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Advogado - Nascido em 1949, na Ilha de SC/BR - Ateu - Adepto do Humanismo e da Ecologia - Residente em Ratones - Florianópolis/SC/BR

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sexta-feira, 23 de outubro de 2009

"O OSSO E O CÃO" - Conto 1

"A literatura que não respira o mesmo ar da sociedade sua contemporânea, que não espelha seus sofrimentos e medos, nem previne contra males morais e sociais... é mera maquilagem literária"
ALEXANDRE SOLJENITSIN, citado por Hosmany Ramos (Pavilhão 9).

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Atentem os meus leitores para o conto que segue, pois vislumbro no seu autor uma promessa da literatura catarinense. Cauteloso, mas dotado de uma cultura geral que salta aos olhos, o escritor que aqui debuta preferiu o uso de um pseudônimo, por razões de foro íntimo, que não me cabe questionar.

No futuro, quando ele entender conveniente, sua identidade poderá ser revelada. Espero que a decisão de se revelar não demore muito, pois sei que ele tem muitos outros contos inéditos e estou ansioso para vê-lo reconhecido nos dois sentidos, de identidade e de competência para escrever.

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Recebido de "Heitor Diniz" - 23/10/2009

I

O desembargador L. era um carola e em seu favor é preciso que se diga que sempre o fora. Assíduo freqüentador de igrejas e amigo de padres e bispos, nunca perdia uma oportunidade de exaltar a espiritualidade católica em seus discursos, uma receita que sempre comovia e despertava simpatia sobre sua pessoa. Já sexagenário, suas marcas faciais lhe emprestavam expressão de contínuo e sutil sofrimento, que potencializava o efeito que produzia a sua figura solene. Como o leitor já deve ter notado por essa breve apresentação, o desembargador tinha os predicados para ser um homem vaidoso e assim o era, um pecado capital do que ele sinceramente não se dava conta de quão longe o iria levar. Porque o desembargador não tinha a vaidade dos homens, mas a vaidade de Deus. Sua esposa, dona Marieta, era devota de Santa Helena e integrava a Ordem das Pensadoras das Chagas de Cristo e sentia-se feliz de partilhar com o marido essa devoção religiosa. Dona Marieta não trabalhava e passava boa parte de seu tempo planejando novenas, organizando quermesses e reunindo-se em chás inofensivos com as amigas. Ambos viviam sós, pois os filhos já crescidos, tinham tomado o seu próprio rumo. Assim, naquela noite, o desembargador achou que era o momento de confidenciar à esposa o seu mais acalentado projeto, e enquanto tomava a sua sopinha de feijão, disse-lhe:

- Então, querida, quero que você seja a primeira pessoa a conhecer meu primeiro projeto para a Presidência. Assim que eu assumir o cargo, vou iniciar a construção de uma capela no Tribunal - e olhou por sobre a cabeça da esposa como se já vislumbrasse a igrejinha diante de si – pequena, sim, mas acolhedora e íntima.

- Oh, meu bem – emocionou-se dona Marieta – que maravilha, louvado seja, que idéia inspirada. Sempre achei o teu trabalho tão difícil, julgar o nosso semelhante, ficar todo o dia absorvendo coisas ruins, negativas, que em todo os fóruns deveria haver um lugarzinho assim, santificado, onde vocês pudessem ter momentos de acolhimento e purificação. Ah, fico tão feliz.

- Sabe, querida – disse o desembargador, segurando as mãos da mulher – foi uma promessa.

- Promessa? – intrigou-se d. Marieta.

- Uma promessa que fiz se conseguisse vencer o desembargado N. na disputa pela Presidência .

Ah, sim – respondeu d. Marieta, que recolheu suas mãos instintivamente, segurou a colher e disse – agora vamos tomar nossa sopinha que já está esfriando..



II

Passado o primeiro impacto da surpreendente eleição do desembargador L, que tinha algo de profana – é escusado dizer-se, pois pela primeira vez na honorável e centenária história do Ttribunal deixava-se de lado a tradição de antigüidade para realizar-se uma disputa puramente política – o eleito reuniu o Conselho de Administração da Casa e aprovou seu projeto de construção de uma capela nas dependências do Tribunal. A dificuldade, sabia ele, seria repetir a façanha perante o Órgão Especial , onde, embora contasse com uma pequena maioria, precisava de um apoio maciço para que não restassem dúvidas quanto à legitimidade da obra. O desembargador L não era bobo, e embora sua esposa tivesse se retraído quando o assunto foi mencionado, ele sabia que estaria pagando a sua promessa com recursos públicos e sempre seria bom se precaver.

Assim, não foi com surpresa que, depois de levar o assunto a reunião mensal do òrgão Especial, escutou logo a grosseira crítica de um colega de Tribunal , seu velho e cultivado desafeto:

- Com todo o respeito por V. Exa., mas o Estado é laico, sr. Presidente, e mesmo que V. Exa. esteja doando a obra para o Poder Público, haverá uma inafastável violação daquele princípio constitucional.

- E se me permite V. Exa. – atalhou outro magistrado, este velho aliado daquele que falara e que percebera a malícia do comentário – em que pese a doação, sabe muito bem V. Exa. que, para além da vedação legal, a composição religiosa desta Casa é assaz heterogênea. Temos representantes católicos, evangélicos, protestantes de todas as ramas, espíritas, Exa. e até aqueles que são dados ao culto de entidades afro-brasileiras. Como poderá V. Exa. agradar uma parcela sem desagradar todas as outras? Mesmo que se trate de uma doação de V. Exa., outros desembargadores poderão se sentir legitimados a ter iniciativas semelhantes.

O desembargador L, não esperava aquilo, pois apesar de todas as disputas e malquerências, sempre se permitia ao eleito alguma liberdade de excesso. Viu que havia caído na armadilha de seus velhos adversários, mas sentiu-se confiante a prosseguir, a confiança da sinceridade e dos que nada tem a perder:

- Srs., uma questão de ordem. Em nenhum momento afirmei ou deixei implícito que pretenda edificar essa capela com meus recursos pessoais. Pretendo fazê-lo, sim, com recursos orçamentários, mediante a prévia autorização de V. Exas. e gostaria de ressaltar que essa pequena obra responde a uma necessidade espiritual da grande maioria dos servidores desta Casa, onde aliás, em quase todas as salas, como nesta pópria, há um crucifixo dando o testemunho da fé cristã.

- V. Exa. me concede a palavra? – solicitou outro magistrado, que voltava à carga.

- Pois não.

- V. Exa. deve estar brincando. Estamos nós a pensar que se trataria de uma doação de sua reconhecida devoção e agora somos surpreendidos com o uso de dinheiro público...

- O sr. está escarnecendo de um assunto muito sério – replicou o Presidente.

- Peço a palavra, sr. Presidente. – solicitou mais um desembargador, que já foi fazendo uso dela.- Em primeiro lugar, sempre fui contra a presença desse crucifixo neste salão, pois além de misturar as coisas, não é do credo de muitos, entre os quais me incluo. A propósito, como sabe V. Exa, sou ateu e contra essa iniciativa inadequada. A catedral metropolitana fica a quinhentos metros daqui e quem quiser um pouco de recolhimento pode ir até lá e aproveitar para dar uma boa caminhada.

Antes que outro magistrado tomasse a palavra e o presidente reatasse as rédeas do debate, mais outro desembargador com a sua habitual falta de tato, irrompeu estrepitosamente:

- Quero dizer o seguinte: todos aqui sabem que sou chegado em um terreiro e, viu, desembargador L.? não tem esse negócio de entidade afro-brasileira. As entidades vem de qualquer lugar e alguns é melhor nem mencionar por respeito a este Plenário. Eu quero dizer é que, se for construída uma capela lá embaixo e ainda por cima com dinheiro do contribuinte, vou fazer umas oferendas aqui mesmo neste Salão, que tem uma roda bastante apropriada. E quero ver quem é que vai dizer que eu não posso!

A partir daí, houve um tumulto generalizado. Os católicos, acusados e calados até então, passaram a defender o projeto e logo logo, como sempre acontece em discussões religiosas, começaram as acusações heréticas, as ameaças exconjurantes, o deslustramento pessoal e uma altercação pessoal entre um desembargador católico e outro protestante sobre a idolatria dos santos e a mesquinharia dos templos vazios.

- Deus é um só, senhores – gritou o desembargador L., tentando por fim à balbúrdia.

- E você também, L – atacou-o do fundo do Salão um outro, metido até os dentes em uma discussão sobre o mistério da multiplicação das almas.

III

Eram exatamente quinze horas do dia seguinte e o desembargador L. encontrava-se ainda mortificado pela acachapante derrota que sofrera no Órgão Especial e pensava na melhor maneira de reintroduzir o assunto proximamanente, quando sua secretária anunciou a presença da comitiva do Noviciado Asa Sagrada do Arcanjo, presidida pela devotíssima priora Irmã Angelina Schoereder e o desembargador as fez entrar. Eram quatro religiosas, a priora e outra três de menor grau, uma das quais trazia bem firme mas mãos uma pequena caixa envernizada. A irmã Angelina visivelmente sentia-se desconfortável e iniciou a conversa abruptamente.

- E então, desembargador, tudo corre bem como o sr. tem planejado? Temos nós pensado muito sobre esse assunto depois de sua visita e nosso assentimento inicial. Conversamos inclusive com sua eminência o sr. bispo nesta manhã, que nos tranqüilizou um pouco. Mas confessos que estamos apreensivas...

- Mas, irmã, algo a preocupa? - Indagou o Presidente.

- É que a relíquia não saí do Convento há mais de noventa anos – respondeu a irmã Angelina.

- Claro, compreendo, perfeitamente, irmã, mas veja, aqui ela poderá ser venerada por milhares de pessoas confusas e desorientadas e poderá, quiça, espalhar sobre elas o esclarecimento e a graça, enquanto lá, no Convento, apenas algumas pessoas a podem ver – ponderou o nosso prsonagem.

- É isso o que nos tem dito sua Eminência.....

- Então, irmã, a senhora trouxe o fragmento da 5ª. Costela esquerda de Nossa Senhora de Alexandria? Imagino que esteja depositado nessa caixinha.

- Sim, aqui a temos, para a Graça dos homens.

- Amém – disse o desembargador. Sabe, irmã, eu mesmo irei me desfazer de uma relíquia que encontra-se com minha família há mais de 20 anos e pretendo instalá-la na nossa capelinha.

- Uma relíquia? – intrigou-se a religiosa – do que se trata, desembargador?

- É uma pedra, irmã, um fragmento de um quilo, aproximadamente, tirado do Monte Sinai – respondeu sorrindo o des. . ......

- Uma pedra? – e a irmã Angelina virou-se para trás e fitou as demais religiosas que a acompanhava. Instintivamente, ergueu a mão e a estendeu sobre a caixinha de madeira que guardava a relíquia.

- Mas desembargador, uma pedra não pode ser considerada uma relíquia, talvez o sr. não saiba, é claro, mas uma relíquia, mas uma pedra do Monte Sinai é apenas uma recordação, quase uma simples curiosidade. De acordo com a nossa Santa Madre Igreja as relíquias são de três classes, sendo as de primeira classe as partes do corpo de um santo, as de segunda classe os objetos que pertenceram a esse santo e as de terceira classe os tecidos e outros objetos que tenham mantido contato com o corpo desse santo. Tudo isso ficou muito bem esclarecido no Santo Concílio de Trento, há mais de mil anos e essas regras continuam valendo até hoje. Além disso, estão expressamente proibidas pelo Vaticano a colocação em lugares santificados de quaisquer objetos que não se encaixem nessa hierarquia. E com o devido respeito a V. Exa., uma pedra, além de não ser considerada uma relíquia, não tem qualquer autenticação canônica – sentenciou a irmã – Era só o que faltava, uma pedra. Daqui a pouco vai ser o ossinho da bacia de um desembargador recém desencarnado e por aí vai, ou um relógio de um ex-Presidente. Desse jeito, essa capela vai virar um mercado de puilgas!

- Bem, não vamos exagerar, empinou-se o desembargador - se formos levar a conversa para esse lado, autenticidade nem o Santo Sudário a tem – replicou o desembargador, já arrependido de sua falta de tato.

- O que quis dizer é que uma pedra é apenas uma pedra, o sr. entende, gemeu a freira, já querendo desfazer-se em sentidas lágrimas, sendo apoiada por uma colega de hábito. Se, ao menos tivesse sido a pedra que atingiu Santa Maria Madalena, teríamos uma relíquia de terceira classe, ao menos – retrucou.

- Mas irmazinha – achegou-se o desembargador – é uma promessa que fiz a minha esposa, dona Marieta, que a sra. tão bem conhece e a toda a minha família.

- Bem, desembargador, acho que precisamos discutir mais o assunto – respondeu a irmã que não estava gostando do rumo que as coisas tomaram – voltaremos numa outra ocasião – e todas fizeram menção de despedir-se.

- De jeito nenhum, irmazinha – a sra. não vai voltar com essa relíquia. É um perigo. Já foi perigoso trazê-la assim, debaixo do braço. Faço questão. Veja a chuva forte. Ela ficará no cofre da Presidência, aqui mesmo em minha sala, a chave lhe passarei e amanhã uma comitiva sob minhas severas ordens a acompanhará com toda a discrição e segurança a levará até o Convento. Nem pensar em andar com ela por aí, irmã. Ainda mais nesta cidade que se tornou tão violenta e perigosa – protestou o desembargador.

- As irmãs entreolharam-se e a priora, relutante, aceitou.

- Aqui, irmazinha – mostrou o desembargador – abrindo a pesada porta de aço do cofre que havia na sala, semelhante a um pequeno refrigerador.

A irmã Angelina depositou a caixinha com todo o cuidado e o desembargador fechou a porta do cofre, entregando-lhe uma pequena chave.

- Aqui está, irmã. Amanhã nos veremos. Deus seja louvado.

- Amém.

IV

Todos nós temos, em menor ou menor grau, impulsos infantis, que resistem à chegada da velhice e que nos fazem realizar atos às vezes imprudentes, que, se víssemos nos outros, nos sobrariam razões para admoestá-lo. Pois o desembargador L. foi atingido por um súbito e incontrolável desejo de levar a relíquia da Nossa Senhora até sua casa e deixá-la pernoitar no relicário da família e orar de joelhos com sua esposa para agradecer a vida boa que lhes tinha sido agraciada. Utilizando-se da chave reserva do cofre, apanhou a caixinha e dirigiu-se para casa com o carro oficial.

O prédio onde morava o desembargador ficava em uma ladeira em uma ladeira calçada de paralelepídedos em uma tradicional rua da cidade. Ao descer do veículo, aconchegou a caixinha contra o peito e sentiu um frêmito de graça, e pôs-se a atravessar a rua, mas o fez com tanta pressa que tropeçou com vontade numa pedra mal colocada e foi arremessado perigosamente ao solo. Bastou um imponderável instante em que o instinto sobrebujou a vontade, para que o desembargador soltasse a caixinha, que voôu e caiu ao chão, abrindo-se e expulsando seu sagrado conteúdo, que saltitou nas pedras em várias cambalhotas, caindo aos pés de um vira-latas esfomeado que cheirava a calçada. O animal rapidamente cheirou o osso, lambeu-o e mordeu com força, fazendo com que ele se espatifasse em pequenos fragmentos, que foram rapidamente levados pela água da chuva e desapareceram no esgoto pluvial.

Tudo isso aconteceu no tempo de um gemido do desembargador, que assistiu do solo aquela consumição. Quando foi erguido pelo porteiro que veio em seu socorro, olhou atônito para o cachorro, que espirrava com o pó do ossinho que se espalhava sobre o seu focinho. “Primeiro o cão, prenda o cachorro”, foi o que conseguiu dizer ao porteiro e o fez de forma tão alarmada que este prontamente o deixou para atender seu pedido. O porteiro já conhecia o vira-latas e com jeito o atraiu para dentro da guarita e lá o prendeu. O des. Surgiu m seguida mancando doloridamente e ordenou ao porteiro que amarrasse o animal bem amarrado que ele logo lhe daria um destino e subiu para seu apartamento.

V

- Meu Deus, que desgraça, Marieta – foi o que começou dizendo o desembargador à sua esposa, que o vê chegando sujo, molhado e transtornado em casa àquela hora – E agora, o que vou fazer? – terminou, depois de relatar a ela o acidente ocorrido, que a cada lance suspirava um “ai, meu Deus” e foram tantos ais que o desembargador rapidamente saiu do quarto e desceu até a portaria, de onde voltou para casa com o pacato vira-latas amarrado por uma corda.

- Mas o que é isso? – protestou d. Marieta – mas é o Carne Seca! não basta esse sarnento ter devorado uma santa relíquia e você ainda traz esse Judas prá dentro de casa, meu Cristo?

- Você conhece esse cachorro?

- Mas é claro. Todo mundo no prédio conhece o Carne Seca.

- Pois escute aqui, Marieta. Vamos resolver uma coisa de cada vez. Fique sabendo que esse cachorro, apesar de ter feito aquela desgraça, tem agora uma importância que eu não posso desconsiderar.

- Do que é que você está falando? O cachorro come a costela as Santa e você quer dar importância a ele? Pelo amor de Deus!

- Já te explico, Marieta. De acordo com as regras estabelecidas pelo Concílio de Trento, aquele objeto que tocar o corpo de um santo ou um fragmento dele, no caso o ossinho de Nossa Senhora de Alexandria, torna-se uma relíquia oficial pela Igreja. Uma relíquia de 3ª. Classe. Este cachorro, ao entrar em contato com o pedacinho da costela de Nossa Senhora, é uma relíquia viva e reconhecida e o único testemunho material da existência da Santa.

- Mata esse bicho, criatura, mata de uma vez, não quero essa abominação aqui em casa.

- Não vou matar nada, você está louca? – replicou o desembargador - Esse cachorro aqui agora tem história e não se mata a história. Eu vou é dar-lhe um banho, alimentá-lo e deixá-lo na cozinha até amanhã. Então veremos. E em seguida, levou o animal até a banheira do quarto do casal e lavou-o com água quente. E foi tanto pelo e sujeira que saiu daquela carcaça magra que o desembargador pensou que o bicho fosse se consumir inteiro ali mesmo.

Entretanto, as atribulações do desembargador não eram o cão e sim o osso. O que fazer agora?, pensava ele. Onde obter outro pedaço de costela? Osso humano estava fora de cogitação. Algo semelhante, então. Logo que levantou dirigiu-se ao açougue e indagou sem graça, simulando simples curiosidade ao açougueiro, que animal tinha as costelas mais parecidas com a do homem. O açougueiro, sem atinar muito com a pergunta, respondeu:

- A mulher?

- Não. Digo bicho de couro.

- Bem, então é fácil. É o porco, quanto maior mais parecido é.

- Ok, Ok, sorriu o desembargador, já saciou minha curiosidade. Veja que minha mulher me pediu justo para comprar costeletas hoje. Me veja dois quilos. E não serre as costelas. Tenho um cachorro que adora comê-las grandes.

Com o pacote debaixo do braço, o desembargador atirou-se na cozinha e descarnou uma das costelas, apanhou a caixinha, mediu o espaço existente e com uma cutelada, partiu o osso, com o cachorro observando curioso essa sua faina. Em seguida chamuscou-o no fogão e esturricou-o no microondas. Desceu até o pátio de brinquedos do prédio e esfregou o osso no chão diversas vezes e retornou ao fogão e microondas. Repetiu isso com vários pedacinhos e depois, esgravatando na memória o formato do ossinho original, selecionou um deles, depositou-o na caixinha e achou que tinha feito um bom trabalho. Após, barbeou-se, vestiu-se e chamou o motorista e foi até o Tribunal, onde guardou a caixinha no cofre, e passou o resto da manhã esperando ansioso a visita das freiras. Entrementes essas não apareciam e isso apenas aumentava a angústia do desembargador, que afinal, não tinha confiança no seu truque.

Então, no final da tarde, a secretária anuncia a visita de Sua Eminência, velho conhecido do Presidente. Depois das breves formalidades da conversação, Sua Eminência colocou a mão sob a batina preta e tirou a chave do cofre, estendendo-a ao desembargador.

- Pois não, Eminência, por favor, num minuto. E o desembargador viu que todo o seu autocontrole estava se traindo naquele excesso de cortesia e servilismo. Abriu a porta do cofre e entregou a caixinha envernizada ao religioso. Sua Eminência agarrou-a por baixo com uma das mãos e com a outra levantou a tampinha. Sabia que era um gesto deselegante, mas não deveria fazê-lo? Ao olhar o interior, imediatamente franziu o cenho e olhou incisivo para o desembargador:

- Onde está a relíquia verdadeira? o que o senhor fez com ela?

O Presidente deu um sorriso amarelo, atrapalhou-se, traiu-se com um excessivo movimento das mãos e justificou-se:

- Ora, Eminência, há algo errado?

- Presidente, não estamos para brincadeiras. Esta não é a relíquia verdadeira. Eu a conheço há 40 anos. Exijo uma explicação sua, pois o senhor a guardou no seu cofre.

- Não sei do que fala Eminência, por favor, aí está a relíquia. O Sr. tinha a chave do cofre. Eu apenas o abri.

- Insisto que esta não é a relíquia que lhe foi trazida. Esse negócio de chave é bom para as freiras, mas não é bom para mim. O senhor conhece a verdade e vai me dizer! – quase gritou Sua Eminência.

Exaurido pelas poderosas forças da ansiedade que lhe consumiam desde o dia anterior e por uma noite inteira insone, o Presidente desmoronou diante de Sua Eminência. Sentou-se na sua poltrona, escondeu o rosto com as mãos e chorou copiosamente, enquanto explicava o seu infortúnio. Depois, levantou-se, caminhou até o crucifixo pendurado na parede oposta, ajoelhou-se e pediu perdão a Deus.

Era um belo final de tarde e a luz se filtrava pelas persianas sobre a figura do Presidente e Sua Eminência sentiu-se tocado por aquela imagem de expiação. Considerou que o Presidente era um homem da Igreja e tivera a melhor das intenções em construir a Capela para a glória de Deus e doía-lhe vê-lo sofrer assim sinceramente. Aproximou-se dele e colocou-lhe a mão no ombro:

- Presidente, disse – por favor levante-se. Vossa Excelência já teve o bastante por hoje. Sabe, as relíquias da Igreja valem mais pelo seu simbolismo, pelo seu poder de fé do que por sua autenticidade. Veja o caso do Santo Sudário; por mais testes científicos que façam, nada removerá a fé das pessoas em que aquele pedaço de pano cobriu o corpo de Cristo.

O Presidente escutava, enquanto o Bispo olhava-o nos olhos e continuou:

- Somos ambos homens velhos e tementes a Deus. Eu mesmo também já cometi minhas faltas e muito sofri por elas. Por isso, acho que posso aliviá-lo de seu fardo, Presidente, contando com sua discrição.

Sem compreender, o Presidente apenas assentiu com a cabeça.

- A relíquia, Presidente, a relíquia original não existe há muitos anos. Eu a deixei cair no ladrilho do convento e só o que restou foi pó. Essa relíquia perdida por Vossa Excelência é falsa, apenas um substituição grosseira, de cuja autenticidade, felizmente, ninguém duvidou. Aí está.

O Presidente, boquiaberto, logo percebeu que sua Eminência não troçava dele. Sentiu o sangue voltar-lhe as faces, revigorou-se na cumplicidade estabelecida e apenas perguntou:

- Mas, e aquele ossinho, Eminência?

- Ora, Presidente, era uma costelinha de porco.

FIM

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