Domingo, Fevereiro 07, 2010
EM REPÚDIO AO PEQUENO HOMEM
O mundo está cheio de pessoas lindas. Mas as abomináveis são legião. Entre estas, as que acham que sabem porque ouviram dizer. Que não lêem livros nem jornais, mas recebem informações por televisão. E que, por ver televisão, acham que entendem o mundo.
Tropeço às vezes com essa gente. Cara, quem és tu para contestar o Sílvio Santos? O Sílvio Santos tem um grande público. A ti, ninguém conhece. Que tens contra o Lula? Tu não ganharias eleição nem pra síndico. O Lula tem sucesso. Já é candidato a Nobel. Qual é tua bronca com o Paulo Coelho? O Paulo vende milhões de livros em dezenas de línguas, tu não consegues vender teus livros nem no Brasil. Que autoridade tens para contestar o papa? O papa é o líder da cristandade, e tu não consegues liderar nem mesmo teus vizinhos de condomínio.
Com estes interlocutores, não adianta argumentar. Se o Sílvio Santos tem sucesso, se o Lula tem sucesso, se o Paulo Coelho tem sucesso, se o papa tem sucesso e você não tem sucesso, então você não vale nada. É a idolatria das celebridades. O pior é que agora, com os tais de Big Brothers, surgem celebridades do nada. Alguém é célebre porque a televisão decidiu que é célebre e estamos conversados.
Em função deste culto do sucesso, perdi inclusive um amigo, empresário de muitos milhões de dólares. Eu lhe enviava diariamente minhas crônicas. Até o dia em que me pediu: “podes me enviar qualquer crônica, menos aquelas sobre o Lula e o PT. Lula é homem bem sucedido”. Ok! Mas se tenho de censurar-me, não envio mais nenhuma. E assim terminou nosso amor.
Estes espécimes foram muito bem definidos no século passado por um judeu da Ucrânia. É o Kleinen Mann, de Wilhelm Reich. Ou o Zé Ninguém, como foi traduzido em português: “O homem pequeno é aquele que não reconhece sua pequenez e teme reconhecê-la; que procura mascarar a sua tacanhez e estreiteza de vistas com ilusões de força e grandeza, força e grandezas alheias. Que se orgulha de seus grandes generais mas não de si próprio. Que admira as idéias que não teve, mas jamais as que teve. Que acredita mais arraigadamente nas coisas que menos entende, e que não acredita no que quer que lhe pareça fácil de assimilar”.
Daí a acreditar no papa, em Hitler ou Stalin, basta um pequeno passo. Estas gentes, eu as conheço desde minha adolescência. Quando em Dom Pedrito, lá pelos meus 14 ou 15 anos, me insurgi contra a Igreja Católica. Um sacerdote de Bagé, franzino e inquisitorial, veio às pressas para tentar trazer o herege em potencial de volta ao rebanho. Discutimos um dia todo, com várias jarras de água e um almoço de permeio. A cada preceito de fé que eu contestava, padre Fermino Dalcin me jogava no rosto a acusação: "Arrogância. Orgulho intelectual. Quem és tu para contestar, aqui em Dom Pedrito, o que autoridades decidiram em Roma?"
Era algo pesado para um piá de uns quinze anos. É o famoso argumento da autoridade: quem você pensa que é? Eu só tinha como defesa descrer do que não conseguia entender. Mas resisti e consegui, ainda adolescente, libertar-me do deus judaico-cristão. Agostinho ou Tomás de Aquino que se lixassem. Eu estava escorado na lógica e na razão, e não há fé que sobreviva à lógica e a razão. Como cachorro que sacode o corpo para secar-se, sacudi minha alma e procurei, nos anos seguintes, livrar-me da craca ética que vinha grudada ao cadáver do deus cristão. Esta é, a meu ver, a grande função da leitura, libertar o homem de mitos e superstições.
Continua Reich: “Tu mesmo te desprezas, Zé Ninguém. Dizes: ‘quem sou eu para ter opinião própria, para decidir sobre minha própria vida e ter o mundo como meu?’ E tens razão: quem és tu para reclamar direitos sobre tua vida? Deixa-me dizer-te.
“Diferes dos grandes homens que verdadeiramente o são apenas num ponto: todo grande homem foi um dia um Zé Ninguém que desenvolveu apenas uma outra qualidade: a de reconhecer as áreas em que havia limitações e estreiteza em seu modo de pensar e agir. O grande homem é pois aquele que reconhece quando e em que é pequeno”.
Não tenho preocupação alguma com o tal de sucesso. Sucesso é uma soma de equívocos. Lula, Paulo Coelho, o papa, para mim não valem um ceitil. Meus valores são outros. Para mim, Coelho continua sendo um medíocre e Lula um analfabeto. Qualquer crônica que escrevo tem muito mais informação e profundidade que toda a obra do Coelho. Que, aliás, não tem profundidade alguma. É rasa. Quanto ao pastor alemão, pelo que leio de seus pronunciamentos, pelo jeito nem leu a Bíblia. Até já me coloquei à disposição dele para algumas aulinhas de recuperação em catecismo. Ou talvez a tenha lido. Mas sua função de bedel do Vaticano o impede de falar o que conhece.
Respeito quem tem cultura. Meus heróis não vendem milhões de exemplares nem têm milhões de leitores. Enfim, até podem ter. Mas através dos séculos e não do dia para a noite. Cultura, sei que a tenho. E inteligência também. Se não as tivesse, talvez fosse bestseller. No dia em que tiver cem mil leitores, me perguntarei o que estou fazendo de errado.
Respeito quem lê. Cultivo autores como Ernest Renan, Mircea Eliade, Karen Armstrong, Le Goff, Jean Delumeau, Jean Soler, Georges Minois, Michel Onfray, Karlheinz Deschner. Me fascina a capacidade de trabalho e de síntese destes autores. Eu os invejo e diante deles me sinto diminuto. Não que eu só respeite historiadores de religião. Entre meus diletos, estão Platão, Cervantes, Swift, Dostoievski, Nietzsche, Voltaire, Orwell, Pessoa, Hernández. Fora da literatura, tenho profundo respeito por Alexandre, Fernão de Magalhães, Harvey, Galileu, Giordano Bruno, Schliemann, Champollion. E muitos outros. Ante estes, me sinto pequeno.
Mas não diante de um bispo de Roma, que professa superstições milenares nas quais talvez nem acredite, mas que tem de assumir como bom funcionário da Igreja. Pode valer alguma coisa pessoa que por obrigação profissional tem de acreditar na virgindade da Maria, na ressurreição do judeu aquele, no deus assassino do Velho Testamento? Os crentes que me desculpem, mas pessoa assim não vale um vintém furado.
Há quem me julgue egocêntrico. Nada disto. Meu ego é apenas um pouquinho maior que o do Lula ou o do Paulo Coelho. Eles têm sucesso. Lula é visto hoje como um dos grandes dirigentes do planetinha. É que a imprensa internacional não tem notícias de suas corrupções e incoerências. Coelho é talvez um dos escritores que mais vendem no mundo. Não me interessa. Meus valores são outros. Para mim, Coelho continua sendo um medíocre e Lula um analfabeto. Qualquer crônica que escrevo tem muito mais informação e profundidade que toda a obra do Coelho. Que, aliás, não tem profundidade alguma. É rasa.
Este homenzinho é também o professor universitário que endeusa Marx, Brecht, Freud, Lukács, Brecht, Sartre ou Lacan. Só porque tiveram algum sucesso histórico ou literário. É o mesmo que cultua Machado de Assis, Euclides da Cunha, Erico Verissimo, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, sem jamais tê-los lido, só porque em algum momento os tais de críticos os entronizaram como grandes escritores. Este homenzinho não é encontradiço apenas nos bares. Eles pontificam tanto na universidade como na imprensa, tanto no poder como na Academia de Letras. Sem ir mais longe, vide o Sarney.
É o mesmo homenzinho que lota estádios de futebol e shows de rock, que chora ao assistir Titanic ou O Filho do Brasil, que locupleta templos evangélicos e o bolso dos pastores, que assiste a novela das oito e lambe vitrines nos shoppings, que troca de carro todos os anos e vai comprar TV de plasma para assistir a Copa. É o homem-massa de Ortega y Gasset. Aquele que, “sendo bárbaro e estúpido, quer impor sua barbárie e estupidez como norma máxima da sociedade. (...) O homem-massa é o homem cuja vida carece de projeto e caminha ao acaso. Por isso não constrói nada, ainda que suas possibilidades, seus poderes sejam enormes. E este tipo de homem decide em nosso tempo.”
Este eterno pequeno homem, que adora tanto o Lula como o papa, tanto Sílvio Santos como Paulo Coelho, é o mesmo que um dia adorou Hitler, Stalin ou Pol Pot como deuses. O homem mais amado de sua época não foi Cristo. No dia de sua morte, seus discípulos deram no pé. O homem mais amado na história foi Adolf Schicklgruber, que hoje conhecemos como Hitler. Procure fotos da época. Verá o olhar extasiado de milhares de alemães contemplando o deus vivo quando desfilava. Quando Joseph Vissarionovitch Djugatchivili morreu, houve quem não acreditasse na notícia. Porque um deus não pode morrer. Ah, o Joseph Vissarionovitch Djugatchivili é aquele que ficou conhecido como Stalin, o de aço.
Este homúnculo, em minha mesa não senta.
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