Perfil

Advogado - Nascido em 1949, na Ilha de SC/BR - Ateu - Adepto do Humanismo e da Ecologia - Residente em Ratones - Florianópolis/SC/BR

Mensagem aos leitores

Benvindo ao universo dos leitores do Izidoro.
Você está convidado a tecer comentários sobre as matérias postadas, os quais serão publicados automaticamente e mantidos neste blog, mesmo que contenham opinião contrária à emitida pelo mantenedor, salvo opiniões extremamente ofensivas, que serão expurgadas, ao critério exclusivo do blogueiro.
Não serão aceitas mensagens destinadas a propaganda comercial ou de serviços, sem que previamente consultado o responsável pelo blog.



segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

‘Brasil é o caso mais bem sucedido de uma política de não-memória’, afirma a mulher que sobreviveu à Operação Condor




Lilian Celiberti é hoje uma das mais importantes feministas e ativistas de direitos humanos do Uruguai | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Fernanda Canofre

O olhar de Lilian Celiberti, aos 67 anos, é o mesmo que encarou a câmera fotográfica da Polícia Federal brasileira, em novembro de 1978. O registro, aos 29 anos, foi feito logo após ela, os dois filhos, Camilo e Francesca, de 8 e 3 anos, e o companheiro Universindo Díaz terem sido sequestrados pelas ditaduras do Brasil e Uruguai, em Porto Alegre. Por uma semana, Lilian resistiu dentro do próprio apartamento, com os filhos convivendo com militares e agentes do DOPS, no prédio 621, da Rua Botafogo, no bairro Menino Deus. O sequestro foi flagrado em curso pelo jornalista Luiz Cláudio Cunha, da revista Veja, e ajudou expor a colaboração entre as ditaduras militares da América Latina, através da eficiente Operação Condor, a quem quisesse ver.

Os olhos castanhos, graúdos, seguros, seguem os mesmos. Hoje, Lilian é uma das mais importantes feministas e ativistas de direitos humanos do Uruguai. Além de militar pela justiça de transição, reparação e memória de mortos e desaparecidos, ela integra o coletivo Cotidiano Mujer, responsável por impulsionar a descriminalização do aborto no Uruguai e garantir direitos e o fim da exploração de trabalhadoras domésticas migrantes. Os cabelos negros da foto antiga ficaram mais curtos e grisalhos. E há serenidade em sua fala, mesmo quando conta sobre coisas difíceis de ser tocadas.

Quase 40 anos após o episódio conhecido como “sequestro dos uruguaios” – retratado em livros e documentários – ela diz que é comum encontrar pessoas que dizem lembrar da história, conhecer algum vizinho, ter suas próprias memórias em torno do episódio para contar. Lilian foi presa depois de ter vivido por pouco mais de 3 anos na Itália, ajudando a denunciar as violações do regime civil-militar uruguaio no exterior. Na metade de 1978, Lilian, integrante do Partido por La Vitória del Pueblo, veio à capital gaúcha para tocar o trabalho daqui. A ideia seria entrar em contato com jornalistas brasileiros para denunciar as condições de presos uruguaios. Viu o filho virar colorado e havia começado uma vida em Porto Alegre, quando o DOPS chegou até ela.

Lilian é hoje, junto aos filhos, uma das únicas sobreviventes da Operação que tinha como uma de suas marcas os voos da morte sobre o Río de La Plata. Universindo faleceu em 2012. Em Porto Alegre, onde participou do Fórum das Resistências, ela conversou com o Sul21 sobre políticas de memória em tempos de direitos em xeque e sobre o julgamento da Operação Condor, em um Tribunal de Roma, na Itália, realizado em janeiro, depois de 19 anos de processo. Dois ex-presidentes latino-americanos foram condenados, mas a Corte absolveu todos os militares uruguaios acusados pelo desaparecimento e sequestro de cidadãos ítalo-argentinos, em casos ocorridos na Argentina, no Brasil e no Uruguai.



Sul21: Os países latino-americanos que viveram ditaduras civil-militares ou militares, na segunda metade do século XX, tiveram problemas em enfrentar seu passado. Como tu, ex-presa política (Lilian ficou presa em Punta de Rieles, como a brasileira Flávia Schilling), militante pela reparação, vês nossas políticas de memória?

Lilian Celiberti: O que acontece, quando falo que há memória, recordação, dessa história [do sequestro] é porque é um caso de uma mulher, um homem, duas crianças e isso impacta porque vivemos em sociedades em que, às vezes, focalizamos as coisas em âmbito pessoal. Sem dúvida, [quando falamos] de um período histórico, as pessoas têm suas próprias memórias das coisas que viveram. As políticas de memória são outra coisa. É a construção de uma orientação política que coloca, por exemplo, a democracia, os valores de respeito e de direitos, como eixos, como princípios importantes. Não pode haver uma política de memória que seja neutra diante do que aconteceu. Ela supõe que se tome um partido. Como dizer, “sim, vamos condenar a ditadura e condenamos os atos de violência, de tortura, de violação de direitos, de desaparecimentos, sem colocar no mesmo plano as vítimas e seus algozes”? No caso do Brasil, acho que é o caso mais bem sucedido de uma política de não-memória. É uma política porque não aconteceu por acaso. Foi uma política dirigida a silenciar, a tornar opaco, a colocar vítimas e algozes no mesmo plano, como se fosse um enfrentamento entre dois iguais. [Como se] de um lado e de outro se cometessem as mesmas atrocidades, tirando o conteúdo concreto e político de que a violência exercida a partir do Estado não é a mesma que a exercida por cidadãos que se organizam, que pode ser condenável ou não. Colocando-as em um mesmo nível, escondemos uma responsabilidade social central: todas e todos depositamos autoridade às forças policiais e outorgamos e damos legitimidade à violência de Estado. Mas quando o Estado exerce essa violência para silenciar protestos, pensamentos diferentes, é uma violação atroz. Acho que no caso do Brasil houve uma política de silenciamento, de negação, de apagar o passado, deixando-o como um episódio de enfrentamento entre dois iguais.

Eu estive aqui para o 31 de março do aniversário de 50 anos do golpe, em 2014. O auditório da Universidade [Federal do Rio Grande do Sul] estava lotado! Mais ainda: havia muitíssimos estudantes e gente comum que não pode entrar porque não havia mais lugar. Então, o que acontece é: existe a sensibilidade social e a busca por ela, mas a medida em que não há políticas de memória…

Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21: Essa deficiência nas políticas de memória seriam as responsáveis por discursos que defendem que “no tempo da ditadura era melhor” ou ainda daqueles que pedem intervenção militar?

Lilian Celiberti: Essas pessoas não sabem do que estão falando. Não apenas pelo aspecto mais repressivo – os desaparecimentos, os presos, as cadeias, a tortura – mas pela vida cultural. Nas relações, o autoritarismo se expressa quando tu perdes todas as tuas liberdades individuais. Seguramente, essas pessoas que gritam por essa volta dos militares, em primeiro lugar não tem ideia. Em segundo, é como se elas tivessem sido colonizadas com um conceito de disciplina e de ordem, quando, na verdade, os militares desordenaram a vida social. A instituição militar é uma instituição patriarcal, autoritária, vertical, do mando do superior, cimentada na base do não-pensamento e com zero ideia-crítica.

Mas também há o fato de que isso se põe como um paradigma. Acho que ainda são expressões minoritárias. Só foram exacerbadas pelos meios de comunicação, que querem colocá-las como antítese da democracia. A democracia sempre tem que ser confrontada, porque as injustiças existem. Se há democracia, há conflito. Só não há conflito quando há totalitarismo, repressão, tortura, silenciamento, controle dos meios de comunicação. A democracia não pode ser uma disciplina total porque as pessoas têm sentimentos, têm voz, se organizam, querem direitos. Mas a fantasia de uma sociedade militar, é uma fantasia repressiva que muita gente tem por dentro e que se expressa em relações que tem com os próprios filhos, com um companheiro ou companheira dentro de casa. Esse autoritarismo não está só no social, está também na vida cotidiana e se expressa na vida cotidiana de uma maneira permanente.

(…) Os meios de comunicação jogam em um papel central na definição de nossa própria subjetividade. Eles não estão alheios a como pensamos e como sentimos. Essas mesmas pessoas que gritam pelos militares, são pessoas que escutaram os noticiários dizendo que os governos de esquerda defendem direitos humanos para criminosos, mas não para pessoas que trabalham e são honestas. Quem diz isso? Quem pensa isso? É quem grita essas frases em uma manifestação ou pela ideia que durante anos os jornais lhes disseram? E repetiram até o ponto de acreditarmos que essa é a verdade.

Sul21: Como falaste agora, nós vivemos também um ódio direcionado à questão dos direitos humanos. Como tu vês essa questão, no momento atual?

Lilian Celiberti: Uma forma simples de responder a isso, que obviamente não esgota a questão que é muito mais complexa, seria: se eu identifico que a defesa de certos direitos e certos atores veio por meio de certos partidos políticos ligados a atos de corrupção, em geral, há uma reação – claro que trabalhada e intelectualizada por meios de comunicação interessados que esses governos caiam – mas também são os próprios erros desses governos que fazem com que as pessoas não separem entre os direitos das pessoas, os avanços conquistados, de sua imagem. Eu acho que concretamente as pessoas estão odiando o mensalão ou essas coisas todas que tem nomes construídos pelos veículos de comunicação, e acabam ligando isso aos “direitos humanos”. Uma segunda via de análise, é o papel que os setores fundamentalistas têm nisso. Num novo tipo de doutrinação de pessoas, [jogando] com uma maior incerteza sobre suas vidas. Isso não apenas com os setores mais pobres, mas também com pessoas que não conseguem enxergar além. Se não tens um trabalho tens que vir rezar, se queres largar o álcool, se precisar de qualquer coisa. Essas certezas geram um pensamento muito organizado e simplista, mas por trás disso, há uma operação para destruir os direitos. É um ódio organizado. Quando pensamos na Alemanha nazista, [vemos] como o nazismo organizou milhões de pessoas no ódio ao outro. Já vivemos isso. Não é de estranhar que agora se expresse em outros eixos como “contra a ideologia de gênero”, “contra doutrinação das crianças a quem querem ensinar homossexualidade ou lesbianismo”. Tudo isso está dentro das pessoas. Esses setores fundamentalistas, que querem cooptar e captar esses medos, trabalham em interesse próprio. É impossível em sociedades tão injustas que não tenhamos medo daquele que está diante de nós. Medo que nos roubem, que nos assaltem em uma rua qualquer, porque funcionam essas operações. Esse ódio é expressão de uma grande incerteza e de políticas outorgaram direitos, mas que as pessoas não souberam se apropriar.

Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21: Desde que começou a se falar em impeachment para Dilma Rousseff (PT), no final de 2015, muita gente apareceu para comparar o momento atual com 1964 ou com situações ligadas à ascensão das ditaduras. Quando olhas para o que vivemos agora, algo te parece similar ao que tínhamos na época que ditaduras se instalaram na América Latina?

Lilian Celiberti: Aí há uma outra coisa, chame ou não de ditadura, se eu vivo em um Estado de exceção, se estão cortando liberdades…No Uruguai, por exemplo, no ano de 1968, havia uma greve e se estabeleciam medidas de segurança que militarizavam esse setor da população. Os bancários, por exemplo, foram transportados massivamente a quartéis. Nós dizíamos então que isso era, de fato, um Estado de exceção. O ingresso dos militares aconteceu através de um presidente que havia sido eleito, que foi [Juan María] Bordaberry. Bordaberry é eleito presidente, no final de 1971 e em 1972 abre as portas para os militares. Depois, recém em 73, os militares dão o golpe. Eu não diria que a situação hoje no Brasil… Tenho esperanças nas reações que vão começar a medida que interesses concretos como educação, saúde, previdência social sejam afetados. As pessoas que vivem no Brasil têm que lidar com esse governo, fazer greves, manifestações. Me parece que, em geral, no mundo, avançamos numa concepção de direitos que não pode ser apagada de soco. Não se pode mais dizer: “agora decretamos que ninguém mais pode falar”. Não existem condições para isso.

Ainda mais hoje que temos muitas possibilidades para nos expressar, através das redes, Facebook, Twitter. Em todo caso, isso não constrói uma alternativa e esse é o grande dilema. Quais são as alternativas nesse momento onde parece que tudo o que havíamos conquistado está em perigo? Quais são os caminhos para construir essas alternativas? São coletivos democráticos e plurais, que dialoguem, que não venham de cima e não necessitem de um salvador. Eu não creio em salvadores e nem parece que existam nomes mágicos que possam resolver. Como eu dizia na mesa [de debates, do Fórum], depende das transformações que cada um de nós faça em sua vida. Que nos retiremos um pouco do consumismo, que deixemos certas bases desses consumismo louco que nos faz hipotecar todo nosso futuro. Que possamos construir, apoiar as redes agroecológicos, a economia solidária. Há coisas que estão em nossas mãos para transformar isso. Sobretudo, criando possibilidades de diálogos coletivos mais abertos.

Para mim, parece importante que não façamos concessões. Os direitos dos povos indígenas, os direitos das mulheres, os direitos de sexualidade, combate ao racismo, todas essas coisas conformam um horizonte alternativo, mas não pode ter uma luta por cima da outra.

Sul21: Falando sobre mulheres, no ano passado o Uruguai teve a estreia de um filme chamado “Migas de Pan”, que conta a história da prisão de mulheres, na época da ditadura. Até pouco tempo esse tema, “mulheres e ditadura”, era quase esquecido na bibliografia sobre o período. Agora, no entanto, parece que está sendo aprofundado.

Lilian Celiberti: Era um tema que, não é como se as pessoas tivessem vontade de silenciá-lo, mas fazia parte das estruturas políticas de esquerda. Há 30 anos militamos para que isso não aconteça, mas de todas as maneiras, a esquerda sempre sustentou essa visão de “neutralidade de gênero”. “Aqui há lugar para todos, as mulheres podem militar igual aos homens”. Ou seja, negando as desigualdades. Isso também se expressa com a experiência das mulheres na cadeia. Eu acho que nós, mulheres, também somos menos “épicas”. Nos interessamos mais pelas questões da vida cotidiana, das relações humanas, mais do que a heroicidade como valor. E sempre o herói é mais “existido” do que quem cozinha, passa a roupa, varre a casa.

É difícil responder concretamente sobre isso, porque existiram situações diferentes [no cárcere]. Eu acho que a repressão contra as mulheres, por parte dos militares, como instituição patriarcal, trabalhou com a experiência que o patriarcado tinha de dominação das mulheres. Então, basicamente, a repressão estava centrada em aspectos comunicativos. Você ficava amiga de alguém, outra companheira, na cadeia, e se eles viam que essa relação era boa ou construtiva, na próxima vez te separavam dessa pessoa. As prisões de mulheres sempre foi um laboratório Panóptico, ao melhor estilo do que escreve Michel Foucault. Era um observatório onde todas as condutas cotidianas serviam como fonte para a repressão.

Te conto uma coisa. Quando meu filho mais velho foi morar com o pai, na Itália, eu estava presa e ele passou dois anos sem vir ao Uruguai. Quando finalmente veio, durante as férias dela da escola, me levaram para o calabouço – parte das solitárias. Eu tive só uma visita com ele. Ele ficou durante dois meses no Uruguai, só nos vimos uma vez. Quando ele estava prestes a ir embora, me levaram de novo ao calabouço. O último dia que ele teria para vir, na visita das crianças, que era aos domingos, eu estava no calabouço, sozinha. As militares, que nos vigiavam, diziam: “Tu viu como chorava aquele menino? sim, porque essa filha da puta… Como elas não gostam de ninguém, ficam provocando uma maneira de serem mandadas ao calabouço para não ver os filhos”. Era mentira. Minha mãe, sabendo que não poderiam me visitar, não ia levar [meu filho] a Punta de Rieles por nada.

Lilian Celiberti durante participação no Fórum Social das Resistências, em Porto Alegre | Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Sul21: Agora em janeiro, um Tribunal de Roma acaba de concluir o julgamento de políticos e militares acusados na participação dos desaparecimentos de cidadãos ítalo-argentinos, durante as ditaduras civil-militares de Brasil, Uruguai, Argentina, Chile, Paraguai, com participação de Bolívia e Peru. Dos XX acusados no Uruguai, apenas um foi condenado. Como tu vistes este desfecho, depois de 19 anos de processo?

Lilian Celiberti: Houve a condenação do ex-chanceler uruguaio, da época da ditadura, [Juan Carlos] Blanco, que ainda me parece significativa. Ele foi acusado pelos desaparecimentos de Gerardo Gatti, Daniel Banfield, cinco pessoas que tinham nomes citados no processo, o que é importante. O que foi uma frustração, especialmente porque nós – como país que tem uma dívida de verdade, de justiça – tínhamos tantas esperanças neste julgamento. Ainda não li o veredito final, eles só o entregam em 3 meses. Mas tínhamos esperança nesse julgamento porque ainda não conseguimos alcançar uma investigação sobre os desaparecidos. Acho que a frustração também é porque um dos únicos acusados que está vivo é Jorge Nestor Troccoli, que é justamente quem vive na Itália e que escapou. Houve erros em seu pedido de extradição que ajudaram o livrá-lo. Isso sim é um golpe de impunidade. Essa sim é a parte que, ainda que sigamos lutando, no âmbito da justiça encontramos muitos obstáculos. Eu ainda tenho uma causa – agora sozinha, porque Universindo morreu (em 2012) – que cada vez que ela vai a juízo, colocam caducidade, que é inconstitucional, que não podem ser punidos porque já passou mais de não sei quantos anos, que o delito já não existe. E assim volta para a Suprema Corte e estamos na mesma há anos. Estou numa ida e volta jurídica interminável.

Fonte: SUL  21

Nenhum comentário: