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domingo, 12 de agosto de 2012

A lei dos canalhas

Nosso mundo está infestado de dados arbitrários ou distorcidos, em nome dos quais populações inteiras são martirizadas, como na Espanha

por Serge Halimi




Em uma das cenas cult do filme de Michael Curtis, Casablanca(1942), o capitão Renault, chefe da polícia local, está rodeado por seus homens e, ao interditar o café de Rick (Humphrey Bogart), proclama: “Estou chocado, realmente chocado em saber que vocês jogam por dinheiro aqui!”. Um instante depois, um crupiê estende um maço de notas ao policial: “Sua parte, senhor”. O capitão agradece com um sussurro, embolsa o dinheiro e ordena: “Todos para fora, rápido!”.

No escândalo financeiro que envolve a instauração fraudulenta de uma taxa interbancária britânica – a London Interbank Offered Rate (Libor) –, é difícil identificar o policial desonesto, pois os candidatos ao papel são muitos. 
Todos os dias, uma média de vinte grandes estabelecimentos financeiros (Barclays, Deutsche Bank, HSBC, Bank of America etc.) define o valor da Libor, que serve de base para transações que somam cerca de US$ 800 bilhões (não, esse número não é um engano do autor), sobretudo no mercado de derivativos.1 Os valores em questão são tão exorbitantes que incentivam a imprensa não financeira a concentrar sua atenção em problemas menores, mas de escala humana: pais que recebem auxílio do governo sem garantir a presença dos filhos na escola, assalariados gregos que complementam a baixa renda trabalhando no mercado negro. A indignação se volta contra essas pessoas, que também acabam absorvendo a cólera destinada aos governantes e ao Banco Central Europeu.

Embora a manipulação da Libor pareça complicada, ela é tão esclarecedora como a cena de Casablanca. Preocupados em melhorar sua saúde financeira e alavancar seus fundos no mercado, os grandes bancos, cuja palavra era digna de confiança, diminuíram suas taxas de empréstimo ao longo dos anos. Essa taxa declarada determinou em seguida a da Libor e, portanto, a dos futuros empréstimos. Ao “adoecer” pela “descoberta” de fraude em seu banco, o patrão do Barclays pediu demissão no dia 3 de julho. O diretor do Banco da Inglaterra também diz ter entendido há apenas algumas semanas a fraude em questão.2

“Chocado, realmente chocado em descobrir” a pólvora? O Barclays e o Banco da Inglaterra não devem ler a imprensa financeira, pois no dia 16 de abril de 2008 o Wall Street Journal havia publicado um artigo intitulado “Banqueiros questionam uma taxa-chave”. Primeiro parágrafo: “Um dos barômetros mais importantes da saúde do mundo financeiro poderia enviar sinais falsos”.

Nosso mundo está infestado de dados arbitrários ou distorcidos (Libor, “regra de ouro”, nível da dívida ou limites para o déficit público...), em nome dos quais populações inteiras são martirizadas, como na Espanha (ver texto "O gato de Felipe González" - Edição 61 Le Monde Diplomatique Brasil). Os que infligem esses castigos com mais crueldade são os mesmos que mantêm uma auréola de respeito por serem presidentes de um banco central ou de uma agência de risco. Quatro anos após a eclosão de uma das maiores crises financeiras da história, contudo, a utilidade social desses organismos está abalada.

Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).

1 Ler Ibrahim Warde, “La dérive des nouveaux produits financiers” [A deriva dos novos produtos financeiros], Le Monde Diplomatique, jul. 1994.
2 Cf. “Missteps on Libor doomed top executives at Barclays” [Erros na Libor condenaram altos executivos da Barclays], The Wall Street Journal, Nova York, 15 jul. 2012.

Fonte: LE MONDE DIPLOMATIQUE

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