Perfil

Advogado - Nascido em 1949, na Ilha de SC/BR - Ateu - Adepto do Humanismo e da Ecologia - Residente em Ratones - Florianópolis/SC/BR

Mensagem aos leitores

Benvindo ao universo dos leitores do Izidoro.
Você está convidado a tecer comentários sobre as matérias postadas, os quais serão publicados automaticamente e mantidos neste blog, mesmo que contenham opinião contrária à emitida pelo mantenedor, salvo opiniões extremamente ofensivas, que serão expurgadas, ao critério exclusivo do blogueiro.
Não serão aceitas mensagens destinadas a propaganda comercial ou de serviços, sem que previamente consultado o responsável pelo blog.



domingo, 16 de março de 2014

A escravidão venceu no Brasil. Nunca foi abolida


Entrevista imperdível

-=-=-=-=-



ENTREVISTA





Eduardo Viveiros de Castro, 62 anos, é o mais reconhecido e discutido antropólogo do Brasil. Acha que “a ditadura brasileira não acabou”, evoluiu para uma “democracia consentida”. Vê nas redes sociais, onde tem milhares de seguidores, a hipótese de uma nova espécie de guerrilha, ou resistência. Não perdoa a Lula da Silva ter optado pela via capitalista e acha que Dilma Rousseff tem uma relação “quase patológica” com a Amazônia e os índios. Não votará nela “nem sob pelotão de fuzilamento”.
Professor do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, autor de uma obra influente (destaque para A Inconstância da Alma Selvagem ou Araweté — O Povo do Ipixuna, este último editado em Portugal pela Assírio & Alvim), Viveiros de Castro é o criador do perspectivismo ameríndio, segundo a qual a humanidade é um ponto de vista: a onça vê-se como humana e vê o homem como animal; o porco vê-se como humano e vê a onça como animal. Humano é sempre quem olha.
Nesta longa entrevista, feita há um mês no seu apartamento da Baía de Botafogo — antes ainda da greve dos garis (homens e mulheres do lixo), um exemplo de revolta bem sucedida — Viveiros foi da Copa do Mundo ao fim do mundo. Acredita que estamos à beira do apocalipse.
Vê sinais de uma revolta nas ruas brasileiras? Aquilo que aconteceu em 2013 foi um levantamento mas não uma revolta generalizada. Acha que isso pode acontecer antes da Copa, ou durante?




O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro é autor de uma obra influente, que inclui "A Inconstância da Alma Selvagem" e "Araweté — O Povo do Ipixuna" DÉBORAH DANOWSKI
É muito difícil separar o que você imagina que vai acontecer daquilo que você deseja que vá acontecer.
Vamos separar. O que desejaria que acontecesse?
Revolta popular durante a Copa.
E isso significa o quê, exactamente?
Manifestação. Não estou imaginando a queda da Bastilha nem a explosão de nada, mas gostaria que a população carioca o deixasse muito claro. Embora a Copa vá acontecer em várias cidades, creio que o Rio se tornou o epicentro do problema da Copa, em parte porque o jogo final será no Maracanã.
Mesmo nas manifestações, o Rio foi a cidade mais forte.
São Paulo também teve manifestações muito importantes, mais conectadas com o Movimento Passe Livre [MPL, estudantes que em Junho de 2013 iniciaram os protestos contra o aumento dos transportes]. Voltando ao que eu desejaria: que a população carioca manifestasse a sua insatisfação em relação à forma como a cidade está sendo transformada numa espécie de empresa, numa vitrine turística, colonizada pelo grande capital, com a construção de grandes hotéis, oferecendo oportunidades às grandes empreiteiras, um balcão de negócios, sob a desculpa de que a Copa iria trazer dinheiro, visibilidade, para o Brasil.




O problema é que vai trazer má visibilidade. Vai ser uma péssima propaganda para o Brasil. Primeiro, porque, se estou bem entendendo, vários compromissos contratuais com a FIFA não estão sendo honrados, atrasos muito grandes, etc. Segundo, porque essa ideia de que os brasileiros estão achando uma maravilha que a Copa se realize no Brasil pode ser desmentida de maneira escandalosa se os turistas, tão cobiçados, chegarem aqui e baterem de frente com povo nas ruas, brigando com a polícia, uma polícia despreparada, brutal, violenta, assassina. Tenho a impressão de que não vai fazer muito bem à imagem do Brasil.
Outra coisa importante é que a Copa foi vendida à opinião pública como algo que ia ser praticamente financiado pela iniciativa privada, que o dinheiro do povo, do contribuinte, ia ser pouco gasto. O que está se vendo é o contrário, o governo brasileiro investindo maciçamente, gastando dinheiro para essas reformas de estádios, dinheiro dos impostos. Então, nós estamos pagando para que a FIFA lucre. Porque quem lucra com as copas é a FIFA.
Desejaria que essa revolta impedisse mesmo a Copa?
Impedir a Copa é impossível, não adianta nem desejar. Não sei também se seria bom, poderia produzir alguma complicação diplomática, ou uma repressão muito violenta dentro do país. Existe uma campanha: Não Vai Ter Copa. O nome completo é: Sem Respeito aos Direitos Não Vai Ter Copa. No sentido desiderativo: não deveria haver, desejamos que não haja.
O que se está dizendo é que os direitos de várias camadas da população estão sendo brutalmente desrespeitados, com remoções forçadas de comunidades, desapropriando sem indemnização, modificando aspectos fundamentais da paisagem carioca sem nenhuma consulta. Isso tudo está irritando a população.
Mas não é só isso: a insatisfação com a Copa foi catalisada por várias outras que vieram surgindo nos últimos anos, que envolvem categorias sociais diversas, e não estão sendo organizadas nem controladas pelos partidos. Essas manifestações têm de tudo, uma quantidade imensa de pautas [reivindicações]. Tem gente que quer só fazer bagunça, tem gente de direita, infiltrados da polícia, neonazistas, anarquistas. Um conjunto complexo de fenómenos com uma combinação de causas. Uma coisa importante é que são transversais: tem gente pobre e de classe média misturada na rua. É a primeira vez que isso acontece. O que talvez tenha em comum é que são todos jovens. Da classe média alta à [favela da] Rocinha.
Mas agora não são muito expressivas em termos de números. E não são as favelas que estão em massa na rua.




As famosas massas ainda não desceram, e provavelmente não vão descer durante a Copa. Nem sei se vão descer em alguma momento, se existe isso no Brasil. Mas acho que vai haver uma quantidade de pequenas manifestações. Por exemplo, a Aldeia Maracanã [pequena comunidade de índios pressionada a sair, por causa das obras do estádio] produziu uma confusão muito grande, se você pensar no tamanho da população envolvida. Os moradores daquela casa eram 14 pessoas e não obstante mobilizaram destacamentos do Bope [tropa de elite], bombas, etc. Quem está, em grande parte, criando a movimentação popular é o estado, com a sua reacção desproporcional. O Movimento Passe Livre ganhou aquela explosão em São Paulo por causa da brutalidade da reacção policial. O Brasil nunca teve esse tipo de confronto entre a polícia e jovens manifestantes. A polícia não sabe como reagir, não tem um método, então reage de maneira brutal. Os próprios manifestantes não têm experiência de organização. O que estão chamando de black bloc não é a mesma coisa que black bloc na Dinamarca, na Alemanha ou nos Estados Unidos.
Mais volátil.
Ideologicamente pouco consistente. Sabemos que o black bloc europeu é essencialmente uma táctica de protecção contra a polícia. Noutros países, como os Estados Unidos, tem uma certa táctica de agressão a símbolos do capitalismo. Aqui no Rio está uma coisa meio misturada, ainda não se consolidou uma identidade, um perfil táctico claro para o que se chama de black bloc. E eles estão sendo demonizados. Acho até que, no caso do Brasil, o facto de que sejam black coloca uma pequena ponta de racismo nessa indignação. Não duvido de que no imaginário da classe média por trás da máscara negra esteja também um rosto negro. Pobres, bandidos, etc.
Mas isso está acontecendo ao mesmo tempo que a polícia continua invadindo as favelas, matando 10, 12, 15 jovens por semana. Até recentemente esse comportamento clássico do estado diante da população muito pobre, isto é, mandar a polícia entrar e arrebentar, era algo que a classe média tomava como... [sinal de longínquo].
Porque se passava lá nos morros.
Quando a violência começou a atingir a classe média — ainda que uma bala de borracha não seja uma bala de fuzil, porque o que eles usam na favela é bala de verdade e o que eles usam na rua é bala de borracha, ainda assim você pode matar com bala de borracha, pode cegar, etc —, à medida que a polícia começou a atacar tanto a rua quanto o morro houve um aumento da percepção da classe média em relação à violência da polícia nas favelas, o que é novidade. A imprensa fez uma imensa campanha para santificar a polícia com a coisa das UPP [Unidade de Polícia Pacificadora, programa para acabar com o poder armado paralelo nas favelas, instalando a polícia lá dentro], mas todo o mundo está percebendo que essas UPP são no mínimo ambíguas. Basta ver o caso do [ajudante de pedreiro] Amarildo, que foi sequestrado, torturado e morto pela polícia [em Junho de 2013, na Rocinha], e sumiu da imprensa.
Vinte e cinco policiais foram indiciados.




Quero ver o que vai acontecer. Quem deu visibilidade à morte do Amarildo não foi a grande imprensa. Foram as redes sociais, os movimentos sociais. Essa morte é absolutamente banal, acontece toda a semana nas favelas, mas calhou de acontecer na altura das manifestações, então foi capturada pelos manifestantes, o que produziu uma solidariedade entre o morro e a rua que foi inédita.
Num país como este, em que a desigualdade, a violência, continuam, porque é que as massas não saem?
Quem dera que eu soubesse a resposta. Essa é a pergunta que a esquerda faz desde que existe no Brasil. Acho que há várias razões. O Brasil é um país muito diferente de todos os outros da América Latina, por exemplo da Argentina. Basta comparar a história para ver a diferença em termos de participação política, mobilização popular. Tenho impressão de que isso se deve em larga medida à herança da escravidão no Brasil. O Brasil é um país muito mais racista do que os Estados Unidos. Claro que é um racismo diferente. O racismo americano é protestante. Mas no Brasil há um racismo político muito forte, não só ideológico como o americano, interpessoal. O Brasil é um país escravocrata, continua sendo. O imaginário profundo é escravocrata. Você vê o caso do menino [mulato] amarrado no poste [no bairro do Flamengo, por uma milícia de classe média que o suspeitava assaltante] e que respondeu de uma maneira absolutamente trágica quando foi pego: mas meu senhor, eu não estava fazendo nada. Só essa expressão, “meu senhor”... O trágico foi essa expressão. Continuamos num mundo de senhores. Porque o outro era branco.
Como um DNA, algo que não acabou.
Não acabou, pois é. É o mito de que no Brasil todas as coisas se resolvem sem violência. Sem violência, entenda-se, sem revolta popular. Com muita violência mas sem revolta. A violência é a da polícia, do estado, do exército, mas não é a violência no sentido clássico, francês, revolucionário.
E toda a vez que acontecem coisas como essas manifestações de Junho, por exemplo, há aquela sensação: dessa vez o morro vai descer. O morro não desceu. Em parte porque já não é mais o morro, boa parte do morro é de classe média. Evidentemente, houve um crescimento económico. As favelas da minha infância, nos anos 50, eram completamente diferente, como essas vilas da Amazônia, feitas de lona preta. Hoje são casas de alvenaria, feitas de tijolos. Ainda assim a miséria continua. Quero dizer apenas que a distância entre a classe média e o morro diminuiu do ponto de vista económico.
Ao fazer ascender esses milhões da miséria, o PT neutralizou a revolução?




Em parte pode ser isso. Houve uma espécie de opção política forçada do PT, segundo a qual a única maneira de melhorar a renda dos pobres é não mexer na renda dos ricos. Ou seja, vamos ter que tirar o dinheiro de outro lugar. E de onde é que eles estão tirando? Do chão, literalmente. Destruindo o meio ambiente para poder vender soja, carne, para a China. Não está havendo redistribuição de renda, o que está havendo é aumento da renda produzida pela queima dos móveis da casa para aquecer a população, digamos. Está um pouquinho mais quente, não estamos morrendo de frio, mas estamos destruindo o Brasil central, devastando a Amazônia. Tudo foi feito para não botar a mão no bolso dos ricos. E não provocar os militares.
A ditadura brasileira não acabou. Nós vivemos numa democracia consentida pelos militares. Compare com a Argentina: porque é que no Brasil não houve julgamento dos militares envolvidos na tortura?  Porque os militares não deixam. Vamos ver o que vai acontecer agora, no dia 1 de Abril.
Com o aniversário do golpe militar.
Já existe uma campanha aí, subterrânea, para que no dia 31 de Março apaguem-se as luzes, toquem-se buzinas, para comemorar o 50º aniversário do golpe. Ou seja, existe uma campanha da direita para mostrar que a população ainda apoia a direita. Não sei que sucesso vai ter, mas não duvido que haja uma manifestação, oculta, pessoas que vão apagar as luzes das suas casas ou piscar as luzes à meia-noite, alguma coisa assim.
Mas nenhuma possibilidade de viragem à direita.
Não creio.
O actual regime não é uma democracia?
O Brasil é uma democracia formal, claro, mas consentida pelo status quo. A abertura foi permitida pelos militares. A Lei da Amnistia foi imposta tal qual pelo governo militar. Eles não foram destronados, presos, criminalizados. Simplesmente foram amnistiados. E boa parte do projecto de desenvolvimento nacional gestado durante a ditadura militar está sendo aplicado com a maior eficiência.
Pela esquerda.
Pela chamada esquerda, pela coalisão que está no poder, na qual a esquerda é uma parte mínima, porque tem os grandes proprietários de terra, os grandes empresários.
Está cumprindo um ideário que vem da ditadura?




O PT é um partido operário do século XIX. Eles têm um modelo que é indústria, crescimento, como se o Brasil fosse os Estados Unidos do século XXI. Com grande consumo de energia. Uma concepção antiga, fora de sintonia com o mundo actual. Agora está começando a mudar um pouco, mas a falta de sensibilidade do governo para o facto de que o Brasil é um país que está localizado no planeta Terra, e não no céu, é muito grande. Eles não percebem. Acham que o Brasil é um mundo em si mesmo.
Ou seja, que não vai ser afectado pelo aquecimento global, etc.
É, que todas essas coisas são com os outros. Um pouco como acontece nos Estados Unidos, em países muito grandes.
A única visão global que o Brasil tem é de se tornar uma potência geopolítica. O Brasil, hoje, é um actor maior, de primeira linha, em Moçambique, em Angola, nos países latino-americanos. Está disputando com a China pedaços de Moçambique. A Odebrecht está construindo hidroeléctricas [barragens] em Angola e assim por diante. O Brasil se imagina como potência que vai oprimir. Agora é a vez de sermos opressores, deixarmos de ser os oprimidos. Agora os brasileiros da vez vão ser os haitianos, os bolivianos, os paraguaios, que trabalham nas “sweetshops” de São Paulo, nas terras em que plantamos soja e etc. O PT nunca foi um partido de esquerda. É um partido que procurava transformar a classe operária numa classe operária americana.
E nunca o Brasil foi um país tão capitalista.
Minha mulher me contou que, conversando com um desconhecido, operador da bolsa de valores, isto em 2007, 2008, ele dizia: se eu soubesse que ia ser tão bom para nós jamais teria votado contra o Lula.
Onde está a esquerda? Qual é a sua opção de voto? Ou a opção deixou de ser votar?
Tanto a esquerda como a direita são posições políticas que você encontra dentro da classe média. A classe dominante é de direita de maneira genética, a grande burguesia, o grande capital. E os pobres, a classe trabalhadora... se eu fosse fazer um juízo de valor um pouco irresponsável diria que 60 a 70 por cento do Brasil estaria muito feliz com um governo autoritário, que desse dinheiro para comprar geladeira, televisão, carro, etc. Uma população que tem uma profunda desconfiança em relação a esses jovens quebradores de coisas na rua, que seria a favor da pena de morte, que é violentamente homofóbica.




Iapii-hi, índia Araweté, prepara doce de milho (fotografia de 1982) EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO
Depois do garoto do Flamengo ter sido amarrado por aquela milícia, ouvi trabalhadores negros pobres dizerem: tem mais é que botar bandido na cadeia, fizeram foi pouco com ele.
Ou seja, é um país conservador, reaccionário, em que os pobres colaboram com a sua opressão. Não todos, mas existe isso. A escravidão venceu no Brasil, ela nunca foi abolida. Sou muito pessimista em relação ao Brasil, digo francamente. Em relação ao passado e ao futuro. Em relação ao passado no sentido de que é um país que jamais se libertou do ethos, do imaginário profundo da escravidão, em que o sonho de todo o escravo é ser senhor de escravos, o sonho de todo o oprimido é ser o opressor. Daí essa reacção: tem mais é que botar esses caras na cadeia. Em vez de se solidarizar. E podia ser o filho dele facilmente. E às vezes é o filho dele.
Oswald de Andrade, o poeta, dizia: “O Brasil nunca declarou a sua independência.” Em certo sentido é verdade, porque quem declarou a independência do Brasil foi Portugal, um rei português. Eu diria: e tão pouco aboliu a escravidão. Porque quem aboliu a escravidão foi a própria classe escravocrata. Não foi nenhuma revolta popular, nenhuma guerra civil.
E em relação ao futuro sou pessimista porque... talvez ainda tenha um pouco de esperança, mas acho que o Brasil já perdeu a oportunidade de inventar uma nova forma de civilização. Um país que teria todas as condições para isso: ecológicas, geográficas.
Uma espécie de terceira via do mundo?
É, outra civilização. Porque civilização não é necessariamente transformar um país tropical numa cópia de segunda classe dos Estados Unidos ou da Europa, ou seja, de um país do hemisfério norte que tem características geográficas e culturais completamente diferentes.
Lembremos que houve um projecto explícito no Brasil, e que deu certo, que está dando certo, por isso é que sou pessimista, que é o projecto iniciado com Pedro II, em parte inspirado pelo célebre teórico racista Gobineau, que era uma grande admiração de D. Pedro: o Brasil só teria saída mediante o braqueamento da população, porque a escravidão tinha trazido uma tara, uma raça inferior.
Havia que lavar o sangue.
É uma ideia antiga, que já vem dos cristãos-novos que vieram de Portugal, que tinham de limpar o sangue. A gente sabe que quase toda a população portuguesa que se instalou no Brasil é de cristãos-novos, Diria que 70 por cento desses brancos orgulhosos de serem brasileiros são judeus, marranos, convertidos a ferro e fogo pela Inquisição. Então, havia essa ideia de que o Brasil era um país racialmente inferior porque era composto de negros, índios, portugueses com essa origem um pouco duvidosa. E já Portugal em si não é...
A Holanda.
Exacto. Não é a coisa mais branca que podemos encontrar na Europa. A Península Ibérica é um pouco africana, foi dominada 800 anos pelos árabes. Então o Brasil só ia melhorar com branqueamento. Isso foi uma política de estado que durou décadas e trouxe para o Brasil milhões de imigrantes alemães, italianos, mais tarde japoneses. Com o propósito explícito de branquear, não só geneticamente, mas culturalmente e economicamente. E eles foram para o Sul, de São Paulo até ao Rio Grande. Mas, esse que é o ponto curioso, a partir do governo militar para cá essa população branca invadiu o Brasil, a Amazônia. A colonização da Amazônia a partir da década de 70 foi feita pelos gaúchos, muitos deles pobres, que foram expulsos, alemães pobres, italianos pobres, cujas pequenas propriedades fundiárias foram absorvidas pelos grandes proprietários, também gaúchos, também brancos, e que foram estimulados pelo governo, com subsídios, promessas mirabolantes, a irem para a Amazônia. Hoje, tem um cinturão de cidades no sul da Amazônia com nomes como Porto dos Gaúchos, Querência, que é um lugar onde se guarda o gado, típico do Rio Grande do Sul. Os gaúchos [de origem europeia] chegaram numa região temperada, subtropical [sul do Brasil] em que você podia mais ou menos copiar um tipo de estrutura agrícola, de produção alimentar do país de origem. Só que na Amazônia isso é uma abominação. É um preconceito muito difundido essa ideia de que pessoal do Norte não sabe trabalhar, é preguiçoso. Você ouve muito isto no Paraná, no Rio Grande do Sul. Quem sabe trabalhar é o colono alemão, italiano.




Hoje o Brasil foi branqueado. Essa cultura country aí é uma mistura de cultura europeia com cultura americana, de grande carrão, 4x4, pick ups, rodeos, chapéus americanos, botas. Existe um projecto de transformar o Brasil num país culturalmente do hemisfério norte, seja Estados Unidos, seja essa Europa mais reaccionária. Porque estamos falando de colonos alemães que vieram do campesinato reaccionário, bávaro, pomerano, e dos camponeses italianos, que eram entusiastas do nazismo e do fascismo na II Guerra. Continuam sendo. O que tem de grupo de extrema-direita no sul do Brasil é muito. O foco da direita fascista, nazista é o Paraná e o Rio Grande do Sul. Então o Brasil é um país dividido entre um sul branco e o resto não branco, português, negro no litoral, índio no interior.
O censo da população dá por uma unha uma maioria não-branca.
O agronegócio é na verdade o modelo gaúcho, desenvolvido no pampa, nos campos do Rio Grande. Plantação extensa de monocultura, de soja, de arroz, de cana. Então o Brasil está perdendo a oportunidade de se constituir como um novo modelo de civilização propriamente tropical, com uma nova relação entre as raças, que fosse efectivamente multinacional. Um país que se constituiu em cima do genocídio indígena, da escravidão, da monocultura. Que continua fazendo o que fez desde que foi criado, exportando produtos agrícolas. Que continua a alimentar os países industrializados. Primeiro a Europa, depois os Estados Unidos, agora a China. Continua sendo o celeiro do capitalismo.
E o matadouro.
O segundo maior rebanho bovino do mundo, depois da Austrália. Um país que se está destruindo a si mesmo para se transformar numa caricatura dos países que lhe servem de modelo cultural. Em vez de, ao contrário, saber utilizar a sua situação geográfica altamente privilegiada, a sua situação demográfica, uma população imensa, para construir um novo estilo de civilização.
O senhor está descrevendo a derrota do “Manifesto Antropófago” de Oswald de Andrade [visão de um Brasil que se torna forte por comer, absorver o outro]




É, acho que sim. Bom, nenhuma derrota é definitiva. O meu pessimismo nem passa tanto pelo facto de que o Brasil não tem jeito, porque acho que ainda poderia haver uma revolução antropofágica no Brasil. Mas hoje isso é uma questão que já não teria mais sentido colocar pelo simples facto de que estamos numa situação planetária em que a catástrofe já se iniciou. O mundo está entrando, num sentido físico, termodinâmico, num outro regime ambiental que vai produzir catástrofes humanas jamais vistas, no meu entender: fome, epidemias, secas, mudança de regime hidrológico, tudo. Nessas circunstâncias, é possível que cheguemos a um momento em que noções como Brasil, Estados Unidos, países, comecem a perder a sua nitidez. Pode ser que daqui a 50 anos a palavra Brasil não tenha mais nenhum sentido. Que tenhamos que falar em Terra.
É um pré-apocalipse?
Dira que sim. Isabelle Stengers, filósofa belga, diz que a palavra crise não é adequada porque supõe que você pode superá-la, quando o que estamos vivendo é uma situação que não tem um voltar atrás. Vamos ter que conviver com ela para sempre. Um novo regime do mundo, de climas, de águas, não haverá mais peixes, os estoques estão acabando no mundo, a quantidade de refugiados que vão invadir a Europa vai ser brutal nas próximas décadas. Se a temperatura subir quatro graus, que é o que todos os climatologistas estão imaginando, isso vai produzir uma mudança total no que é viver na Terra. E a quantidade de africanos que vai invadir a Europa vai ser um pouco maior do que aqueles pobres que morrem afogados ali em Lampedusa. E como os países ricos vão reagir? É uma questão interessante. Vai ser com armas atómicas? Vão bombardear quem? O meu pessimismo passa mais por aí.
No Brasil as crises são estritamente políticas. Faz reforma política? Vai ter revolta da população? Será que há Copa? Tudo isso é verdade, fundamental, mas a gente não pode perder de vista o cenário mais amplo.
Não vê ninguém no Brasil, politicamente, que tenha uma visão ampla? O senhor votou na Marina Silva [nas últimas presidenciais].
Votei na Marina em 2010, com certeza. Não tenho certeza nenhuma de que votaria nela em 2014, talvez não.
Eduardo Campos [candidato pernambucano que fez uma aliança com Marina]?
De forma nenhuma. A Dilma, nem sob pelotão de fuzilamento voto nela. Esses idiotas do PSDB nem pensar. Então talvez eu não vote. Talvez vote nulo.
Qual é a missão, o papel, a hipótese para alguém como o senhor? Virar uma espécie de guerrilheiro nas redes sociais?
É. Eu diria que a revolução antropofágica do Oswald de Andrade só é possível sob o modo da guerrilha. Estamos falando de uma coisa que foi pensada em 1928...
Mas que foi revivendo, anos 60, agora.
O Oswald, um homem da classe dominante, pensava no Brasil como uma coisa sobre a qual você podia pôr e dispôr. Nesse sentido, ele pertence à geração dos teóricos do Brasil, que eram todos da elite dominante paulistana ou pernambucana: Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Eduardo Prado. Os modernistas eram uma teoria do Brasil, de como o Brasil deve ser organizado, governado.




Talvez os muitos povos brasileiros que compõem esse país só tenham chance de ganhar uma certa emancipação cultural, política, metafísica, no contexto do declínio geral do planeta. Nessas condições é possível que haja esperança para os negros, os índios, os quilombolas [descendentes de escravos], os gays, os pobres desse planeta favela. Não esqueçamos que o mundo tem três bilhões e meio de habitantes vivendo em cidade, metade da população mundial. Desses, no mínimo um bilhão vive em favelas. Ou seja, um sétimo da população mundial vive em favelas. O Brasil deve ter uma proporção maior que a Alemanha, Estados Unidos. Diria que deve andar na casa dos 30 milhões. [A população de] um bom país europeu.
Seria uma guerrilha nas redes sociais? Admite o uso de violência ou uma guerrilha virtual apenas?
Nem uma coisa nem outra. A existência da Internet mudou as condições da guerra, em geral, sim. O maior acto de guerra recente, no bom sentido, de que me consigo lembrar foi o Edward Snowden. Não mais os Estados Unidos espionando a Rússia, nem a Rússia espionando os Estados Unidos, mas o vazamento de informações secretas dos estados. Isso é muito significativo. Um jornalista morando aqui no Rio de Janeiro, que trabalha para um jornal inglês, que recebeu informações de um analista americano, que estava escondido em Hong Kong: isso só é possível com Internet. As redes sociais mudaram completamente as condições de resistência ao capitalismo.
Uma nova forma de guerrilha?
Que não é nececessariamente violenta, embora exista o problema do hacker, do bombardeio de sistema electrónico. Mas o que penso não é bem por aí. Quando penso em guerrilha, é no sentido de combates locais, ponto a ponto. Não estou falando de quebrar a porta do banco ou bater na polícia. Falo em combates em que você seja capaz de conectar combates locais através do mundo inteiro.
Existem formas novas de resistência e aliança entre as minorias étnicas, culturais, económicas do planeta que passam pela conectividade universal da rede, que é frágil, ao contrário do que se imagina, com pontos fracos, nós, gargalos, em que os Estados Unidos têm um poder muito grande. Mas eu diria que é muito difícil controlá-la até porque essa rede é indispensável para o capitalismo. Difícil o capitalismo danificá-la demais, senão vai perder seu principal instrumento hoje. Ainda que haja várias tentativas, no Brasil inclusive, de vigilância.




É possível que a gente passe para um estado de vigilância à la George Orwell. Tudo isso é possível. Mas acho também que a situação actual permite o desenvolvimento de uma guerrilha de informação, muito mais que de acção física, porque a informação hoje é uma mercadoria fundamental, estamos na economia do conhecimento, então a guerra é uma guerra também pela informação. É por aí que tenho alguma esperança, muito mais que numa saída nas ruas, com ancinhos, forcados, machetes.
Parar de imaginar uma luta de classes e imaginar uma guerrilha de classes. Classe definida, agora, não só de maneira classicamente económica mas no contexto da nova economia, que mudou a composição de classes. Vários intelectuais hoje pertencem à classe dominada, operária. Então, vejo mais uma guerrilha do que uma guerra, com a vantagem de que as guerras em geral terminam na constituição de um novo poder totalitário, um novo terror. O “Manifesto Antropófago” pode acabar se realizando mais por esse lado. O sonho clássico da revolução, como transformação de um estado A em estado B é um sonho pouco interessante.
Não há desfecho.
Não há desfecho. Prefiro falar em insurreição do que em revolução, hoje. Um estado de insurreição permanente como resistência. A palavra talvez seja mais resistência, insurreição, do que revolução e guerra. Guerrilha é sempre de resistência. O modelo da resistência francesa [na ocupação alemã], criar redes subterrâneas de comunicação. Estamos nessa posição, somos um planeta invadido por alienígenas, digamos, que é o grande capital, a TV Globo, o agronegócio, a hegemonia norte-americana sobre os sistemas de entretenimento; como é que você cria uma rede de resistência a esses “alemães”?
Sou um activista das redes, de facto. Mas não convoco para manifestações, não pertenço a nenhuma organização, estou um pouco velho para sair na rua.




EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO
Está com 62 anos.
É, mas para sair na rua como black bloc [sorriso]... Posso ir atrás do black bloc, na frente não dá.
Começou tarde a ser um activista/guerrilheiro. Porquê?
É uma questão interessante. A minha relação com o activismo na ditadura não foi receio físico. Não que eu não tivesse medo de enfrentar a repressão. Vi vários amigos presos, torturados, todo o mundo tinha medo. Mas não foi por isso que não entrei na luta contra a ditadura. Foi porque não acreditava nela, em tomar o poder para instituir uma nova ordem não muito diferente. Eu achava que era uma briga entre duas fracções da classe média alta para saber quem ia mandar no país. E eu não tinha a menor simpatia pela ideia de mandar no país. Tinha uma desconfiança, que infelizmente se confirmou, quando a gente vê que uma das pessoas que fez a luta armada está mandando no país. E ela está fazendo coisas muito parecidas com o que os militares queriam fazer, pelo menos na Amazônia. O projecto da Dilma na Amazônia é idêntico ao do Médici [terceiro presidente da ditadura, no período 1969-74].
O senhor se configura como um anarquista?
Talvez...
Fora do estado.
Digamos que sim. Mas não sou um anarquista daqueles que acham que a sociedade actual pode prescindir do estado. Acho isso um sonho um pouco infantil.
Acha que não pode prescindir do estado mas que é importante cultivar...
Uma oposição, sim. A ideia de uma abolição do estado nas presentes condições é fantasia. Existem algumas contradições que não podemos evitar. Por exemplo, o maior inimigo dos índios brasileiros, num certo plano, é o estado, que representa uma sociedade que os invadiu, exterminou, escravizou, expropriou de suas terras. Ao mesmo tempo, o estado brasileiro é a única protecção que os índios têm contra a sociedade brasileira. Se não fosse o estado, os fazendeiros já teriam aniquilado todos os índios. Mas é uma quimioterapia, como se o Brasil fosse o câncer e o estado fosse aquele remédio. Faz um mal horrível mas você tem de tomar, é o único jeito de ter esperança de se curar. Portanto, não posso ir contra o estado.




Tenho simpatia pela tese do [antropólogo francês Pierre] Clastres, “A Sociedade Contra o Estado”, um tipo de sociedade como ele entendia que era o caso de várias sociedades indígenas, mas não imagino que isso possa ser transferido para as nossas dimensões demográficas. Isto dito, não sei por quanto tempo vamos ter essas dimensões no planeta, estados-nação com milhões de habitantes. Precisamos guardar os anti-corpos contra o estado porque podemos precisar deles no futuro.
Defende que toda a lógica do que o Brasil poderia ser, oferecer, passaria por se tornar mais índio. Não os índios tornarem-se brasileiros mas o Brasil tornar-se índio, o que significaria uma outra forma de vida, não para produzir, não para consumir. Que significa isso na guerrilha das cidades e das redes? Como os índios podem estar presentes aí? O que podem dar à tal insurreição contínua?
Vou juntar isso com o final da pergunta anterior. Fui-me tornando mais activo nas redes porque apareceram, antes não existiam, e em função da minha enorme decepção com o final da ditadura, o facto de que continuamos reféns do grande capital, dos grandes clãs, dos capitães hereditários que continuam mandando no Brasil, José Sarney, Fernando Collor, Renan Calheiros. Essa aliança entre o mais arcaico, que é Sarney, e o mais moderno do capitalismo, que são esses agronegociantes de alta tecnologia do Mato Grosso do Sul, todos eles combinados para manter a tranquilidade política: não deixemos as massas virem atrapalhar.
Então, a minha decepção com a trajectória depois da ditadura; a minha decepção maior ainda com a trajectória do PT, a partir da eleição do Lula, na qual ele escreveu uma carta aos brasileiros dizendo que não ia tocar no bolso dos ricos; a minha decepção ainda maior com a performance do governo Dilma em relação ao meio ambiente, à Amazônia, aos índios, a total incapacidade política da presidente para ter o mínimo de diálogo, por mais fictício que seja com as populações indígenas, ao contrário, ela demonstra um desprezo, um ódio mesmo, que me parece quase patológico; tudo isso me levou ao activismo.




Todo o mundo tem uma imagem do Brasil como país preguiçoso, relaxado, laid back, onde tudo é mais devagar. E existe uma grande ambiguidade nossa em relação a essa imagem. Por um lado achamos interessante a imagem de um país easy going, por outro lado temos uma grande vergonha disso, nos queremos transformar num país performante, que vai para a frente, produtivo. A gente quer ao mesmo tempo ser sambista e grande potência mundial. Eu acho que devia continuar sendo sambista. Que a gente devia saber explorar as virtudes do não-produtivismo. A ética protestante, que nos deu o espírito do capitalismo, para falar como Weber, nunca esteve inscrita no DNA do Brasil, graças a vocês portugueses, que também não a tinham [risos]. Tiveram durante século e meio, mas depois... Então, por um milagre histórico fomos preservados dessa maldição que é a ética produtivista do capitalismo. Fomos capturados pelo capitalismo porque nos invadiu, domou. O capitalismo foi possível porque a Europa invadiu a América. Se não fosse a America, a Europa não teria deixado de ser o que era na Idade Média, um fundo de quintal. Na Idade Média, as sociedades desenvolvidas eram o Islã, a India e a China. Os europeus eram um bando de bárbaros, sujos, mal vestidos, católicos. Mas por acaso os portugueses e os espanhóis deram de cara com o novo mundo e o capitalismo tornou-se possível. Porque foi o ouro do Novo Mundo, milhares de toneladas, e tudo o que saiu da América, novas plantas, novos recursos alimentares, que permitiu a expansão do capitalismo e  depois a revolução industrial. Se não tivesse havido invasão da América, destruição da América não teria havido Europa moderna. Hoje, no mundo, as principais plantas que servem de alimentação mundial são de origem ameríndia: o milho, que se planta em toda a parte, a batata, que permitu a revolução industrial inglesa, a mandioca, da qual toda a África do Oeste hoje vive. Só que a América já era, não tem mais Novo Mundo para descobrir, a terra fechou, arredondou, além de que o pólo dinâmico do capitalismo foi para a China.
Voltando aos índios.
O Brasil tem muito poucos índios comparado com os países andinos ou mezo-americanos. Estão na casa de um milhão, num país de 200 milhões. Mas têm um poder simbólico muito grande, até porque têm uma base muito grande, 12 por cento do território brasileiro. Está tudo invadido [por obras ou fazendeiros] mas oficialmente é terra indígena. Além de que têm um poder de sedução no imaginário ocidental. A Amazônia tem um poder simbólico imenso. Embora, ao contrário do que os brasileiros pensam, não seja só brasileira, a maior parte da Amazônia está no Brasil. E é um objecto transcendente, uma espécie de última chance, último lugar da terra. O que dá ao Brasil um poder simbólico que ele não sabe usar, ao contrário, a Amazônia tem servido para atacar o Brasil por não saber cuidar da Amazônia. E sabe uma coisa? Não sabe mesmo. E não está sabendo se valer da Amazônia como um trunfo mundial. Nem como um lugar onde poderia se desenvolver uma civilização menos estúpida, do ponto de vista tecnológico e social. Os índios aí servem como exemplo. Estão na Amazônia há pelo menos 15 mil anos. Boa parte da floresta amazónica foi criada pela actividade indígena. Boa parte do solo foi criado com cinza de fogueira, detritos humanos. A Amazônia é essa floresta luxuriante em parte por causa da acção humana, dos índios.




Perante isto, o modelo sulino, gaúcho, europeu, de ocupação da Amazônia, é um plano liso que você possa encher de fertilizante, para poder plantar plantas transgénicas, resistentes a herbicidas, para produzir soja para vender para China, para em seguida pegar esse dinheiro e dar Bolsa Família. Não seria mais simples fazer com que essas pessoas não precisassem de Bolsa Família dando para elas terra para plantar, fazendo a célebre reforma agrária que jamais foi feita no Brasil?
Estamos exportando terra, solo e água na forma de carne, de soja. Um quilo de carne precisa de 15 mil litros de água para ser produzido, um quilo de soja, 7500 litros. Essa água toda, que poderia estar sendo usada para plantar comida para nós, está sendo usada para produzir soja para alimentar gado europeu, ou em tofu e miso na China.
O Brasil destruiu mais de metade da sua cobertura vegetal, a Mata Atlântica, que era igual à Amazônia do ponto de vista ambiental, para plantar cana e café durante a colonização. E ficámos mais ricos? Agora estão devastando a Amazônia para produzir soja e gado. Estamos ficando mais ricos? Os pobres estão melhores porque está caindo mais migalha da mesa dos ricos, não porque vieram sentar na mesa.




Meninos a pescar no rio Xingu (1982) EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO
Isso também afectou os índios, não? Em São Gabriel da Cachoeira, o município mais indígena do Brasil [estado do Amazonas], um dos grandes problemas é o alcoolismo. Impressionante ver o estado em que muitos índios vivem em São Gabriel. É um resultado desse erro de tentar converter o índio em brasileiro nesse modelo que está a descrever?
O alcoolismo é uma praga da população indígena das três Américas. Tem a ver com várias coisas. Uma delas é genética, mesmo. Os índios têm, por razões de evolução, muito menos resistência ao metabolismo do açúcar no organismo. Por isso que eles têm essa tendência à obesidade e à diabetes. Segundo, os índios sempre tiveram álcool, na América do Norte menos, mas todos os índios da Amazônia preparavam bebidas fermentadas, etc. É a mesma coisa com o tabaco, só que ao contrário. O tabaco é indígena. Os índios fumavam, mas não tinham câncer, ou a taxa devia ser muito pequena, assim como o alcoolismo existe entre nós mas é muito menos violento. Porquê? Os índios, para fazerem o tabaco deles e a bebida deles, tinham que produzir à mão. Tabaco tinham de plantar, de enrolar, de fazer um charuto, levava cinco dias para fumar, eram objectos custosos. A cerveja que faziam levava semanas. Aí, chega de repente a cachaça, seis meses de trabalho indígena concentrado numa garrafa que custa dois reais. A mesma coisa com a gente: quando você pega num maço de cigarro que tem concentrado seis meses de trabalho indígena, você fuma um atrás do outro. Você morre de câncer aqui e os índios morrem de cirrose lá.




O capitalismo apresenta aos índios uma coisa que eles nunca tiveram: o infinito mercantil. Os objectos não acabam nunca. Você tem uma quantidade infinita de cachaça. É como se chegassem aqui marcianos que nos dessem soro da vida eterna. Os índios não entendem e consomem, consomem, consomem. Eles produziam pouco para ter tempo livre. O que acontece agora é que continuam produzindo pouco mas os produtos chegam em quantidade infinita. E eles não têm estrutura social, política, institucional. Vai levar séculos para que desenvolvam resistências. Todo o ser humano gosta de se drogar, alterar a consciência, desde o café até ao LSD, então nos índios o álcool entrou destruindo tudo. É certamente a coisa mais destrutiva em todos os índios das Américas.
Não há sociedades perfeitas. É preciso distinguir entre modelo e exemplo. Os índios são um exemplo, não um modelo. Jamais poderemos viver como os índios, por todas as razões. Não só porque não podemos como não é desejável. Ninguém está querendo parar de usar computador ou usar antibiótico, ou coisa parecida. Mas eles podem ser um exemplo na relação entre trabalho e lazer. Basicamente trabalham três horas por dia. O tempo de trabalho médio dos povos primitivos é de três, quatro horas no máximo. Só precisam para caçar, comer, plantar mandioca. Nós precisamos de oito, 12, 16. O que eles fazem o resto do tempo? Inventam histórias, dançam. O que é melhor ou pior? Sempre achei estranho esse modelo americano, trabalha 12 horas por dia, 11 meses e meio por ano, para tirar 15 dias de férias. A quem isso beneficia?
A única vantagem indiscutível que a civilização moderna produziu em relação às civilizações indígenas foram os avanços na medicina. Se você fosse viver o resto da vida no mato o que levaria? Penicilina. Foi de facto um avanço. Mesmo assim nossos avanços sempre avançam demais. Hoje preferimos manter uma pessoa de 90 anos sofrendo horrivelmente, tem de viver, tem de viver, a família vai à falência. Ou seja, não sabemos mais morrer. Todo o mundo antes do século XX sabia morrer.

Fonte: http://www.publico.pt/

Nenhum comentário: