, Emanuele e Marirosa Iannelli. WATER GRABBING: I conflitti nascosti per l'acqua nel XXI secolo. Verona: EMI, 2018.

[8] CETESB-SP. O problema da escassez de água no mundo. https://cetesb.sp.gov.br/aguas-interiores/informacoes-basicas/tpos-de-agua/o-problema-da-escasez-de-agua-no-mundo/

[9] Seca em Portugal: Governo admite tomar medidas mais fortes. Site SIC Notícias, Portugal, 16.5.2023: https://sicnoticias.pt/pais/2023-05-16-Seca-em-Portugal-Governo-admite-tomar-medidas-mais-fortes-3b9121d0

[10] Israel e Jordânia se unem para recuperar rio Jordão e mar Morto: Fundamentais nos ecossistemas do Oriente Médio, locais estão secando. Folha Uol. 19.1.2023: https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2023/01/israel-e-jordania-se-unem-para-recuperar-rio-jordao-e-mar-morto.shtml#:~:text=Segundo%20o%20professor%20Salameh%2C%20o,afetando%20a%20vida%20ao%20redor.

[11] WALLACE-WELLS, David. A terra inabitável: uma história do futuro. Título original The Uninhabitable Earth: A History of the Future - Tradução Cássio de Arantes Leite. São Paulo: Companhia das Letras, 2019 (trechos citados, às fls. 391 e 399).

[12] DEVISATE, Rogério Reis. Pansoberania? Não somos mais colônia. Jornal A Gazeta do Amapá. Domingo, 05.12.2020, p, 25. https://agazetadoamapa.com.br/coluna/655/pansoberania-nao-somos-mais-colonia

[13] Jornal Correio da Manhã, 31.8.1968. Aqui está a Amazônia que todos querem. http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=089842_07&pagfis=95114&url=http://memoria.bn.br/docreader#

 é membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da Academia Internacional de Direito e Ética, da Academia Fluminense de Letras, do Instituto Federalista e da União Brasileira de Escritores, presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU, membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ e do Ibap, autor de vários artigos e do livro Grilos e Gafanhotos Grilagem e coordenador da obra Regularização Fundiária: Experiências Regionais.

Revista Consultor Jurídico, 24 de maio de 2023, 11h23

 https://www.conjur.com.br/2023-mai-24/rogerio-devisate-grilagem-aguas

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