TIBETE
- Realmente, o Tibete - este "teto do mundo", consoante a hipérbole oriental — tem, na sua maior cidade, Lassa, o Vaticano do budismo.
A filosofia, que é um prodígio de imaginação e de incoerência - toda baseada na idéia essencial do nada, ao mesmo passo que vê na natureza uma infinita série de decomposições e recomposições sem princípio e sem fim - não podia encontrar melhor cenário, nem mais apropriada gente.
O Tibete é uma vasta Tebaída misteriosa. Um terço de sua população é de lamas — monges miseráveis e repulsivos, vestidos de trapos de mortalhas, meio idiotas e errantes de mosteiro em mosteiro, de povoado em povoado, ou à toa, pelos descampados, a pregarem, alucinadamente, a extinção da personalidade, o dogma do desespero e o tédio universal da vida: enquanto os dois terços restantes se abatem aniquilados, inteligências mortas sob o fardo de deuses e de mundos e de kalpas seculares da mitologia formidável, que as estonteia e que as esmaga...
Toda essa gente ali se agita, num meio sonambulismo. O viajante encontra, por vezes, em todos os cantos de ruas, à entrada das casas, ou dos templos, incontáveis moinhos, tocados pelos escravos, ou pelos ventos, ou pela água — e tem a ilusão do trabalho. Mas a ilusão apenas. A breve trecho, nota que os cilindros gigantes não esmoem o trigo, ou separam a lã; sacodem, esterilmente, as orações e as fórmulas consagradas que contêm.
As energias escassíssimas das gentes vão-se naquele industrialismo místico da reza.
Então, avalia bem a identidade admirável que no Tibete, associa, indissoluvelmente, o homem e a terra. Lança o olhar em volta. Contempla as paragens desoladas e abruptas, tumultuando em píncaros desnudos, perdidos no silêncio misterioso das alturas, e compreende que para aquele recanto do planeta, alternadamente trabalhado pelos maiores estios e pelos maiores invernos - só mesmo a quietude eterna e a imensidade vazia do Nirvana.
- EUCLIDES DA CUNHA - Contrastes e confrontos
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