Desde tempos remotos, as religiões são fontes de amparo e conforto espiritual para seus seguidores e praticantes. Da mesma forma, é sabido não ser de hoje que ocorrem conflitos entre pessoas de diferentes crenças e religiões que perduram ao longo dos anos e parecem não ter fim. Caso emblemático se evidencia entre judeus e mulçumanos no Oriente Médio. No Brasil, alguns dados merecem destaque.
Segundo o Novo Mapa das Religiões, coordenado pelo pesquisador Marcelo Néri, em 2003, 73,8% dos brasileiros se diziam católicos, enquanto, em 2009, a cifra caiu para 68,4%. Nesse período, os evangélicos subiram de 17,9% para 20,2%. Ademais, cresceram as pessoas que alegam não ter religião (ateus e agnósticos): de 5,1% para 6,7%.
Conforme pesquisa da FGV, onde os programas sociais do governo deram certo, o trânsito religioso estagnou. Assim, ficaria claro um vínculo entre o trânsito religioso, ou instabilidade religiosa, que passaria pelo cultural e pelo familiar, e a situação de instabilidade sócioeconômica das pessoas.
Todavia, independentemente de a mudança religiosa ocorrer pelos motivos mencionados, por outros, como ampla utilização da mídia televisiva e eletrônica, ou, talvez, apenas por uma questão de identificação com os ritos e pregações, o direito à crença em uma religião, bem como sua prática são assegurados por nossa Constituição da República, como prescreve o artigo 5º, inciso VI: "é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias".
Isso não significa, porém, como sabemos, que o direito de não se crer em um ente superior, de se ser cético quanto à crença em uma entidade e, por fim, o direito de se ter tão-somente fé, desvinculadamente de religião, não devam ser respeitados. Pelo contrário, merecem respeito e compreensão, assim como qualquer forma de manifestação religiosa.
Atritos existem e, com certeza, sempre existirão, mas queremos crer que, dia após dia, as diferenças sejam minimizadas, para buscarmos uma convivência mais harmoniosa, com menos intolerâncias e preconceitos. No contexto, cumpre ressaltar o artigo 104, inciso II, do Código Civil de 2002, no que tange aos requisitos de validade quanto ao objeto do negócio jurídico, quais sejam: a) lícito, b) possível, c) determinado ou determinável.
Então, vejamos. Numa interpretação não-literal do texto, mais abrangente, deve-se buscar não a intenção estática da lei ou do legislador, mas a interpretação do conteúdo normativo de acordo com a realidade atual e mutável, de modo a acompanhar as constantes e importantes evoluções sociais, para não se estagnar no tempo e trazer prejuízos para o próprio detentor do poder, o povo.
Nesse momento, lembrando que a arte nos possibilita compreender melhor a realidade em que vivemos, permita-nos remeter ao filme Meia-noite em Paris, de Woody Allen. Na película, a realidade se confunde com a ficção, de modo que um escritor norte-americano, encantado com a cidade européia e entediado com o estilo de vida de seu país, passa a conviver na roda noturna de intelectuais, como Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald, Picasso, Dalí, entre outros, apaixonando-se por uma bela jovem parisiense.
Pois bem, a amigável situação descrita nos possibilita concluir que desenvolveram laços de convivência, de modo que até o "forasteiro", ao se enturmar, passou a integrar o grupo, todos unidos por afinidades em comum. Em certa medida, podemos dizer que a noite, a boemia e as artes se tornaram dogmas de sua religião, de modo que, dia após dia, sempre à meia-noite, encontravam-se e partiam para as festas.
No enredo, em certo momento, o jovem americano solicita a Hemingway que leia o manuscrito de sua obra. O autor-caçador é categórico ao impor uma condição – que sua revisora leia antes. Firmam, assim, um contrato tácito, com uma cláusula de condição suspensiva.
Pergunta-se, então, se na ilustração exposta o negócio jurídico celebrado é válido, considerando que o jovem e o renomado escritor pertencem a épocas distintas. Haveria uma limitação, uma barreira temporal mesmo dentro na história, que, de fato, impediria a celebração. Todavia, é superada pelo criativo enredo e pelos engenhos da arte cinematográfica.
Desse modo, podemos afirmar que, no caso, por uma interpetração não-literal, mais abrangente, o requisito de validade do negócio jurídico quanto ao objeto, qual seja - b) possível - é perfeitamente confirmado. O contrato celebrado é válido, assim como toda a história.
Voltando, porém, à realidade, cabe lembrar que somos um Estado laico, de modo que o preâmbulo da Constituição Federal de 1988 é claro, contudo, ao enunciar, nos termos seguintes:
"Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL."
A expressão em destaque - "sob a proteção de Deus" -, no entanto, não tem força normativa. É antes um norte, um guia para o povo e para os operadores do direito. Assim, somos um Estado laico, sem religião oficial, sob orientação religiosa com força não cogente.
Nesse sentido, cabe recordar notícia do STF do dia 15 agosto de 2002, intitulada "Pleno mantém supressão da frase ‘sob a proteção de Deus’ na Constituição do Acre". O texto informa que o Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou improcedente, por unanimidade, Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin 2076) do Partido Social Liberal (PSL), contra a Assembleia Legislativa do Acre, por omissão no preâmbulo da Constituição daquele estado das palavras “sob a proteção de Deus”.
Entre os argumentos que fundamentaram a decisão, o relator do caso, ministro Carlos Velloso, explicitou que o preâmbulo constitucional não cria direitos e deveres, não tendo força normativa e refletindo, assim, apenas a posição ideológica do constituinte. “O preâmbulo, portanto, não contém norma jurídica”, afirmou o ministro.
Finalmente, já diziam que a arte imita a realidade e que, além disso, devemos saber que sem a primeira não nos inserimos na segunda, sendo assim, indissociáveis. Seria preciso também perseguir nossa coexistência religiosa diariamente, sempre na tentativa de efetivá-la. E isso se inicia em pequenos atos isolados e personalíssimos, como ao nos conscientizarmos intimamente do real valor do direito à liberdade de crença e religião, protegidos constitucionalmente, que cada um merece ter respeitado, sem prejuízo de uma busca constante de compreensão própria e do próximo, para não ferir outro valor fundamental de nosso ordenamento jurídico, qual seja: a dignidade da pessoa humana, que deve ser observada em cada caso, devido a singularidade de cada ser, inserido numa totalidade.
Nicholas Merlone é advogado
Revista Consultor Jurídico, 27 de agosto de 2011
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