Como previsto, HTS demonstrou mais uma vez ser a antessala da desintegração da Síria à serviço de Israel e da Turquia.
por Luiz Messeder
23 de agosto de 2025·
Forças beduínas sírias. Foto: ReproduçãoConforme previsto numa matéria anterior, o governo de Ahmed Al-Shara, Al Julani, membro do Hayat Tahrir al-Sham (HTS), ex-Al Nusra (Al-Qaeda da Síria) e também, durante um certo tempo, aliado tácito do ISIS, antes trazer qualquer paz e estabilidade à região, como prometiam os defensores da “Revolução Síria”, demonstrou mais uma vez ser a antessala da desintegração da Síria à serviço de Israel e da Turquia. Enquanto ao leste ressurge praticamente o Estado Islâmico do vácuo de poder após o colapso do regime Assad e ao norte as pretensões curdas à independência e unificação dos seus enclaves míngua, ao sul o Conselho Militar de Suwayda, suposto representante do grupo étnico-religioso druzo vestiu a carapuça de “gurkhas”, da colônia israelense em solo sírio. Assim, não importa o quão servilmente se arraste Al-Shaara aos pé de Trump e Netanyahu, esse foi preterido em favor de uma facção muito mais confiável pela condição geopolítica, que os numerosos e revoltosos árabes sunitas (incluindo os salafistas e wahabistas bancados pelas monarquias do Golfo).
Israel: Divide et impera
Nenhuma potência regional árabe ou islâmica, mesmo a mais servil, é desejável idealmente ao governo israelense. Naturalmente, dado suas dimensões (econômicas, militares e demográficas) e a disposição estadunidense em bancá-los, faz enquanto tolera algumas (e mesmo “apoia”), sabota e ataca outras. Contudo, o fato de tolerá-la antes um princípio ou o rudimento de uma aliança, pela experiência histórica, mais demonstra uma trégua ou o fomento à divisão no flanco adversário. No entorno mais próximo inclusive de Israel, nem mesmo a condição de estabilidade é desejada, senão a própria mínima estabilidade estatal tem sido oposta aos interesses do enclave euro-judeu. Com exceção da Jordânia, ao custo da sujeição mais patética ao EUA e Israel demonstrada mais uma vez colaborando com a defesa aérea de Israel contra os ataques iranianos, todas as áreas vizinhas às Israel sofrem com a instabilidade. O Líbano desde a década de 1970 está dividido em conflitos sectários e seu monopólio legítimo de força é uma ficção; os enclaves palestinos na Cisjordânia e Gaza vivem sob bloqueio e ataques constantes; a Síria desde 2011 em guerra civil com apoio israelense e o Egito – mesmo na condição indiscutível de potência regional – desde Nasser tem estado sob o jugo governos militares que impedem a ascensão dos islamistas ao poder e tem no Sinai, área de fronteira com Israel, a insurgência do Estado Islâmico.
Para manter essa situação Israel, no melhor estilo de sua ascendente inglesa, tem manejado suas históricas doutrinas de “equilíbrio de forças” e manejar populações maiores através do sectarismo e do apadrinhamento de minorias (chamadas raças marciais no antigo “Raj Britânico”). No Oriente Médio, junto ao EUA, enfraqueceu o nacionalismo árabe apoiando ou tolerando o crescimento do islamismo político que nos demais países se tornou a ideologia principal da resistência. No contexto da Guerra Irã-Iraque, mesmo com a postura declaradamente antissionista do Imã Khomeini preferiu-o tacitamente ao regime Saddam Hussein, mais poderoso e portanto efetivo em sua açãoantissionista, e na Guerra do Golfo também favoreceu as monarquias do Golfo ao nacionalismo árabe. Recentemente na Síria, apoiou não apenas os “rebeldes sírios” salafistas como Al-Julani como também o Estado Islâmico que em retribuição nunca atacou Israel, mas sempre seus inimigos “hereges”. Agora com o HTS ao poder, consolidando algum nível de controle sobre o território sírio, Israel agradece a traição à mesma moeda e continuou atacando o território sírio desde então destruindo suas capacidades militares antes que caíssem em mãos do HTS e agora fomentando a formação de um enclave druzo no sul do país, perigosamente perto de Damasco, ao qual bombardeia sem dificuldades.
Como era de se esperar de mais de uma década de conflito aberto e tensões sectárias, o governo salafista sírio logo ao chegar ao poder recrudesceu a opressão sobre as minorias sírias exercendo uma pressão centrífuga no estado sírio. Não apenas os drusos, como também os curdos, alauítas, xiitas e cristãos, diante da opressão tem em diferentes medidas resistido aos intentos dos grupos favoráveis ao governo de Damasco. Aqui e ali manifestações, organizações de milícias/insurgências e mesmo a dificuldade do HTS em trazer as Forças Democráticas Sírias (liderado pelas facções curdas) e o Conselho Militar de Suwayda a se integrar no novo governo e exército sírio dão o contorno da situação. Aliás, até no corpo do conjunto de rebeldes sírios ainda não se pode falar numa unificação plena de comando das forças militares, o que é demonstrado pelos ataques de grupos armados beduínos sírios sunitas aos drusos de Suwayda, já declaradamente protegidos de Israel, aparentemente à revelia de Al-Shaara.
Em resposta, de forma similar ao que foi tentado e fracassou no Irã, Israel realizou ataques de precisão contra prédios públicos e instalações militares sírios, inclusive vitimando membros do governo de Al-Shaara, levando a fuga deste da capital Damasco menos de oito meses depois que seu antecessor Assad. Sabendo se tratar também de outra manobra típica israelense, desde o Haganah e Irgun, é o magnicídio. Seu intuito geralmente é por um lado o terror e a desmoralização dos adversários, por outro a decapitação de lideranças que enfraquecesse ou levasse ao colapso as organizações (assim foi com o Hamas, Hezbollah e o com o Irã). No caso do novo governo sírio, além desses dois objetivos, considerando sua origem multitudinária entre vários grupos salafistas sob a batuta de Al-Shaara pode ser gerar um desequilíbrio de forças dentro do governo que levassem não apenas a rendição ou a queda do governo, mas a desintegração da Síria que lhe daria o tempo necessário para expandir sua ocupação além do Golã em direção à Damasco e no outro flanco da capital e seu estado principesco druso.
Lembremos que nos últimos dias, em negociação com Israel, Ahmed Al-Shaara condicionou a adesão da Síria aos “Acordos de Abraão” à devolução das Colinas de Golã, aliás, nada seria mais poético que Al-Julani retomar o Jaulan. Em que pese seu servilismo, na condição de pretenso chefe de estado e governo sírio, o ex-membro da Al-Qaeda tinha que minimamente conseguir uma vitória para consolidar sua posição frente a oposição. Fazendo um paralelo com a história egípcia, tal como o Anwar Al Sadat ao romper com a política pan-arabista e pró-soviética de seu antecessor Nasser e se alinhar ao EUA e Israel precisava de uma conquista para justificar sua virada aos antigos inimigos e sua renúncia do pan-arabismo militante, o pretenso líder sírio que coleciona ultrajes a integridade ao seu país, ao menos poderia se orgulhar que conquistar aquilo que Assad nunca conquistou com sua intransigência à Israel. Mas parece que não é o interesse de Netanyahu com sua geopolítica escatológica. Se Israel pretendesse de alguma forma, estabilizar a Síria sob Ahmed Al-Shaara jamais promoveria algum ataque ultrajante desse tipo e possivelmente ensaiaria alguma cessão, por diminuto que fosse, para parabenizar o “pragmatismo” das novas lideranças sírias ao abandonarem a causa palestina.
Acordo de Camp David entre Al Sadat e Manehem Begin em 1978 mediado pelo então presidente estadunidense Jimmy Carter. Foto: Reprodução
Acordo de Camp David entre Al Sadat e Manehem Begin em 1978 mediado pelo então presidente estadunidense Jimmy Carter. Foto: ReproduçãoA Guerra dos Diádocos: Turquia e Israel
Apesar de nessa altura ninguém acreditar nas bravatas anti-sionistas de Erdogan, é bem conhecido que suas pretensões expansionistas nos países vizinhos à Turquia, como o caso do Chipre, Armênia (via Azerbaijão), Iraque e Síria. Em todos esses países a Turquia, inclusive antes de Erdogan, buscava fortalecer sua posição e instrumentalizar minorias túrquicas ao seu projeto irredentista. Em alguns períodos se utilizou mais do etno-nacionalismo à moda europeia, outras vezes adotando narrativas pan-islâmicas, apesar da Turquia, para os padrões do Oriente Médio, ser um país bastante secularizado. Na Síria, em particular, Erdogan tanto instrumentalizar as minoria turca e turcomana no norte do país como também o fundamentalismo salafista da Al-Qaeda e Estado Islâmico para desestabilizar o regime Assad, aliado da também potência regional Irã.
Contudo, diferente de Israel que antes apoiar um projeto político para a Síria, tem como projeto para aquela região o caos, a Turquia de Erdogan tem bons motivos para querer um vizinho minimamente estável, ainda que não em condições de obstaculizar qualquer iniciativa de Ancara, pelos seguintes motivos: A desintegração da Síria reforçaria os movimentos separatistas curdos, incluindo os da própria Turquia.
Uma balcanização do país pode resultar em guerra prolongada na fronteira turca, agravando o problema dos refugiados e facilitando a atuação de forças hostis.
Uma Síria estável, porém fraca, seria mais fácil de controlar indiretamente do que uma fragmentada, propensa a alianças com rivais turcos.
Em outras palavras, a secessão síria naufragaria o plano turco de se apresentar como sátrapa do EUA num período em que este considera reorientar suas forças para o leste asiático no intuito de responder ao crescimento chinês no cenário internacional. Para tal – como também para honrar minimamente um dos seus compromissos de campanha – Trump necessita reduzir sua presença direta no leste europeu e no Oriente Médio, dois importantes atoleiros militares e drenos de recursos estadunidenses, sem ao mesmo tempo sofrer derrotas estratégicas nessas regiões. Assim, na Europa tem apostado num acordo que contenha (pois reverter é praticamente impossível) a expansão russa na Ucrânia e no rearmamento europeu; no sul da Ásia aposta na Índia, enquanto no Oriente Médio Erdogan busca se apresentar como alternativa mais viável que Israel cuja existência artificial tem sua manutenção muito dispendiosa num momento que a máquina ianque precisa conter gastos.
Por outro lado, como já tratado no artigo anterior, Israel pela própria geopolítica de enclave é o aliado ideal para o EUA, não apenas por sê-lo, mas por ser imune aos projetos de integração regionais e sempre malquisto pelos vizinhos. Já dizia Biden quando em seus tempos de lucidez, que se não houvesse Israel, caberia ao EUA criá-lo. E talvez, dada a insuficiência de Israel em cumprir suas tarefas sozinho, se considere repetir a fórmula criando um Curdistão ou um “Drusistão”.
A questão central é a que preço? Pois, mesmo com o massivo apoio econômico estadunidense, Netanyahu está metido em um atoleiro em Gaza e tem seu principal porto no Mar Vermelho bloqueado. Será que Trump irá consentir a abertura de mais uma frente israelense em Suwayda?
Mesmo com a superioridade aérea, sem tropas no chão, a tendência é a vitória das forças tribais sírias contra o Conselho Militar de Suwayda que conforme vem perdendo a batalha vai se humilhando na expectativa de Israel intervir. Recentemente um Sheikh druso apelou que Israel anexasse o enclave é já são comuns as bandeiras israelenses içadas junto às tradicionais bandeiras drusas. Entretanto parece remota uma intervenção por terra de Israel em defesa de seus cipaios drusos, pois se nem o cativeiro de próprios cidadãos euro-judeus em Gaza parece comover Netanyahu, quem dirá a perseguição de árabes.
Foto: Jerusalem Post
Foto: Jerusalem PostO que podemos esperar?
Infelizmente os mais prejudicados com isso são os próprios drusos, que devido a desmando de suas lideranças os empurram para o triste destino dos tutsis de Ruanda. Principalmente no Oriente Médio onde a política se camufla em formas identitários (etnia e credo religioso), não parece que as futuras lideranças sírias saberão ou irão querer educar o povo sírio a diferenciar o povo druso que lá vive há mais de mil anos dos senhores de guerra traidores de Suwayda.
Sobre a pugna pela Síria entre Turquia e Israel, sem a intervenção estadunidense em favor do último, tenderá para o lado turco e por isso não interessa para Erdogan uma partição do país, mesmo que lhe conferisse alguma porção do país como consolação. A despeito do desejo de colorir mais seções do mapa do Oriente Médio, para a Turquia atual compensa muito mais exercer o controle indireto sobre uma Síria inteira do que uma fatia da mesma.
De forma geral a maior vencedora dos últimos conflitos na Ucrânia e Oriente Médio devido à sua localização e a atuação dúbia tem sido a Turquia. Por um valor bem menor que o vizinho sionista tem protegido bases da OTAN no Oriente Médio e reduzindo a influência do Irã no Levante. Tudo isso tem sido considerado pelas grandes potências e quem sabe um dia, para alegria de Erdogan, a crise os leve a elegê-lo seu sátrapa oficial. Era o que tanto queria Golbery em sua geopolítica para o Brasil: a hegemonia do Atlântico Sul em reconhecimento aos bons serviços para o EUA num eventual remanejamento de suas forças.

Al-Shaara, sob o nome Al-Jawlani (Julani), em trajes jihadistas sendo retratado como terrorista pelo EUA (2017-2024). Foto: Reprodução
Al-Shaara em pose de estadista moderado com Macron. Foto: Reprodução
Al-Shaara em pose de estadista moderado com Macron. Foto: ReproduçãoPara a Síria, a ocasião ironicamente convida o mercenário do Ocidente, Ahmed Al-Shaara a assumir a posição de defensor da pátria frente à tentativa de partição da Síria. Seja derrotando os revoltosos drusos, como confirmando sua representação civil em seu governo. Se estará a altura não saberemos, mas pode ser mais uma reviravolta na carreira de um homem que, assumidamente, se politizou na Segunda Intifada, assistiu feliz ao 11 de setembro, entrou para Al-Qaeda do Iraque, lutou contra a ocupação deste país pela OTAN inclusive sendo preso pelo governo títere do EUA, com o início da guerra civil da Síria foi para lá coordenar a Al-Qaeda, se aliou ao Estado Islâmico, depois rompeu com este e se filiou aos interrsses turcos até e se tornar governante da Síria com apoio das potências ocidentais. Eis uma biografia interessante.
https://anovademocracia.com.br/siria-fogo-israelense-suwayda/
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