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quarta-feira, 22 de agosto de 2012

As maléficas interferências da Igreja na vida civil





 
Lembro da surpresa que foi ler a reportagem de capa da revista alternativa portenha La Maga sobre os gastos do governo com as viagens periódicas dos bispos argentinos a Roma. 
Relançada no ano passado, La Maga foi um marco na contracultura do país vizinho nos anos 90. Era impressa em papel barato e se propunha a discutir temas ignorados pela chamada indústria cultural. Já as visitas dos bispos a Roma, conhecidas como viagens “ad limina apostolorum”, é ainda hoje uma obrigação imposta pelo Código do Direito Canônico de os prelados realizarem a cada cinco anos uma visita ao papa e realizar uma prestação de contas dos trabalhos em suas dioceses.

Por que o governo argentino banca os custos dessas viagens dos dignitários da Igreja Católica Apostólica Romana? Faz parte dos usos e costumes daquele país e consta no artigo segundo da Constituição Argentina, que diz: “El Gobierno federal sostiene el culto católico apostólico romano.”

Também o Brasil imperial teve laços dessa natureza com a igreja católica. A Constituição de 1824, no artigo 5º, definia o catolicismo como a religião do Império, embora permitindo outros cultos desde que realizados em locais sem aparência de tempo. Mais adiante, no artigo 102, define como atribuição do imperador: “§ II. Nomear Bispos, e prover os Benefícios Ecclesiasticos.” Ou seja, os bispos ocupavam posição de funcionários do Estado, com salário e tudo. Foi essa a causa da “questão religiosa”, um dos motivos da queda do regime monárquico em 1889. Dois bispos, Dom Vital de Oliveira, de Olinda, e D. Antônio de Macedo, de Belém do Pará, que haviam ido estudar Teologia em Roma com bolsa concedida pelo imperador, se recusaram a aceitar como membro das confrarias religiosas os adeptos da maçonaria. Velha aliada da Igreja, a maçonaria caíra em desgraça sob o papado ultramontano de Pio IX. Os dois bispos acabaram presos e depois anistiados pelo então conciliador chefe de governo Duque de Caxias (o ministro anterior, Barão do Rio Branco, era grão-mestre da maçonaria, daí a saia-justa).

Essas picuinhas todas terminaram com a República, que formalizou a separação entre o Estado e a Igreja. Foi bom para todo mundo. 
Infelizmente não é o que se vê hoje em dia na Rússia. Ali, a Igreja Ortodoxa Russa está cada vez mais intrincada com o atual governo de Vladimir Putin, dando apoio e suporte à série de desmandos que leva aquele país, um dos membros dos BRICs, a cada vez mais perder o barco da história. Uma potência nuclear e pioneira na corrida espacial para a Lua, hoje a Rússia não é referência nem em indústria automobilística (todos os carros que circulam em desabrida velocidade pelas amplas avenidas de Moscou são das conhecidas marcas alemãs, japonesas e coreanas), nem da informática ou das telecomunicações. 

A Rússia esbanja os recursos naturais, devasta seu território, vendendo florestas inteiras para os vizinhos chineses, tem um dos regimes mais corruptos do planeta (e olha que esse é um duro páreo) e boa parte de sua população mais jovem (exígua para o tamanho do país), dizem as pesquisas, se pudesse iria viver em outros lugares, como de fato fazem os que conseguem.

A que vem todas essas considerações? 
A dois fatos amplamente divulgados esses dias. Um deles foi a condenação a dois anos de prisão das três integrantes da banda punk Pussy Riot pela Justiça russa na sexta-feira passada (17/8). 

O nome da banda já é um atrevimento, algo assim como a “revolta das xoxotas”. E elas têm mandado bem. Mas essa decisão de dois anos de prisão despertou forte repercussão internacional, com manifestações em diversas capitais (Barcelona, Viena, Berlim e Hamburgo, Londres, Paris, Nova York, Sydney, Buenos Aires, Oslo, Kiev, na vizinha e inimiga Ucrânia), pedindo a liberdade do grupo — punido após protestar no altar da maior igreja ortodoxa do país, a Catedral de Cristo Salvador, em Moscou. As moças do trio haviam se oposto, entre outras coisas, à recondução de Putin à Presidência e à falta de lisura nas últimas eleições daquele país.

A catedral de Cristo Salvador é um marco emblemático na Igreja Ortodoxa Russa. Foi construída a partir de 1812 por ordem de Alexandre I, para celebrar a vitória sobre as tropas napoleônicas. Ela disputa com a igreja de São Basílio, dentro do Kremlin, o prestígio de ser o principal templo da cidade, onde acontecem as principais solenidades da Igreja Ortodoxa. Consagrada em 1883, com a coroação de Alexandre III, se tornou símbolo sagrado no imaginário russo.

Com a torre principal chegando a 103 metros, o templo tem um jogo de cinco belas cúpulas douradas e capacidade de abrigar 7 mil fieis. Com o regime stalinista, a igreja foi dinamitada em 1933, para dar lugar a um Palácio dos Sovietes, que deveria ter uma torre de 400 metros de altura e a estátua de Lênin no cimo, com 98 metros. A ideia não chegou a se concretizar e, com a morte de Stálin, Krushev decidiu construir uma piscina pública com capacidade para atender a 20 mil frequentadores simultaneamente. Com o final do regime, o patriarca da igreja ortodoxo russa liderou um movimento, encampado pelo prefeito de Moscou de refazer a igreja. A piscina foi fechada em 1994 e a catedral reconstruída exatamente como a original, abrindo novamente suas portas na noite de 31 de dezembro de 1999.

A condenação das Pussy Riot aconteceu pouco depois de o Tribunal Municipal de Moscou confirmar, no dia 7 de agosto, a validade de uma lei da cidade que proíbe pelos próximos 100 anos a realização de paradas gays na capital russa. Outra vez o dedo da Igreja Ortodoxa. Ecoa, de certo modo, a famosa frase do cardeal ítalo-argentino Antonio Quarracino, que afirmou na época do general Videla que o lugar dos gays era no zoológico.

No ano passado, numa entrevista que realizei com o diretor da Academia de Música do Hermitage, de São Petersburgo, o compositor Sergey Yevtushenko, ele contava que diversos projetos de homenagem ao centenário da morte do grande escritor Leon Tolstoi, ocorrido em 2010, tiveram o financiamento cortado pelo governo, por pressão da Igreja Ortodoxa Russa. Yevtushenko é autor da trilha de filmes como A Arca Russa, de Aleksandr Sokurov, e A Última Estação, do alemão Michael Hoffman — justamente sobre os últimos anos de vida de Tolstoi, excomungado pela Igreja Russa. E esta, apesar de ter vivido meio na clandestinidade durante o longo regime comunista, nunca voltou atrás em sua condenação.

Tolstoi, filho de um conde e uma princesa, casado com uma nobre russa, Sophia Andreievna Bers, com quem teve 13 filhos, ele mesmo portador do título de conde, ficou famoso por tornar-se, na velhice, um líder pacifista. Muitos de seus textos e ideias, libertários, batiam de frente com as normas da igreja ortodoxa e do governo czarista, por pregar uma vida simples e em proximidade com natureza. Na busca desse ideal, de um sentido para a sua vida, Tolstoi deixou a família e as riquezas para ir viver como um agricultor ou mujique qualquer. Em seu tempo, ele chegou a ser comparado com a figura de Jesus. E sua doutrina pacífica da desobediência civil, bebida nas leituras do pensador americano Henry Thoreau, influenciou diversos pacifistas e ativistas da resistência não-violenta — os mais notáveis deles foram o Mahatma Gandhi, responsável pela independência da Índia do domínio britânico, e o homem que conseguiu vencer o apartheid na África do Sul, Nelson Mandela.

No segunda metade do século XIX, preocupado com a precariedade da educação no meio rural russo, Tolstoi criou em seu povoado natal Iasnaia Poliana, a 200 km de Moscou, uma escola para filhos de camponeses. Ele mesmo escreveu grande parte do material didático e, contrariando a ridigez da pedagogia da época, deixava os alunos livres, sem excessivas regras e sem punições. Tudo isso enquanto escrevia, ao longo de sete anos, o seu portentoso Guerra e Paz (1869) e depois o Anna Karenina (1878), obras que já prenunciam essa preocupação com a situação miserável dos mujiques.

O cristianismo do escritor recusava a autoridade de qualquer governo organizado e de qualquer igreja. Criticava também o direito à propriedade privada e os tribunais e pregou o conceito de não-violência. Para difundir suas ideias Tolstoi escreveu panfletos, ensaios e peças teatrais, criticando a sociedade e o intelectualismo estéril das discussões teológicas da Igreja. A Igreja russa o excomungou em 1901 e nunca mais admitiu homenagens, pegando pesado na pressão ao governo para não dar suporte às comemorações previstas para 1910.

Mas deixemos de lado a Rússia, e vamos falar da China, a bola da vez. E não apenas pela eleição, no sábado passado, da bela Wen Xiayu como a Miss Mundo 2012, no certame realizado no estádio de Ordos, na Mongólia interior. Esse será o tema de uma série de crônicas a partir da próxima semana, visto que o editor deste site deu sinal verde para, em tempos de julgamento do mensalão e das enrolações da CPMI, essa coluna viaje por outros mares. Até a próxima semana.

Carlos Costa é jornalista, professor da Faculdade Cásper Líbero e editor da revista diálogos & debates.
Revista Consultor Jurídico, 22 de agosto de 2012

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