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terça-feira, 11 de junho de 2019

Limite Penal - Teoria da dissonância cognitiva ajuda a compreender imparcialidade do juiz




11 de julho de 2014, 8h01

Por Aury Lopes Jr


 
 
Desde 1999 na obra “Investigação Preliminar”[1] venho sustentando a necessidade de exclusão física dos autos do inquérito e a separação do juiz 'da investigação' em relação ao juiz 'do processo' (prevenção como causa de exclusão da competência), como forma de assegurar a máxima eficácia do contraditório judicial e a ‘originalidade’ do julgamento (expressão italiana para externar a importância de que o juiz forme sua convicção ‘originariamente’ a partir da prova produzida no contraditório processual). Na mesma linha vai a preocupação com a distinção entre sistema acusatório e inquisitório, compreendendo que a gestão da prova é fundante. Juiz que, de ofício, vai atrás da prova, está ferindo de morte a estrutura processual acusatória (constitucional) e também a imparcialidade. Claro que essa posição encontra imensa resistência, especialmente de quem não compreende a complexidade que envolve a questão da ‘imparcialidade’ do julgador e a formação da ‘decisão judicial’.

Eis que me deparo com um excelente trabalho do consagrado jurista alemão Bernd Schünemann, organizado pelo professor Luís Greco (Estudos de Direito Penal e Processual Penal e filosofia do direito. Org. Luís Greco. Ed. Marcial Pons, 2013) onde ele dedica um interessante artigo sobre a teoria da ‘Dissonância Cognitiva’. Em que pese algumas divergências pontuais que tenho em relação ao ilustre autor alemão (e a estrutura do processo penal alemão), especialmente no que tange a concepção de sistema acusatório e inquisitório, a ambição de verdade (a mitológica verdade real...), bem como ao papel do juiz, sua análise sobre a dissonância cognitiva e os problemas acerca dos pré-julgamentos, é bastante enriquecedora.

Recordemos, introdutoriamente, que a imparcialidade não se confunde com neutralidade, um mito da modernidade superada por toda base teórica anticartesianista. O juiz-no-mundo não é neutro, mas pode e deve ser imparcial, principalmente se compreendermos que a imparcialidade é uma construção técnica artificial do direito processual, para estabelecer a existência de um terceiro, com estranhamento e em posição de alheamento em relação ao caso penal (terzietà), que estruturalmente é afastado. É, acima de tudo, uma concepção objetiva de afastamento, estrutural do processo e estruturante da posição do juiz. É por isso que insistimos tanto na concepção do sistema acusatório a partir do núcleo fundante ‘gestão da prova’ (Jacinto Coutinho), pois não basta a mera separação inicial das funções de acusar e julgar, precisamos manter o juiz afastado da arena das partes e, essencialmente, atribuir a iniciativa e gestão da prova às partes, nunca ao juiz, até o final do processo. Um juiz-ator funda um processo inquisitório; ao passo que o processo acusatório exige um juiz-espectador.

Outro reducionismo bastante frequente é o de desconectar a discussão acerca dos sistemas processuais da imparcialidade. É elementar que ao se atribuir poderes instrutórios ao juiz, fere-se de morte a imparcialidade, pois ‘quem procura, procura algo’ (Geraldo Prado). Transforma-se o processo em uma encenação simbólica, pois o juiz– desde o momento em que decide ir atrás da prova de ofício – já tem definida a hipótese acusatória como verdadeira. Logo, com ensina Franco Cordero, esse juiz não decide a partir dos fatos apresentados no processo, senão da hipótese acusatória inicialmente eleita (pois se fosse a defensiva ele não precisava ir atrás da prova). Quando o juiz, em dúvida, afasta o in dubio pro reo e opta por ir atrás da prova (juiz-ator=inquisidor), ele decide primeiro e depois vai atrás dos elementos que justificam a decisão que ele já tomou. Portanto, ‘ele é a prova’ e, depois, decide a partir da prova por ele mesmo produzida. Sem falar que a dúvida deve dar lugar a absolvição (o in dubio pro reo é fruto de evolução civilizatória!) e, quando um juiz afasta essa regra de julgamento e decide ‘ir atrás da prova’, não é preciso maior esforço para compreender que está buscando prova para condenar, pois se fosse para absolver, ele parava no momento anterior... É óbvio que ao assim agir, ele transforma o in dubio pro reo em in dubio pau no reo. Sem falar na violação do contraditório e ampla defesa.

É um evidente prejuízo que decorre dos “pré-juízos”, como a exaustão já explicou o Tribunal Europeu de Direitos Humanos ao doutrinar que “juiz que vai atrás da prova está contaminado e não pode julgar”, sendo a ‘prevenção’ uma causa de exclusão da competência (e não de fixação, como temos erroneamente no Brasil). Existe ainda um alerta para a “estética de imparcialidade” que devem ter os julgadores aos olhos do jurisdicionado. É óbvio que para o acusado (e qualquer pessoa de bom senso), o juiz que determina a produção de provas de ofício, decreta a prisão sem pedido (ou pior, condena sem pedido, como autoriza o artigo 385), não tem qualquer semelhança com a imagem e postura que se espera de um julgador.

Mas, feita essa rápida introdução, vejamos onde está a contribuição da Teoria da Dissonância Cognitiva, trazida por Schünemann, para a compreensão dos problemas que envolvem a imparcialidade do juiz no processo penal.

Como explica o autor, grave problema existe no fato de o mesmo juiz receber a acusação, realizar a audiência de instrução e julgamento e posterior decidir sobre o caso penal. Existe não apenas uma ‘cumulação de papéis’, mas um ‘conflito de papéis’, não admitido como regra pelos juízes, que se ancoram na ‘formação profissional comprometida com a objetividade’.
Tal argumento nos remete a uma ingênua crença na ‘neutralidade’ e supervalorização de uma (impossível) objetividade na relação sujeito-objeto, já tão desvelada pela superação do paradigma cartesiano (ainda não completamente compreendido). Ademais, desconsidera a influência do inconsciente, que cruza e permeia toda a linguagem e a dita ‘razão’.

Em linhas introdutórias, a teoria da ‘dissonância cognitiva’ desenvolvida na psicologia social, analisa as formas de reação de um individuo frente a duas ideias, crenças ou opiniões antagônica, incompatíveis, geradoras de uma situação desconfortável, bem como a forma de inserção de elementos de ‘consonância’ (mudar uma das crenças ou as duas para torná-las compatíveis, desenvolver novas crenças ou pensamentos etc) que reduzam a dissonância e, por consequência, a ansiedade e o estresse gerado. Pode-se afirmar que o indivíduo busca – como mecanismo de defesa do ego – encontrar um equilíbrio em seu sistema cognitivo, reduzindo o nível de contradição entre o seu conhecimento e sua opinião. É um anseio por eliminação das contradições cognitivas.

O autor traz a teoria da dissonância cognitiva para o campo do processo penal, aplicando-a diretamente sobre o juiz e sua atuação até a formação da decisão, na medida em que precisa lidar com duas ‘opiniões’ antagônicas, incompatíveis (teses de acusação e defesa), bem como com a ‘sua opinião’ sobre o caso penal, que sempre encontrará antagonismo frente a uma das outras duas (acusação ou defesa). Mais do que isso, considerando que o juiz constrói uma imagem mental dos fatos a partir dos autos do inquérito e da denúncia, para recebê-la, é inafastável o pré-julgamento (agravado quando ele decide anteriormente sobre prisão preventiva, medidas cautelares, etc). É de se supor – afirma Schünemann – que ‘tendencialmente o juiz a ela se apegará (a imagem já construída) de modo que ele tentará confirmá-la na audiência (instrução), isto é, tendencialmente deverá superestimar as informações consoantes e menosprezar as informações dissonantes”.

Para diminuir a tensão psíquica gerada pela dissonância cognitiva, haverão dois efeitos (Schünemann):

— efeito inércia ou perseverança: mecanismo de autoconfirmação de hipóteses, superestimando as informações anteriormente consideradas corretas (como as informações fornecidas pelo inquérito ou a denúncia, tanto que ele as acolhe para aceitar a acusação, pedido de medida cautelar, etc.);

— busca seletiva de informações: onde procura-se, predominantemente, informações que confirmam a hipótese que em algum momento prévio foi aceita (acolhida pelo ego), gerando o efeito confirmador-tranquilizador.

A partir disso ele desenvolve uma interessante pesquisa de campo que acaba confirmando várias hipóteses, entre elas a já sabida — ainda que empiricamente — por todos: quanto maior for o nível de conhecimento/envolvimento do juiz com a investigação preliminar e o próprio recebimento da acusação, (muito) mais provável é a frequência com que ele condenará. Toda pessoa procura um equilíbrio do seu sistema cognitivo, uma relação não contraditória. A tese da defesa gera uma relação contraditória com as hipóteses iniciais (acusatórias) e conduz a (molesta) dissonância cognitiva. Como consequência existe o efeito inércia ou perseverança, de autoconfirmação das hipóteses, através da busca seletiva de informações.

Demonstra Schünemann que — em grande parte dos casos analisados — o juiz, ao receber a denúncia e posteriormente instruir o feito, passa a ocupar — de fato — a posição de parte contrária diante do acusado que nega os fatos e, por isso, está impedido de realizar uma avaliação imparcial, processar as informações de forma adequada. Grande parte desse problema vem do fato de o juiz ler e estudar os autos da investigação preliminar (inquérito policial) para decidir se recebe ou não a denúncia; para decidir se decreta ou não a prisão preventiva; formando uma imagem mental dos fatos para, depois, passar à ‘busca por confirmação’ dessas hipóteses na instrução. O quadro agrava-se se permitirmos que o juiz, de ofício, vá em busca dessa prova sequer produzida pelo acusador. Enfim, o risco de pré-julgamento é real e tão expressivo, que a tendência é separar o juiz que recebe a denúncia (de atua na fase pré-processual) daquele que vai instruir e julgar ao final.

Conforme as pesquisas empíricas do autor, “os juízes dotados de conhecimentos dos autos (a investigação) não apreenderam e não armazenaram corretamente o conteúdo defensivo” presente na instrução, porque eles só apreendiam e armazenavam as informações incriminadoras que confirmavam o que estava na investigação. “O juiz tendencialmente apega-se à imagem do ato que lhe foi transmitida pelos autos da investigação preliminar; informações dissonantes desta imagem inicial são não apenas menosprezadas, como diria a teoria da dissonância, mas frequentemente sequer percebidas”. O quadro mental é agravado pelo chamado ‘efeito aliança’, onde o juiz tendencialmente se orienta pela avaliação realizada pelo promotor. O juiz “vê não no advogado criminalista, mas apenas no promotor, a pessoa relevante que lhe serve de padrão de orientação”. Inclusive, aponta a pesquisa, o ‘efeito atenção’ diminui drasticamente tão logo o juiz termine sua inquirição e a defesa inicie suas perguntas, a ponto de serem completamente desprezadas na sentença as respostas dadas pelas testemunhas às perguntas do advogado de defesa.

Tudo isso acaba por constituir um ‘caldo cultural’ onde o princípio do in dubio pro reo acaba sendo virado de ponta cabeça – na expressão de Schünemann — pois o advogado vê-se incumbido de provar a incorreção da denúncia! Entre as conclusões de Schünemann, encontra-se a impactante constatação de que o juiz é “um terceiro inconscientemente manipulado pelos autos da investigação preliminar”.

Em suma:

a) é uma ameaça real e grave para a imparcialidade, a atuação de ofício do juiz, especialmente em relação a gestão e iniciativa da prova (ativismo probatório do juiz) e a decretação (de ofício) de medidas restritivas de direitos fundamentais (prisões cautelares, busca e apreensão, quebra de sigilo telefônico etc.), tanto na fase pré-processual como na processual (em relação a imparcialidade, nenhuma diferença existe o momento em que ocorra);

b) é uma ameaça real e grave para a imparcialidade o fato de o mesmo juiz receber a acusação e depois, instruir e julgar o feito;

c) precisamos da figura do ‘juiz da investigação’ (ou juiz das garantias, como preferiu o Projeto do CPP), que não se confunde com o ‘juizado de instrução’[2], sendo responsável pelas decisões acerca de medidas restritivas de direitos fundamentais requeridas pelo investigador (polícia ou MP) e que ao final recebe ou rejeita a denúncia;

d) é imprescindível a exclusão física dos autos do inquérito, permanecendo apenas as provas cautelares ou técnicas irrepetíveis, para evitar a contaminação e o efeito perseverança.

Considerando a complexidade do processo e de termos — obviamente — um juiz-no-mundo, deve-se buscar medidas de redução de danos, que diminuam a permeabilidade inquisitória e os riscos para a imparcialidade e a estrutura acusatória constitucionalmente demarcada.

[1] LOPES JR, Aury. GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação Preliminar. 6ª edição, Saraiva, 2014.
[2] Sobre o tema, tratamos nas obras “Direito Processual Penal” e “investigação Preliminar”, ambas publicadas pela editora Saraiva.

 é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.
Revista Consultor Jurídico, 11 de julho de 2014, 8h01

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