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terça-feira, 4 de setembro de 2012

Juridiquês ou linguagem popular?


CONSTITUIÇÃO E PODER

Herbert Hart, a precisão do Direito e a linguagem das ruas


Na sequência do julgamento da primeira parte do assim chamado mensalão, que tem mobilizado a opinião pública e, especialmente, a imprensa nacional, presenciamos a ressurreição de uma antiga crítica habitualmente dirigida à forma com que os juristas conhecem e aplicam o Direito, que, para resumir, acaba consistindo na reivindicação de maior simplicidade na linguagem empregada por juristas e ministros do Supremo, considerada excessivamente hermética e pretensiosa e mesmo empolada pelos não iniciados.

Na crítica, como sabem todos aqueles que acompanham a avalanche de especialistas (não-juristas) que têm dedicado a sua inteligência a nos esclarecer sobre o que acontece no famoso julgamento, afirma-se com insistência que o Supremo e os advogados que participam do caso deveriam falar (e isso durante o próprio julgamento) uma linguagem mais acessível ao público, ou seja, segundo esses qualificados interlocutores, os ministros do STF e os juristas ali envolvidos deveriam expressar-se com “a linguagem do povo”, “a linguagem do cidadão comum”, ou, numa versão mais política, “a língua das ruas”.
Como toda proposta populista, também essa (de conversão e de aproximação da linguagem técnica do jurista à linguagem do homem comum) é sem dúvida sedutora, tanto que tem conquistado até mesmo alguns juristas, e, por isso mesmo, é preciso muito cuidado com uma resposta. Além disso, como por trás da crítica há mais do que a intenção de ajudar os juristas na sua capacidade de comunicação, o cuidado há de ser redobrado. Vejamos.
Em primeiro lugar, visando evitar qualquer mal entendido, aceito como correta a crítica no que ela possa se dirigir a uma espécie de comunicação já fora de moda, às vezes corroída por latinismos e afetações desnecessárias, em que todos nós, juristas, vez por outra, escorregamos. Abro, então, um parêntesis para acentuar minha mais absoluta concordância com a sempre lúcida lição de meu amigo e professor Luís Roberto Barroso, em seu elegante e profundo texto (como tudo o que faz Barroso) intitulado “Direito e Paixão”, quando nos adverte de que devemos “ter o desprezo essencial pela erudição exibicionista, pelo hermetismo vazio. A codificação desnecessária ou indevida da linguagem é um instrumento de poder. É uma forma de excluir a maioria, de negar-lhe acesso ao conhecimento e à informação”. Mas, antes que alguém indevidamente se entusiasme em demasia, o mesmo excepcional jurista logo adiante acrescenta: “É bem verdade que, a despeito da simplicidade que deve ser buscada, o Direito é uma ciência. Uma ciência é feita de princípios, conceitos e terminologia próprios. Jamais minimizem a importância de empregar as palavras adequadas para identificar as ideias que se quer expressar. Chamar coisas distintas pelo mesmo nome, ou coisas iguais por nomes diversos, inviabiliza a produção e transmissão do conhecimento. Não se esqueçam que é a palavra, a linguagem, a capacidade de comunicação verbal e escrita que distinguem o homem dos outros animais e o fazem instrumento da civilização[1].”
Muito bem, acentuada mais uma vez a advertência de Barroso, permito-me agora o meu próprio itinerário.
“Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo”, assim Ludwig Wittgenstein encerrava na sua mais conhecida e reverenciada obra, o Tractatus Lógico-Philosophicus, o famoso aforismo “5.6”[2]. No Direito, seguramente essa é uma verdade incontornável: a linguagem é tudo. No seu belo livro, intitulado precisamente Teoria Jurídica, Bernd Rüthers é categórico: “Não existe Direito fora da linguagem.Todas as normas jurídicas são formuladas em locuções como locuções jurídicas.O Direito só pode ser criado e produzido na linguagem e apenas através da linguagem é compartilhado, explicado e desenvolvido. Também quem imagina o Direito de forma pré-linguística (vorsprachliche) — como sentimento jurídicoou consciência jurídica — precisa reconduzi-lo à linguagem para poder articular e tornar eficaz esse conteúdo jurídico intuído ou sentido”[3].
Portanto, a estarem certos Wittgenstein e Bernd Rüthers, quando alguém pede a mudança de sua linguagem, o que pede é a mudança do seu próprio mundo. No caso concreto, quando alguém nos pede (aos juristas) que convertamos o nosso mundo, isto é, o nosso ofício de aplicar o direito em uma linguagem mais popular e menos técnica (repito que a crítica se dirigia aos ministros na forma em que engendraram seus votos, portanto no momento mesmo de seu ofício), o que nos pede, pois, é, ainda que de forma inocente, mas de modo muito eficaz, que abandonemos a linguagem, o saber e a “gramática do Direito” em favor da linguagem, do saber e da “gramática dos que se dizem representantes da opinião pública”.
Não podermos tangenciar definições e termos técnicos quando aplicamos o Direito. A precisão com a linguagem, como se sabe, foi com razão a maior preocupação do maior teórico do Direito de língua inglesa, Herbert Hart. Definir corretamente uma realidade era nele o pressuposto da verdade e da correção presentes em qualquer saber que pretenda o status de saber científico. “Uma definição é, como a palavra sugere, principalmente uma questão de traçar linhas divisórias ou distinguir entre um e outro tipo de coisa, que a língua demarca pelo uso de palavras distintas”[4].
O jurista vem há séculos aprimorando sua linguagem, precisamente, visando distinguir situações, eliminar dúvidas, afastar carga emotiva e imprecisão dos termos que aplica, tudo com o propósito de, na maior medida possível, evitar subjetividade e casuísmos e oferecer em cada caso a mais adequada, precisa e justa aplicação “de direito”. Pedem-nos agora, sem saber bem o que querem, que abandonemos o que de melhor buscamos oferecer para a sociedade. Como advertia Bobbio, a luta contra a imprecisão da linguagem, recusando a flexibilização de conceitos e a inconsistência na sua aplicação, como é lícito esperar da linguagem cotidiana do homem comum, não é, no jurista, apenas uma afetação de estilo, mas a própria essência da jurisprudência como saber especializado, capacitada a dizer o Direito de forma técnica, e não apaixonada e casuística.
Uma realidade complexa só será bem descrita e avaliada por intermédio de uma linguagem rica e apta, portanto, a abranger essa complexidade. Um mundo mais simples certamente se contenta em descrever-se por intermédio de uma linguagem menos abrangente. Além disso, como a linguagem conforma nossa visão do mundo, e isso em todos os sentidos, sem uma linguagem mais rica (no sentido de mais abrangente), jamais se conseguirá observar a complexidade da própria realidade. Em outras palavras, não existe realidade complexa que se permita comunicar por meio de linguagem simples. Qualquer tentativa nesse sentido deixará sempre algo de fora, não captado pela percepção de quem opera a linguagem. No Direito, é aqui que se abre a porta para injustiça, ao não se conseguir, por falta de instrumentos de linguagem adequada, captar as nuances e diferenças da realidade e nos casos submetidos ao Poder Judiciário.
As sociedades evoluem na medida em que também desenvolvem sua linguagem. É fácil de ver, por exemplo, que uma sociedade que continuasse a distinguir na natureza apenas os elementos da água, da terra, do ar e do fogo, como faziam as antigas sociedades humanas, permaneceria prostrada na evolução de seus conhecimentos e avanços científicos.
Há que se repetir, portanto, com Wittgenstein:“Os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo.” Quem entra pela primeira vez numa floresta sem o domínio de uma linguagem tão rica e abrangente quanto à biodiversidade ali existente, além de encantar-se menos, quando chamado a relatar o que viu, muito provavelmente, não poderá dizer muito mais do que isso: “eu vi algumas plantas exóticas, arbustos, árvores e flores, e alguns animais terrestres, peixes e pássaros”. Faltam palavras para as coisas. Um biólogo, com linguagem mais apurada e mais abrangente (rica), além de um maior envolvimento intelectual, terá condições de fazer uma descrição muito mais precisa e detalhada da realidade presente na mesma floresta, além de captar os matizes, a riqueza de espécies e as raridades ali escondidas. Da mesma forma, o médico em relação à Medicina e aos problemas de saúde; assim, o engenheiro, em relação às construções, usinas elétricas ou à mecânica de um carro; e da mesma forma, o jurista em relação aos problemas do Direito.
Para ficar num exemplo bem plausível, na floresta do Direito Penal, onde o jornalista e o homem comum só conseguem ver culpado ou inocente, certo e errado, o jurista tem o grave dever de buscardistinguir entre dolo e culpa, ou ausência de um e de outro; materialidade do fato, sua tipicidade e atipicidade; imputabilidade, consciência e reprovabilidade; licitude e ilicitude da conduta; excludente de antijuridicidade, legítima defesa, estado de necessidade e estrito cumprimento do dever legal; distinguir no julgamento matéria de fato e de direito; absolvição por falta de prova, inexistência do fato, ou negativa de autoria; error in judicandoe error in procedendo; coisa julgada material e coisa julgada formal, e assim por diante.
Nada disso é, como sabe qualquer bacharel em Direito, afetação de estilo ou de linguagem. Em tais distinções assenta-se a justiça ou injustiça da aplicação da lei penal. Mas para conceber essas distinções é necessária uma linguagem teoricamente especializada, informada pelos valores da precisão e da exatidão técnica.
No famoso prólogo de seu Tractatus, Wittgenstein adverte que o que ali se busca é extrair as fronteiras do pensamento, ou antes — não do pensamento, mas da expressão do pensamento, uma vez que para definir os limites do pensamento, deveríamos ser capazes de pensar ambos os lados dessa fronteira (deveríamos ser capazes de pensar aquilo que não se deixa pensar). Os limites só poderão ser extraídos da linguagem, e o que está além da fronteira da linguagem é simplesmente um absurdo sem-sentido (Unsinn). Como o homem comum não domina a linguagem e a técnica do Direito (e não se pode exigir dele essa qualificação), é absolutamente compreensível que, para ele, distinguir, por exemplo, entre preclusão, perempção, prescrição e decadência, possa mesmo parecer um nonsense jurídico; da mesma forma, faltando-lhe a linguagem técnica do Direito, ao homem do povo só pode mesmo revelar-se pretencioso quem distinga entre citação, intimação ou notificação; distinguir entre competência, jurisdição e atribuição, para a “linguagem do povo”, deve mesmo afigurar-se um sem-sentido. Para o homem comum deve parecer um completo contrassenso a fronteira que, na linguagem técnica do Direito, separa o arquivamento do inquérito policial por falta de prova do arquivamento por atipicidade do fato, já que, ao seu olhar, é tudo a mesma coisa e o que importa é que alguém foi excluído de uma investigação.
Em tais situações, naturalmente não adiantará demonstrar a profunda diferença no resultado para o Direito e para o cidadão em cada uma dessas distinções. De nada serve também ao homem do povo e ao jornalista (pelo menos é o que ele pensa) a distinção entre coisa julgada formal e coisa julgada material. Por irônico que isso se revele, portanto, nós juristas teremos que continuar a insistir em tornar cada vez mais precisa a linguagem e a técnica de nosso ofício, exatamente, em favor daqueles que o menosprezam.
Lawrence Solum, célebre constitucionalista norte-americano, lembra que “alunos do primeiro ano de Direito logo aprendem que o Direito tem de lidar permanentemente com a incerteza — imperfeito conhecimento sobre o passado, o presente ou o futuro. Qual o nível de precaução razoável é exigido pelo dever de cuidado quando se envolve em comportamento que pode ou não causar um dano? Como devem os legisladores lidar com uma nova tecnologia com a qual tiveram contato pela primeira vez (por exemplo, organismos geneticamente modificados, novas tecnologias de informação, engenharia etc), quando os danos possíveis (e benefícios) são especulativos? O que deve fazer um júri quando evidências conflitantes tornam incerto se o réu é inocente ou culpado? O que um juiz deve fazer quando uma evidência crucial para o esclarecimento do caso foi destruída e não podemos saber de que lado da verdade teria (decisivamente) favorecido?”[5]
O cidadão comum pensa que tem facilidade em dizer, em tais casos, o que é correto fazer em Direito. De fato, em situações comuns, critérios e padrões de decisão são mais fáceis de ser identificados. Contudo, em outros casos, as fronteiras do que é certo ou errado ficam indistintas, a começar pela imprecisão da linguagem. Hart advertia contra a linguagem vaga, ambígua ou com carga emotiva, que pode prejudicar fatalmente o processo de aplicação do Direito.
De outro lado, mesmo bem delimitado o caso padrão, o problema pode sempre surgir quanto à possibilidade de desvio do padrão. H. Hart, em exemplos bem conhecidos, questiona, por exemplo, se um hidroavião pode ser considerado um barco; se ainda podemos chamar de xadrez quando o jogo é disputado sem a rainha; ou se podemos considerar calvo um homem que tem alguns “cabelos aqui e ali”[6]. Um animal quadrúpede, com pele grossa, presas e tromba é com certeza um elefante. Mas, deixaria de sê-lo se lhe fossem arrancadas as presas, a tromba e a pele?[7]
Hart, com essas prosaicas questões, se diverte nos mostrando a importância da linguagem e da correta distinção/definição dos fatos, das coisas e dos seres.
Na vida comum, o desprezo por uma linguagem mais exata, de regra, conduz apenas a alguns mal-entendidos, como o caso da moça que, num encontro às escuras (blind date), se decepcionou com o pretendente que, falhando na precisão da linguagem, por pura inocência, descreveu os seus cabelos como pretos e “com pouco volume”. Na vida do Direito, a imprecisão da linguagem, contudo, pode importar no sacrifício do direito e da própria justiça, como no caso do advogado que, por desconhecer a diferença entre interrupção e suspensão do prazo prescricional, deixou perecer o direito do seu cliente de submeter ao Judiciário uma legítima pretensão jurídica.
Sempre se paga um alto preço pelo desprezo manifestado em relação à linguagem. Não deixa de ser irônico que todo voluntarismo ao início reivindica, do alto de alguma elevada concepção de certo e de errado, abandonar a linguagem jurídica, construída pelo lento e cuidadoso trabalhodo do tempo, pela liberdade e a ligeireza de uma linguagem mais simples, normalmente, sob a justificativa de uma justiça mais efetiva[8], mas, cedo ou tarde, quando as coisas desandam, busca converter-se (traduzir-se) em linguagem jurídica para, prestando homenagem aos tecnicismos que desprezara, alcançar a legitimidade que dizia representar.
As revoluções e as ditaduras populistas, por exemplo, têm especial preocupação em limitar o ofício e a linguagem dos juristas. No auge do Terror que se segue à Revolução Francesa, inspirados pelos melhores propósitos (os ingênuos são sempre os piores), depois de proibir aos juristas que interpretassem o Direito (ditaduras sempre acham que juristas falam demais), os revolucionários almejaram inventar um novo vocabulário e chegaram mesmo a proibir a criação de faculdades de Direito. Cuidava-se de acabar com uma língua (a linguagem jurídica), acabando com os falantes. Como se sabe, depois de muito voluntarismo populista, as coisas na França só voltaram ao normal quando se restabeleceu a linguagem do Direito a partir do Código Civil Napoleônico (1804), mas, sobretudo, quando deixaram os juristas praticar o seu ofício em paz.

[2] No original: 5.6 Die Grenzen meiner Sprache bedeuten die Grenzen meiner Welt.
[3] Bernd Rüthers. Rechtstheorie. München: Beck, 1999, p. 88/89.
[4] H. Hart. O conceito de Direito, 2009, p. 17.
[6]H. Hart. O conceito de Direito, 2009, p. 5.
[7]H. Hart. O conceito de Direito, 2009, p. 18/9.
Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.
Revista Consultor Jurídico, 3 de setembro de 2012

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