A
globalização teve defensores de peso em 2017, mas o nacionalismo e o
protecionismo seguem sendo fontes de ansiedade. O aquecimento global não
mostra sinais de arrefecer, gerando mais ações legislativas e
judiciais. Nos concentraremos aqui nesses primeiros temas, mas outros
assuntos tratados em retrospectivas passadas continuaram causando
preocupação. O ano que terminou, infelizmente, também teve a sua quota
de atentados terroristas, que atingiram cidades como Istambul,
Manchester, Londres, Mogadíscio, Teerã, Barcelona, Cabul, Estocolmo,
Lahore, Bir Al-Abed, Nova York e São Petersburgo.
Boa notícia foi o
recuo do Estado Islâmico, com a liberação das cidades de Mossul, no
Iraque e Raqqa, na Síria. Apesar disso, e do anúncio de início da
retirada das tropas russas feito pelo presidente Vladimir Putin, a
guerra civil na Síria continua. Prossegue, também, ainda que em menor
grau, a crise dos refugiados decorrente dos conflitos em países da
região. Em 2017, acrescentou-se ao problema a perseguição sofrida pelos
rohingyas em Myanmar, que levou 630 mil pessoas dessa etnia a fugirem
para Bangladesh. E, na América Latina, até o meio do ano, a crise
humanitária causada pelo governo Maduro havia levado 52 mil venezuelanos
a pedirem refúgio em outros países. Por fim, no Irã, 2017 terminou com
uma onda de protestos que segue neste ano. O início de uma Primavera
Persa?
A globalização segue enfrentando seus dilemas
Se 2016 foi marcado por um despertar das forças antiglobalização (como abordado em minha retrospectiva),
em 2017 algumas dessas forças seguiram em movimento e outras a elas se
contrapuseram, mantendo a tensão entre globalização e fragmentação que
já dura algumas décadas.
Trump contra o mundo
Em seu discurso de posse no começo do ano, o presidente norte-americano Donald Trump reiterou sua doutrina “America First” que, de fato, foi a diretriz que aplicou à política exterior nos meses seguintes.
Em seu discurso de posse no começo do ano, o presidente norte-americano Donald Trump reiterou sua doutrina “America First” que, de fato, foi a diretriz que aplicou à política exterior nos meses seguintes.
No
entanto, diversas promessas nessa área feitas durante sua campanha não
foram cumpridas, seja por falta de apoio político, seja por decisão
judicial. A liberação de recursos para construir o muro na fronteira com
o México foi vetada pelo Congresso. Sua política anti-imigração chegou a
entrar em vigor, mas vem sendo contestada em juízo. O acordo nuclear
com o Irã, considerado por ele “desastroso”, segue em vigor. E Trump
recuou nas críticas que vinha fazendo em relação à Otan.
Por outro
lado, iniciou um processo de renegociação do Nafta, cancelou as
conversas com a União Europeia para criação da Parceria Transatlântica
(TTIP) e retirou os Estados Unidos da Parceria Transpacífica (TPP).
Decidiu sair da Unesco e do pacto da ONU sobre refugiados. Anunciou a
intenção de se retirar do Acordo de Paris e começou a desmontar as
medidas ambientais implementadas por seu antecessor, Barack Obama.
Trump
passou o ano, ainda, tuitando insultos contra o líder norte-coreano Kim
Jong-un que, com suas provocações e sucessivos testes de mísseis
intercontinentais, preocupou o mundo com a ameaça de uma guerra nuclear e
ganhou em troca pesadas sanções do Conselho de Segurança da ONU, que
impôs barreiras às exportações de petróleo para seu país. Em dezembro,
Trump resolveu iniciar uma polêmica em outra parte do Planeta, ao
anunciar que os Estados Unidos passariam a reconhecer a cidade de
Jerusalém como capital de Israel. A reação da comunidade internacional
deixou claro que, se a intenção de Trump era ressaltar seu
isolacionismo, ele foi bem-sucedido. O Conselho de Segurança votou em
peso pela manutenção da capital em Tel Aviv, obrigando os americanos a
exercerem seu poder de veto, o que não ocorria há mais de seis anos, e a
Assembleia Geral adotou resolução no mesmo sentido, com a aprovação de
128 países.
Trump terminou o ano reconhecendo, ao anunciar suas
diretrizes de política externa, que uma nova era de competição global
está em curso e que, por isso, sua estratégia levará em conta um mundo
em que os americanos confrontam dois poderes “revisionistas”: a Rússia e
a China.
A China pede passagem
Se Trump quer que os Estados Unidos se envolvam menos com os assuntos globais, Xi Jinping, reeleito em outubro secretário-geral do Comitê Central do Partido Comunista da China, parece disposto a assumir o papel de campeão da globalização.
Se Trump quer que os Estados Unidos se envolvam menos com os assuntos globais, Xi Jinping, reeleito em outubro secretário-geral do Comitê Central do Partido Comunista da China, parece disposto a assumir o papel de campeão da globalização.
Em janeiro, no Fórum Econômico
Mundial em Davos, na Suíça, Jinping já havia defendido o livre comércio e
o multilateralismo, afirmando que “Perseguir o protecionismo é como
trancar a si mesmo em um quarto escuro. Embora o vento e a chuva sejam
mantidos lá fora, também o serão a luz e o ar”. Em julho, durante a
reunião do G20 em Hamburgo, na Alemanha, voltou a se posicionar da mesma
forma.
Muito além do discurso, a China – que, vale lembrar, tende
a se beneficiar da saída dos Estados Unidos da TPP – tem procurado
expandir seu alcance político e econômico por meio do auxílio financeiro
a países em desenvolvimento e de iniciativas relacionadas à
infraestrutura, como a denominada “Um Cinturão, uma Rota” (OBOR na siga
em inglês), também conhecida como a Nova Rota da Seda, plano iniciado em
2013 que visa reeditar os históricos caminhos comerciais entre o
Oriente e o Ocidente. Em maio, Xi Jinping anunciou que a China injetará
mais US$ 70 bilhões nesse projeto.
Assim como pretende se
contrapor a Trump em relação às virtudes da globalização, Xi Jinping
parece querer dar o exemplo para o presidente norte-americano também em
outra área em que este último é reprovado: o combate às mudanças
climáticas. Enquanto Trump se prende ao carvão, a China anunciou que
pretende investir aproximadamente US$ 360 bilhões para que, até 2020,
metade da eletricidade do país provenha de energias renováveis.
A Europa entre a integração e a fragmentação
A aceleração do processo de globalização na década de 1990 veio acompanhada de uma onda de integração regional. O movimento de aglutinação que levou ao surgimento de novos blocos econômicos – como o Mercosul, criado em 1991, e o Nafta, em 1992 – e a importantes avanços em blocos existentes – como o Tratado de Maastricht, da União Europeia, de 1992 – é uma característica da globalização.
A aceleração do processo de globalização na década de 1990 veio acompanhada de uma onda de integração regional. O movimento de aglutinação que levou ao surgimento de novos blocos econômicos – como o Mercosul, criado em 1991, e o Nafta, em 1992 – e a importantes avanços em blocos existentes – como o Tratado de Maastricht, da União Europeia, de 1992 – é uma característica da globalização.
Questionar a
globalização, portanto, quase sempre leva a questionar a integração
regional e, desde a crise de 2008, esses questionamentos se agravaram.
Em
2017, as forças centrífugas da fragmentação continuaram a se contrapor
às forças centrípetas da integração, como demonstram os exemplos vindos
da Europa. Se na França a vitória de Emmanuel Macron sobre a
nacionalista Marine Le Pen foi um alívio para a União Europeia, no Reino
Unido o “Brexit” continuou avançando, com a autorização em dezembro,
pelos líderes da União, para o início da segunda fase de negociações
para a retirada britânica.
Porém, nesse quesito, o centro das
atenções em 2017 foi a Espanha, onde o que se contestou não foi a
integração regional, mas a própria unidade nacional. Lá, os irredutíveis
separatistas catalães liderados pelo governador Carles Puigdemont
causaram alvoroço ao insistir na realização, em 1º de outubro, de um
plebiscito considerado ilegal pelo Tribunal Constitucional espanhol e
duramente reprimido pelo governo central de Madri. A vitória dos
separatistas os levou a declarar unilateralmente a independência. Em
reação, o presidente do governo espanhol Mariano Rajoy solicitou a
destituição do governo catalão e a dissolução do Parlamento regional,
convocando as eleições que acabaram conferindo nova maioria aos
independentistas, o que deve manter a instabilidade política na região.
Percalços e avanços do livre comércio
A ausência de resultados na XI Conferência Ministerial da OMC, realizada em dezembro, causou decepção, e a postura de Trump em relação ao multilateralismo em geral e à OMC em particular não contribui para reverter o quadro de pessimismo. Pior, os Estados Unidos na prática têm impedido o preenchimento das três vagas em aberto no Órgão de Apelação da OMC, prejudicando o funcionamento dessa segunda instância do sistema de solução de disputas da organização.
A ausência de resultados na XI Conferência Ministerial da OMC, realizada em dezembro, causou decepção, e a postura de Trump em relação ao multilateralismo em geral e à OMC em particular não contribui para reverter o quadro de pessimismo. Pior, os Estados Unidos na prática têm impedido o preenchimento das três vagas em aberto no Órgão de Apelação da OMC, prejudicando o funcionamento dessa segunda instância do sistema de solução de disputas da organização.
A frustração com as grandes
negociações multilaterais tem levado à busca de acordos bilaterais ou
plurilaterais, como já tratado anteriormente neste espaço. 2017 assistiu
a algumas ações nessa direção.
Em dezembro, foi concluída a
negociação do Acordo de Parceria Econômica (EPA) entre Japão e União
Europeia, que passará a ser o maior tratado comercial bilateral já
celebrado por esta última.
Apesar da saída dos Estados Unidos, os
demais países que integravam a TTP retomaram as discussões para
estabelecer a parceria sob moldes mais ou menos similares aos originais,
agora sob o nome de “Comprehensive and Progressive Agreement for
Trans-Pacific Partnership” (CPTPP, ou TPP-11), tendo anunciado, em
Conferência Ministerial realizada em novembro, estar muito próximos de
um acordo.
Outro tratado de livre comércio que quase foi assinado
no ano que passou foi aquele entre Mercosul e União Europeia, que deve
ficar mesmo para 2018. Ao menos, outra negociação que também vinha se
estendendo há anos foi concluída positivamente em 2017: em dezembro, na
Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul, foi assinado o Protocolo de
Contratações Públicas, que determina que as licitações para compras
governamentais de bens e serviços e obras públicas devem ser abertas
para os países do bloco, garantindo acesso parcial a um mercado de US$
80 bilhões.
O Direito Internacional da Sustentabilidade ganha terreno
Como já tive a oportunidade de discutir em artigo aqui na ConJur,
o surgimento de normas, instituições e princípios específicos tem
levado à formação de um Direito Internacional da Sustentabilidade,
construído por meio de algumas vertentes. Uma delas se baseia nas
legislações nacionais e nos acordos internacionais que tratam do tema.
Outra, em iniciativas junto ao poder judiciário que visam garantir a
efetividade da primeira. Em 2017, ambas frentes continuaram a evoluir.
Os Estados contra as mudanças climáticas
O ano que acabou foi marcado por furacões como Harvey, Irma e Maria que provocaram mais de 800 mortes e danos que superaram US$ 250 bilhões em locais como Saint Martin, Porto Rico, Texas e Flórida.
O ano que acabou foi marcado por furacões como Harvey, Irma e Maria que provocaram mais de 800 mortes e danos que superaram US$ 250 bilhões em locais como Saint Martin, Porto Rico, Texas e Flórida.
Entretanto,
nem a preocupação com a possível contribuição do efeito estufa para o
agravamento das tempestades tropicais e outros desastres ambientais, nem
a entrada em vigor do Acordo de Paris no final de 2016 foram
suficientes para impedir que as emissões de CO2 voltassem a aumentar em
2017. Estas deverão superar as 40 gigatoneladas, número similar ao de
2015, quando haviam atingido nível recorde.
Por isso, o clima na
COP 23 que ocorreu em novembro em Bonn, na Alemanha e foi presidida por
Fiji, país que corre o risco de desaparecer por conta do aumento do
nível dos oceanos, deveria ser de urgência. Apesar disso, poucas
decisões de impacto foram tomadas na Conferência, considerada como uma
etapa de transição onde se negociou o “Livro de Regras” para
implementação do Acordo de Paris. Ponto positivo foi a presença de
políticos e empresários dos Estados Unidos que, independentemente da
decisão de Trump de retirar o país do Acordo, reiteraram seu
comprometimento com a redução de emissões.
Outra reunião
importante ocorreu em 12 de dezembro, dia em que se comemorou 2 anos do
Acordo de Paris. Nessa mesma cidade, o presidente francês Macron –
ocupando o vácuo deixado por Trump – procurou assumir um papel de
liderança no combate às mudanças climáticas ao convocar sua própria
“Cúpula do Clima”. Esta contou com a presença de mais de 50 chefes de
Estado e de governo, merecendo destaque compromissos voltados à
eliminação de incentivos aos combustíveis fosseis – como o anúncio do
Banco Mundial de que, após 2019, não mais financiará projetos para
extração de petróleo ou gás.
Essas iniciativas vêm se somar a
muitas outras surgidas nos últimos anos. Somente em nível nacional,
segundo levantamento recente, o número de leis e políticas relacionadas
às mudanças climáticas aumentou de 60 em 1997 para aproximadamente 1400
atualmente, espalhadas pela maioria dos países, muitas delas com nível
constitucional. Graças a essa proliferação, multiplicam-se também os
litígios para combater o aquecimento global.
Litigando pelo Clima
Na Retrospectiva de 2015, tive a oportunidade de discutir a evolução da jurisprudência por meio do caso iniciado naquele ano, no qual o Estado holandês foi condenado a reduzir as emissões de gases de efeito estufa a fim de cumprir as obrigações assumidas em acordos internacionais – processo que se encontra em fase de recurso, devendo ser julgado no início de 2018.
Na Retrospectiva de 2015, tive a oportunidade de discutir a evolução da jurisprudência por meio do caso iniciado naquele ano, no qual o Estado holandês foi condenado a reduzir as emissões de gases de efeito estufa a fim de cumprir as obrigações assumidas em acordos internacionais – processo que se encontra em fase de recurso, devendo ser julgado no início de 2018.
Desde
então, ações similares foram propostas em diversos países, como
Austrália, Paquistão, Áustria, Colômbia, Reino Unido, Espanha e Noruega,
conforme o relatório Status of Climate Change Litigation – A Global
Review, publicado pela ONU em maio. Até então, como mostra esse estudo,
ações judiciais relacionadas às mudanças climáticas haviam sido
iniciadas em 24 países, 654 delas apenas nos Estados Unidos e mais de
230 nos outros países combinados.
De modo geral, esse movimento se
baseia em duas tendências: fazer com que os Estados respeitem seus
compromissos ambientais – como no caso proposto contra o governo
holandês – e responsabilizar empresas por sua contribuição para o
aquecimento global. Esta segunda tendência, especialmente, tem ganhado
impulso nos últimos anos, como demonstram os dois exemplos a seguir.
No
primeiro deles, a cidade californiana de São Francisco anunciou em
setembro que processaria cinco das maiores produtoras mundiais de
combustíveis fósseis – no que foi seguida por sua vizinha, Oakland. A
ação judicial tem como objetivo obrigar essas empresas a dividir os
custos referentes à construção de barragens necessárias para proteger a
cidade da elevação do nível do mar.
Em outro caso emblemático, o
Tribunal Regional Superior de Hamm, na Alemanha, permitiu em novembro o
prosseguimento de ação judicial iniciada em 2015 pelo agricultor peruano
Saul Lliuya contra a empresa de energia alemã RWE, na qual aquele
reclama indenização por danos à sua propriedade decorrentes de
inundações causadas pelo degelo de geleira nos Andes peruanos. A
possibilidade de que seja atribuída responsabilidade parcial a uma
empresa específica – Lliuya alega que a RWE, por representar 0,47% de
todas as emissões de gases de efeito estufa do Planeta, deve responder
proporcionalmente pelos prejuízos causados – seria um marco importante
nas disputas envolvendo as mudanças climáticas e no tão necessário
desenvolvimento do Direito Internacional da Sustentabilidade.
Que
neste ano que se inicia aquilo que nos aproxima prevaleça sobre o que
nos separa, que o que temos em comum seja mais importante do que nossas
diferenças, e que exerçamos nosso papel na construção de um mundo mais
solidário e mais sustentável.
Eduardo Felipe Pérez Matias é sócio de Nogueira, Elias, Laskowski e Matias Advogados. Doutor em Direito Internacional pela USP e autor dos livros A Humanidade contra as cordas: a luta da sociedade global pela sustentabilidade e A humanidade e suas fronteiras: do Estado soberano à sociedade global, vencedor do Prêmio Jabuti. Twitter: @EduFelipeMatias
Revista Consultor Jurídico, 2 de janeiro de 2018, 12h12
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