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sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

DIREITOS FUNDAMENTAIS - A proibição do retrocesso ecológico e as mudanças no Ministério do Meio Ambiente



Muito embora seja de lamentar profundamente, em que pese todos os avanços verificados no que diz com os níveis normativos da proteção ambiental no plano do Direito Internacional e interno dos Estados, assim como com um expressivo conjunto de outras medidas, veiculadas por políticas públicas, ações dos órgãos públicos e da ação da sociedade civil e mesmo decisões judiciais, a efetividade da proteção do meio ambiente segue sendo de baixa intensidade e exposta diuturnamente a poderosos ataques.
Nesse contexto, levar a sério os deveres de proteção estatal em matéria ambiental e os respectivos instrumentos disponibilizados para tal efeito é imperioso e carece de constante monitoramento. Dentre tais instrumentos, o instituto da assim chamada proibição de retrocesso ecológico (ou ambiental, se assim preferido) tem sido não apenas objeto de desenvolvimento doutrinário, mas também legislativo e mesmo jurisdicional, o que se dá também no caso brasileiro.
Questão (e problema) de central importância, relacionada ao funcionamento do instituto, é a possibilidade de se controlar e sindicar, a partir dele, as ações e omissões do poder público em todas as suas dimensões, de modo a impedir e ou sancionar aquelas que resultam em efetiva e mesmo potencial violação dos níveis indispensáveis (e normativamente exigidos) de proteção do ambiente.
Embora a vinculação, em princípio isenta de lacunas, do poder público seja em geral aceita pela doutrina e jurisprudência — no caso brasileiro já existem decisões dos tribunais superiores nesse sentido —, muitas perguntas seguem em aberto ou, pelo menos, ainda estão longe de uma solução minimamente sedimentada e satisfatória.
Uma das principais questões a serem enfrentadas — objeto precípuo da presente coluna — é a da vinculação do Poder Executivo em seara particularmente sensível, complexa e controversa, posto que diretamente relacionada com os assim chamados atos de natureza eminentemente política e discricionária, tidos, em regra e majoritariamente, como imunes ao controle por parte de outros atores estatais, em particular do Poder Judiciário.
O tema ganha atualidade e relevância no atual cenário político-ambiental brasileiro com as mudanças adotadas recentemente pelo presidente Jair Bolsonaro na estrutura administrativa-ambiental no âmbito federal. A extinção do Ministério do Meio Ambiente (MMA), por meio da sua incorporação ao Ministério da Agricultura, foi anunciada pelo presidente durante a sua campanha eleitoral em 2018, tendo o mesmo aparentemente desistido de concretizá-la após fortes críticas e oposição de entidades ambientalistas e diversos setores da sociedade, bem como de entidades ligadas ao próprio agronegócio[1].
Todavia, apesar do recuo no que diz com a extinção do MMA, isso não impediu que fosse impactada e em princípio mesmo significativamente fragilizada a estrutura administrativa-ambiental federal para efeitos de sua atuação com efetividade na proteção e promoção do meio ambiente. Isso se deu, como já sabido, mediante a reestruturação das atribuições dos ministérios levada a efeito por meio da Medida Provisória 870, de 1º de janeiro de 2019. Com isso, o que se deu na prática e de forma menos perceptível ao público em geral foi a consecução de uma das promessas da campanha presidencial do atual presidente da República, embora sem o ônus político e a força simbólica negativa que adviria da extinção do MMA, sobretudo perante a comunidade internacional.
Entre os pontos mais polêmicos da reforma ministerial, relativamente ao MMA, podemos destacar os seguintes: 1) a transferência do Serviço Florestal Brasileiro (SFB) e do Cadastro Ambiental Rural (CAR) para o Ministério da Agricultura; 2) a transferência da política de recursos hídricos, incluindo a Agência Nacional de Águas (ANA), para o Ministério de Desenvolvimento Regional; 3) o tema das mudanças climáticas teria sumido do espectro de atribuições do MMA, como a condução da própria política nacional e as negociações internacionais sobre o tema (por exemplo, em relação ao Acordo de Paris); 4) a extinção do Departamento de Educação Ambiental; 5) a extinção da Secretaria de Extrativismo, Desenvolvimento Regional e Combate à Desertificação e a transferência da agenda econômica sobre o extrativismo para o Ministério da Agricultura; 6) a extinção da Secretaria de Articulação Institucional e Cidadania Ambiental, sinalizando o movimento de distanciamento do atual governo em relação à sociedade civil que atua na área ambiental. Lançado esse balanço geral sobre o “enxugamento” das atribuições do MMA, passaremos a contextualizar tal cenário em face do princípio da proibição do retrocesso ecológico.
Tendo em conta tais medidas, o que se pergunta é se com isso restou de fato ou mesmo potencialmente fragilizada a capacidade de proteção do ambiente no Brasil, de modo a que possa ser acionado o assim chamado princípio da proibição de retrocesso ambiental, que é objeto de reconhecimento e desenvolvimento mais recente, mas já tido — nas palavras do ministro do STJ Herman Benjamin — como princípio geral de força cogente.
Convém destacar, ainda, que o instituto foi recentemente reconhecido mediante o Princípio 3, c, do Acordo Regional de Escazú para América Latina e Caribe sobre Acesso à Informação, Participação Pública na Tomada de Decisão e Acesso à Justiça em Matéria Ambiental (2018)[2]. Registra-se que, juntamente com a proibição de retrocesso, o diploma internacional também consagrou expressamente o princípio de progressividade, vinculando o Estado — em todas as suas manifestações —, no sentido de não apenas vedar recuos no regime legislativo e administrativo em matéria ambiental, mas, também, como um dever estatal, de atuar progressivamente, ou seja, por meio do fortalecimento e melhoramento do regime estatal de proteção da natureza.
O princípio da proibição de retrocesso ecológico, de tal sorte, opera como espécie de “blindagem protetiva” em face da atuação dos poderes públicos em geral, incidindo, para além de limitar a discricionariedade do legislador (Estado-legislador), também sobre eventuais recuos no tocante à adequação e capacidade da estrutura administrativa e organizacional do Estado (Estado-administrador) já consolidada para a proteção e promoção de determinado direito fundamental. Na temática ecológica, qualquer medida adotada pelo Poder Executivo, nos diferentes planos federativos, que resultar em redução desproporcional das estruturas organizacionais e procedimentais indispensáveis para a consecução, com eficácia, dos deveres estatais vinculativos — no caso, o dever de proteção ambiental — a ponto em especial de caracterizar uma proibição insuficiente (deficitária) de proteção, há de ser passível de ser sindicada, inclusive pela via jurisdicional.
O MMA, em linhas gerais, perdeu atribuições e autonomia extremamente significativas na reforma ministerial, abrindo caminho para o desmonte de políticas públicas ambientais nucleares como, por exemplo, a competência para o combate ao desmatamento, queimadas e desertificação, justamente no momento em que se verifica aumento galopante do desmatamento na Amazônia segundo dados do próprio governo federal[3]. Isso reflete diretamente no enfrentamento das mudanças climáticas, tema, aliás, que ficou sem uma definição clara sobre quem coordenará e executará a Política Nacional sobre Mudança do Clima (Lei 12.187/2009). Ao que tudo indica, no tocante às negociações internacionais sobre o tema, com a retirada de tal atribuição do MMA, o mesmo ficaria a cargo do Ministério de Relações Exteriores, chefiado por um ministro que já se manifestou publicamente no sentido de negar a existência do aquecimento global[4]. O enxugamento ou mesmo extinção de órgãos do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama)[5], como o Ibama, o ICMBio, as secretarias estaduais e municipais de Meio Ambiente e o próprio MMA, sem a criação de órgão ambiental equivalente e, portanto, impossibilitando, por exemplo, a fiscalização e a adoção de políticas públicas ambientais de modo minimamente suficientes para salvaguardar tal direito fundamental, indica claramente que se está em face de pelo menos potencial violação da proibição de retrocesso ecológico.
No âmbito doutrinário, colaciona-se, nessa senda, o magistério de Gavião Filho, no sentido de que aplicação da proibição de retrocesso no âmbito da perspectiva organizacional e procedimental dos direitos fundamentais impossibilitaria um “enxugamento” da estrutura administrativa posta hoje no Estado brasileiro para dar efetivação ao direito fundamental ao ambiente. A estrutura administrativo-organizacional do Estado Constitucional “Ambiental” brasileiro, conforme afirma o autor, está orientada no sentido da realização do direito fundamental ao ambiente, notadamente pela distribuição de sua atuação política e administrativa para as três entidades federativas com a fixação de um órgão nacional. A “organização ou estrutura administrativa”, que dá forma ao direito à organização, encontra-se protegida pela proibição de retrocesso, o que acarreta a impossibilidade de o Estado extinguir os órgãos ambientais, salvo criando outros com a mesma ou superior eficácia. A não consideração de tal situação pode implicar violação de posições jurídicas fundamentais em matéria ambiental, passível de correção pela via judicial por intermédio dos mecanismos disponíveis, tais como a ação popular, a ação civil pública, a ação direta de inconstitucionalidade, a ação de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de segurança, dentre outros que poderiam ser colacionados[6].
O exercício efetivo dos direitos fundamentais — e isso não é diferente em se tratando dos direitos ecológicos — passa, necessariamente, pela criação, na estrutura organizacional-administrativa do Estado, de instituição ou instituições públicas empenhadas em assegurar condições fáticas necessárias para o exercício dos direitos fundamentais (no caso aqui tratado, do direito fundamental ao ambiente), inclusive como expressão da sua dimensão (ou perspectiva) organizacional.
A estrutura administrativa do Estado em matéria ambiental, como “braço” do Poder Executivo destinado a dar concretude aos objetivos constitucionais do artigo 3º, CF e aos deveres constitucionais gerais e especiais, deve em especial se estruturar e criar condições efetivas para tanto e não atuar em sentido contrário. Do contrário, ou seja, diante de um cenário de inexistência ou insuficiência de tal estrutura e atuação administrativa — por exemplo, a ausência de uma política pública de enfrentamento das mudanças climáticas concreta e efetiva para executar a Lei 12.187/2009 e os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil em tal matéria —, subverte-se o regime jurídico ecológico e submete-se o direito fundamental em questão a um cenário de proteção deficitária e, portanto, não alcançando condições fáticas necessárias ao seu exercício por parte dos seus titulares, tanto individual quanto coletivamente considerados (caput do artigo 225 da CF/1988).
Com isso, é claro, ainda que se possa (e o sustentamos enfaticamente) ter como corretas as premissas aqui traçadas em linhas gerais, não se está explorando todas as nuances do problema nem oferecendo todas possíveis respostas. Da mesma forma, não se está a dizer que o Poder Executivo não dispõe de considerável margem de discrição no que diz com a sua estruturação, organização e funcionamento. Portanto, mesmo alterações importantes, incluindo a supressão de órgãos etc., não se encontram prima facie vedadas, mas, em especial quando operando de modo adequado na proteção e promoção da proteção de direitos fundamentais, aqui com destaque para a proteção ambiental, sua extinção ou esvaziamento implicam elevado ônus de justificação, dando conta de que com tais medidas o que se pretende e terá condições efetivas de assegurar é pelo menos o mesmo nível de eficácia.
Assim, o que, ao fim e ao cabo aqui se pode adiantar, é que o governo federal tem muito a justificar e explicar também no caso das diversas e impactantes alterações (em regra cortes e enxugamentos) levadas a efeito na estrutura organizacional, funcional e procedimental do MMA. À sociedade civil organizada e aos agentes responsáveis pela fiscalização da atuação do poder público, até mesmo com recurso ao Poder Judiciário, impõe-se o dever cívico da vigilância permanente, crítica e proativa. É claro que com isso também não se está a definir aqui como e em que medida (em especial no que diz respeito à natureza da intervenção na seara do Poder Executivo) se deverá dar eventual prestação jurisdicional. Mas, a depender de diversos precedentes do STF no que diz com o controle da administração (inclusive em matéria ambiental), é de se aguardar um posicionamento tendencialmente engajado com a proteção do ambiente. Pelo menos, é o que se espera.

[1] Matéria sobre o tema disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2018/11/bolsonaro-recua-em-fusao-de-meio-ambiente-e-agricultura-e-diz-nao-querer-xiita-ambiental.shtml. Acesso em 22/1/2019.
[2] “(...) Artigo 3 - Princípios - Na implementação do presente Acordo, cada Parte será́ guiada pelos seguintes princípios: (…) c) princípio de vedação do retrocesso e princípio de progressividade.”
[3] Disponível em: http://www.mma.gov.br/informma/item/15259-governo-federal-divulga-taxa-de-desmatamento-na-amaz%C3%B4nia.html e https://www.wwf.org.br/?68662/maior-aumento-desmatamento-amazonia-dez-anos. Acesso em: 23/1/2019.
[4] Disponível em: https://g1.globo.com/natureza/blog/amelia-gonzalez/post/2018/11/16/reacoes-de-ambientalistas-a-escolha-do-novo-ministro-cetico-do-clima.ghtml. Acesso em: 23/2/2019.
[5] Artigo 6º da Lei 6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente).
[6] GAVIÃO FILHO, Anízio Pires. Direito fundamental ao ambiente. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, pp. 91-92. O tema em questão encontra-se, em certa medida, colocado na ação proposta pelo Ministério Publico do Rio Grande do Sul contra o estado do Rio Grande do Sul (Processo 0021210-55.2017.8.21.0001), com o propósito de reverter medida adotada pelo Poder Executivo com o objetivo de extinguir a Fundação Zoobotânica (FZB), que abrange o Jardim Botânico de Porto Alegre e o Museu de Ciências Naturais. Disponível em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2018/10/19/justica-do-rs-revoga-decreto-que-extinguiu-fundacao-zoobotanica.ghtml. Acesso em: 22/1/2019.
 é professor titular da Faculdade de Direito da PUCRS, desembargador no TJ-RS, doutor e pós-doutor em Direito.

Revista Consultor Jurídico, 15 de fevereiro de 2019, 8h03

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