de Emil Cioran
Emil Cioran (1911-1995) foi
filósofo e escritor romeno
Em si mesma, toda ideia é neutra ou deveria sê-lo; mas o homem a anima, projeta nela suas chamas e sua demências; impura, transformada em crença, insere-se no tempo, toma a forma de acontecimento: a passagem da lógica à epilepsia está consumada… Assim nascem as ideologias, as doutrinas e as farsas sangrentas.
Idólatras por instinto, convertemos em incondicionados os objetos de nossos sonhos e de nossos interesses. A história não passa de um desfile de falsos Absolutos, uma sucessão de templos elevados a pretextos, um aviltamento do espírito ante o Improvável. Mesmo quando se afasta da religião, o homem permanece submetido a ela; esgotando-se em forjar simulacros de deuses, adota-os depois febrilmente: sua necessidade de ficção, de mitologia, triunfa sobre a evidência e o ridículo. Sua capacidade de adorar é responsável por todos os seus crimes: o que ama indevidamente um deus obriga os outros a amá-lo, na espera de exterminá-los se se recusam. Não há intolerância, intransigência ideológica ou proselitismo que não revelem o fundo bestial do entusiasmo.
Que perca o homem sua faculdade de indiferença: torna-se um assassino virtual; que transforme sua ideia em deus: as consequências são incalculáveis. Só se mata em nome de um deus ou de seus sucedâneos: os excessos suscitados pela deusa Razão, pela ideia de nação, de classe ou de raça são parentes da Inquisição ou da Reforma. As épocas de fervor se distinguem pelas façanhas sanguinárias. Santa Teresa só podia ser contemporânea dos autos de fé e Lutero do massacre dos camponeses. Nas crises místicas, os gemidos das vítimas são paralelos aos gemidos do êxtase… patíbulos, calabouços e masmorras só prosperam à sombra de uma fé – dessa necessidade de crer que infestou o espírito para sempre.
O diabo empalidece comparado a quem dispõe de uma verdade, de sua verdade. Somos injustos com os Neros ou com os Tibérios: eles não inventaram o conceito de herético: foram apenas sonhadores degenerados que se divertiam com os massacres. Os verdadeiros criminosos são os que estabelecem uma ortodoxia no plano religioso ou político, os que distinguem entre o fiel e o cismático.
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Disso resulta o fanatismo – tara capital que dá ao homem o gosto pela eficácia, pela profecia, pelo terror – , lepra lírica que contamina as almas, as submete, as tritura ou as exalta.
Esse texto é do livro "Breviário de Composição", de Emil Cioran, escritor e filósofo romeno que viveu parte de sua vida na Franca.
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