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sábado, 25 de janeiro de 2014

Igreja Católica do Brasil quer ter casal de santos escravocratas



Jerônimo Magalhães e sua mulher poderão
ser santos padroeiros do sistema escravistas

por Haroldo Ceravolo Sereza

Aviso: baseio esse artigo, essencialmente, nas informações biográficas fornecidas pela própria arquidiocese do Rio de Janeiro sobre o casal Zélia e Jerônimo, mais novos candidatos a beato do país.

13 de maio de 1888: princesa Isabel assina a Lei Áurea. O casal Zélia Pedreira Abreu Magalhães (1857-1919) e Jerônimo de Castro Abreu Magalhães (1851-1909) acata a lei e permite que os seus escravos continuem a viver na fazenda.

20 de janeiro de 2014: a Arquidiocese do Rio de Janeiro fez saber ao mundo que pretende a beatificação de Zélia e Jerônimo. Como sabemos, a beatificação é o primeiro passo para a canonização. Ou seja, se o processo correr e ficarem provados milagres concedidos pela dupla, caminhamos para ter, um dia, um santo casal escravocrata brasileiro. Poderemos então chamar Zélia e Jerônimo de "santos padroeiros do sistema escravista".

Dom Orani Tempesta, recém-nomeado cardeal, arcebispo da Arquidiocese do Rio de Janeiro, lançou inclusive uma oração para que os dois cheguem lá: “Senhor, nosso Deus, que unis o homem e a mulher pelos laços do Matrimônio, Vos pedimos, por intercessão de vossos servos, Zélia e Jerônimo, que se santificaram na vida do amor matrimonial, acolhendo e educando seus filhos na verdadeira Fé, no amor a Deus e ao Próximo, a graça da proteção às nossas famílias. Rogamos que seguindo os seus exemplos possamos viver de acordo com o Vosso desejo, para o bem da Igreja e a santificação de nossa sociedade.”

A partir dessa oração, parece evidente que o objetivo principal da beatificação é a valorização do casamento religioso tradicional, ou seja, entre heterossexuais, como parte do combate ao avanço dos novos arranjos familiares que o Ocidente, sobretudo, vem vivendo. A hora é de valorização do casal, não mais o indivíduo, supostamente santo.

A Igreja de Dom Orani, assim, os avalia como bons pais. Entre outros motivos, por terem tido nove filhos conduzidos à vida religiosa. Mas não deixa de tocar em outro ponto, igualmente sensível: acha também que eles foram bons senhores de escravo. No perfil biográfico do casal distribuído pela arquidiocese, afirma: “Na fazenda [de propriedade do casal, Santa Fé] havia uma capela onde Zélia rezava inúmeras vezes ao dia. O casal jamais tratava os escravos, que viviam em liberdade e recebiam salário, como propriedade [grifo meu].” A contradição é evidente, e a saída é o recurso constrangido do verbo tratar: Zélia e Jerônimo podiam não tratar seus negros como escravos, mas jamais permitiram que esses homens “tratados como livres” fossem “de fato” livres.

Outro motivo para a beatificação do casal é que seus escravos “iniciavam seu dia de trabalho com uma oração guiada por ela e acompanhada por Jerônimo, no coreto do pátio da fazenda”. O texto da Arquidiocese acrescenta que “a preocupação de Zélia e Jerônimo com a vida espiritual desses homens, mulheres e crianças era tão grande que eles sempre participavam da Missa, das confissões e da catequese promovidas pelo casal, e Zélia, pessoalmente, encarregava-se da catequese e da assistência aos escravos e necessitados”.

Em "Casa-Grande & Senzala", Gilberto Freyre cita (bem pouco criticamente, é verdade) o viajante Henry Koster, em relação à conversão de escravos ao cristianismo: “Não se pergunta aos escravos se querem ou não ser batizados; a entrada deles no grêmio da Igreja Católica é considerada como questão de direito. Realmente eles são tidos menos por homens do que por animais ferozes até gozarem do privilégio de ir à missa e receber sacramentos”.

A atenção religiosa de Zélia e Jerônimo, assim, se aproxima desse processo descrito: parece, pela própria descrição da arquidiocese, que eles não tinham a opção de participar ou não dos rituais católicos.

Alforria

Ora, não eram raros os casos, no final do século XIX, de proprietários que davam cartas de alforria aos escravos, para que eles vivessem não como se fossem livres, mas livres de fato. Alguns faziam isso apenas com os velhos, um processo extremamente cruel; outros, engajados na luta abolicionista, com todos. Como está registrado na trama do romance "O cortiço", a carta de alforria era uma aspiração de muitos escravos, muitas vezes comprada com economias juntadas por anos.

Na literatura brasileira, mas claro que diretamente relacionado à experiência da época, vale lembrar o caso do negro Prudêncio, em Memórias póstumas de Brás Cubas. A manumissão (libertação do escravo) não era uma garantia do fim de uma complexa relação e assimétrica: Prudêncio, que servira de cavalinho a Brás Cubas na infância, já livre, compra um escravo e paga “com alto juro” a violência que sofrera. Ao castigar esse escravo seu, Prudêncio é surpreendido por um Brás, que lhe pede para parar e é prontamente obedecido. “Pois, não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado!”

Wikimedia Commons

Livre legalmente, Prudêncio seguia submetido à violência da lógica da escravidão, e mesmo quando castigava o seu escravo, ainda respondia primeiro às ordens do seu antigo senhor – que se sente alegre e moralmente superior por ter impedido o novo castigo, apesar de não ter feito nada para libertar o novo escravo nem para dar liberdade de fato para o ex-escravo.

O casal é, nesse aspecto, menos santo do que Brás Cubas. Não chegou nem a alforriar seus Prudêncios. Quem leuMemórias póstumas sabe o quanto isso significa.

O advogado do Diabo

Ainda no campo da literatura, cabe registrar um escritor que se notabilizou pelo conhecimento que tinha da hierarquia e das contradições do catolicismo: o australiano Morris West, um autor de ótimos best-sellers, que dedicou um livro completo ao dilema moral que é o processo de canonização: O advogado do Diabo.

Advogado do Diabo era o nome popular do Promotor da Fé (Promotor Fidei em latim), a figura da Igreja responsável por encontrar faltas e pecados que pudessem desqualificar um eventual candidato a santo. No romance, o cético profissional descobre que o padre que supostamente realizaria milagres no sul da Itália vivia com uma mulher e com ela dividia, despudoradamente, uma cama de casal. O drama do promotor da fé é que aquele candidato a santo parecia de fato ser um grande homem e talvez até seus fieis tivessem sido agraciados com milagres, embora ele, em vida, houvesse rompido uma regra de ouro para o Vaticano – o celibato dos líderes religiosos.

O processo de beatificação e de canonização, no entanto, passou por grandes mudanças durante o papado de João Paulo 2º (antecessor de Bento 16, por sua vez antecessor de Francisco). Em tese, desde 1983, ficou mais rigoroso, com exigência maior de comprovação científica de milagres. Na realidade, tornou-se mais burocrático, com maior circulação de papeis e certificações. Ao impor certa ordem na bagunça que era a política da santificação, e eliminar a figura do promotor da fé, João Paulo 2º na verdade facilitou o processo, e o resultado foi o crescimento vertiginoso no número de beatos e santos.

Nos últimos meses, o papa Francisco tem feito inúmeras declarações e movimentos no sentido de reaproximar a Igreja Católica de um discurso de preocupação com os pobres e humildes. Lavou pés de mendigos, foi menos duro que Bento 16 com relação à homossexualidade e fez críticas abertas e gestos concretos contra cardeais envolvidos em suspeitas transações financeiras. Mas agora, depois de um movimento celebrado inclusive por católicos ligados às posições mais progressistas, um processo constrangedor, vindo do Brasil e das mãos de um cardeal, cairá em seu colo.

Como ele se posicionará? Talvez o melhor, dessa vez, fosse o papa assumir a postura crítica de um “promotor da fé”.



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