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quinta-feira, 9 de março de 2017

ALEMANHA - Crânios de indígenas brasileiros, controverso legado colonial alemão

No século 19, pesquisadores promoveram caçadas por crânios de diferentes povos no Brasil para realizar estudos evolucionistas. Ao menos 28 seguem em museus na Alemanha – e forma de lidar com acervo é atualmente debatida.


Cabeça-troféu de munduruku, trazida pelos viajantes Martius e Spix, atualmente no Museu Cinco Continentes, em Munique

Durante dois anos, no início do século 19, o príncipe alemão Maximiliam zu Wied-Neuwied (1782 - 1867) se aventurou por terras brasileiras em busca de aprofundar conhecimentos etnológicos, zoológicos e botânicos. No fim de sua jornada, em fevereiro de 1818, além de amostras de animais e plantas, trouxe da expedição Joachim Kuêk, um botocudo que o acompanhou no vale do rio Doce.

Longe de sua terra natal, o "exótico visitante" tornou-se objeto de estudo, exposto numa das salas do palácio do príncipe. A vida na Alemanha não foi fácil para Kuêk, que sucumbiu ao álcool e teve um fim trágico: no Ano Novo de 1833, teria caído de uma janela e não resistido ao frio. Wied-Neuwied doou o crânio do antigo serviçal ao instituto de anatomia da Universidade de Bonn.

Aquarela do alemão Johann Heinrich Richter, de 1828, mostra Kuêk e príncipe Wied-Neuwied no Brasil

Depois de quase 200 anos do início da jornada alemã de Kuêk, seu crânio foi devolvido à cidade de Jequitinhonha, em 2011, e repassado a uma tribo krenak descendente do indígena.

O caso de Kuêk é o mais emblemático do período, no qual pesquisadores europeus promoveram verdadeiras caçadas por crânios de diferentes povos ao redor do mundo, inclusive no Brasil, para realizar controversos estudos evolucionistas e comportamentais.

Atualmente, o legado desta "caçada científica" faz parte de acervos de museus na Alemanha, e o destino destas coleções ainda é tema delicado. A forma mais correta para tratar esses restos mortais, seja por meio da devolução ou da permanência onde estão, é uma questão que gera debates entre especialistas e etnias que foram vítimas deste episódio histórico.

Pelo menos 28 crânios oriundos do Brasil fazem partes de acervos em museus na Alemanha, segundo apurou a DW Brasil. Três de botocudos, da coleção do viajante Georg Wilhelm Freyreiss, estão no museu de história natural Senckenberg, em Frankfurt am Main. O Museu Cinco Continentes, em Munique, possui duas cabeças-troféus de mundurukus, trazidas por Carl Friedrich Philipp von Martius e Johann Baptist von Spix.

O Instituto de Etnologia da Universidade de Göttingen possui também um exemplar de cabeça-troféu. Já a coleção do anatomista alemão Johann Friedrich Blumenbach, considerado o pai da zoologia e da antropologia física, tem pelo menos um crânio de botocudo e pertence ao Centro de Anatomia da universidade.

Em Berlim, os museus da Fundação do Patrimônio Cultural Prussiano (SPK) possuem cerca de 20 crânios do Brasil. Mas tanto na capital alemã, como em Göttingen, informações sobre a origem e procedência destes restos mortais foram perdidas durante a Segunda Guerra Mundial.

Caçada mórbida

Apesar desta perda, fontes históricas e relatos de viajantes podem ajudar na identificação da origem destes acervos e revelar o lado esquecido, muitas vezes intencionalmente, da mórbida "caçada científica". Para especialistas, o esclarecimento sobre a procedência, circunstâncias da aquisição das coleções e sua utilização na Alemanha é o passo mais importante no debate que envolve a destinação deste controverso legado.

Em livro no qual relata detalhes de expedição ao Brasil, Wied-Neuwied reproduz crânio botocudo que trouxe para a Alemanha e foi dado de presente a Blumenbach

"Durante um longo período, e parcialmente até hoje, não houve quase nenhuma consciência da injustiça relacionada a estas coleções. Isso é uma consequência da continuidade de padrões coloniais de percepção e de um hábito de exibição do 'outro' classificado em termos raciais", afirma o historiador Jürgen Zimmerer, da Universidade de Hamburgo.

A busca por crânios no século 19 visava principalmente traçar linhas evolutivas e classificar "raças". No Brasil, a prática foi impulsionada pelo desejo de Blumenbach em traçar a linha evolutiva do macaco até os seres humanos. Para isso, o anatomista solicitou a seus alunos, entre eles o príncipe Wied-Neuwied e Ludwig von Eschwege, que trouxessem crânios de suas viagens.

Devido a relatos de que praticariam a antropofagia e à sua aparência física, considerada por europeus na época como exótica, os botocudos, que, no século 19, habitavam a região do vale do rio Doce, no Espírito Santo e em Minas Gerais, tornaram-se um dos principais alvos de viajantes alemães.

"No século 19, os botocudos eram como os ianomâmis hoje. Eles eram considerados, por vários motivos, os mais selvagens e primitivos. Devido a essa classificação, os pesquisadores suspeitam que os botocudos seriam possivelmente o povo mais próximo ao macaco", afirma o historiador Titus Riedl, da Universidade Regional do Cariri.

Em aquarela datada de 1830, Karl zu Wied-Neuwied, irmão do viajante, retrata Kuêk na Alemanha

A febre por restos mortais de botocudos na Europa teve um impacto extremamente negativo para a etnia. Além de saques de túmulos, uma verdadeira caçada foi promovida na região em busca de indígenas para a venda de crânios. De acordo com Riedl, em Salvador, chegou a surgiu um mercado negro de ossos.

Mas essa caçada não foi promovida somente por viajantes europeus – crânios tornaram-se um popular presente oficial do Império brasileiro. "Em 1875, por exemplo, Dom Pedro 2º presentou o Museu Etnológico de Berlim com quatro crânios de botocudos", afirma o historiador Georg Fischer, da Universidade de Aarhus.

Além de crânios de botocudos, as cabeças-troféus produzidas pelos mundurukus, que habitavam a região da Amazônia, também chamavam a atenção de viajantes. Esses troféus de guerra eram preparados durante rituais de mumificação e possuíam um significado simbólico e espiritual.

Devolver para onde?

Trazidos para a Alemanha no auge do colonialismo europeu, mesmo após o fim deste período, essas coleções foram expostas em museus ou utilizadas em pesquisa científicas sem que houvesse uma reflexão ética sobre o tema durante décadas. Há poucos anos, algumas instituições começaram o debate sobre o destino correto para o acervo.

Em 2015, a SPK em Berlim desenvolveu um manual de práticas para o trato com restos mortais que pertencem a sua coleção, que prevê um estudo para esclarecer as origens destes objetos e não descarta a restituição. Já o Museu Cinco Continentes, em Munique, iniciou um processo para identificar restos mortais em seu acervo e contatar países de origem para a devolução.

Em Frankfurt, o processo para comprovar a procedência dos restos mortais, que pode resultar na restituição, é iniciado se houver algum pedido oficial de governos. A exposição destes crânios é proibida pelas três instituições.

A restituição, porém, pode ser no fim tão problemática quanto a manutenção destes restos mortais se não envolver as comunidades atingidas. Para Ailton Krenak, uma das principais lideranças indígenas do Brasil e descendente de botocudos, a devolução em si não faz sentindo se ela não vier acompanhada de um debate amplo na sociedade, que incluiu a contextualização sobre crimes cometidos contra indígenas e suas consequências.

"Mais do que ficar imaginando o que vamos fazer com um objeto que saiu do lugar de memória, peregrinou pelo mundo e agora pode voltar para casa, a pergunta que resta é: que casa? No caso dos botocudos, a casa não existe mais, o território que nossos antepassados circulavam ou faziam suas aldeias foi totalmente desmemorializado", afirma Krenak.

O ambientalista questiona ainda a maneira como foi feita a repatriação do crânio de Kuêk. "Aquela circunstância toda foi um evento fortuito, meio sem sentido. Alguém aproveitou, de maneira superficial, a oportunidade de repatriar esse material e juntaram com a celebração do centenário do município. Não teve nenhuma repercussão no Brasil, ficou uma coisa local e foi frustrante", avalia.

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