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segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Curiosidades sobre os engenhos de moer cana de açucar e de fazer farinha

Relendo Frei Vicente do Salvador (História do Brasil - Edição Melhoramentos/1954, a partir da pág. 332):


CAPÍTULO QUADRAGÉSIMO SÉTIMO



Da nova invenção de engenhos de açúcar, que neste tempo se fez



Como o trato e negócio principal do Brasil é de açúcar, em nenhuma outra coisa se ocupam os engenhos, e habilidades dos homens tanto como em inventar artifícios com que o façam, e 

porventura por isso lhe chamam engenhos.

Lembra-me haver lido em um livro antigo das propriedades das coisas que antigamente se não usava de outro artifício mais que picar, ou golpear as canas com uma faca, e o licor que pelos golpes corria, e se coalhava ao sol, este era o açúcar, e tão pouco que só se dava por mesinha; 

depois se inventaram muitos artifícios, e engenhos para se fazer em maior quantidade, dos quais todos se usou no Brasil, como foram os dos pilões, de mós, e os de eixos, e estes últimos foram os mais usados, que eram dois eixos postos um sobre o outro, movidos com uma roda de água, ou de bois, que andava com uma muito campeira chamada bolandeira, a qual ganhando vento movia, e fazia andar outras quatro, e os eixos em que a cana se moía; e além desta máquina havia outra de duas ou três gangorras de paus compridos, mais grossos do que tonéis, com que aquela cana, depois de moída nos eixos, se espremia, para o que tudo, e para as fornalhas em que o caldo se coze, e incorpora o açúcar, era necessário uma casa de 150 palmos de comprido e 50 de largo, e era muito tempo e dinheiro o que na fábrica dela, e do engenho se gastava.

Ultimamente, governando esta terra d. Diogo de Menezes, veio a ela um clérigo espanhol das partes do Peru, o qual ensinou outro mais fácil e de menos fabrica e custo, que é o que hoje se usa, que é somente três paus postos de por alto muito justos, dos quais o do meio com uma roda de água, ou com uma almanjarra de bois ou cavalos se move, e faz mover os outros; passada a cana por eles duas vezes larga todo o sumo sem ter necessidade de gangorras, nem de outra coisa, mais que cozer-se nas caldeiras, que são cinco em cada engenho, e leva cada uma duas pipas pouco mais ou menos de mel, além de uns tachos grandes, em que se põem em ponto de açúcar, e se deita em formas de barro no tendal, donde as levam à casa de purgar, que é mui grande, e postas em andainas lhes lançam um bolo de barro batido na boca, e depois daquele outro, com o açúcar se purga, e faz alvíssimo, o que se fez por experiência de uma galinha, que acertou de saltar em uma forma com os pés cheios de barro, e ficando todo o mais açúcar pardo, viram só o lugar da pegada ficou branca.

Por serem estes engenhos dos três paus, a que chamam entrosas, de menos fabrica e custo, se desfizeram as outras máquinas, e se fizeram todos desta invenção, e outros muitos de novo; pelo que no Rio de Janeiro, onde até aquele tempo se tratava mais de farinha para Angola que açúcar, agora há já 40 engenhos.



Na Bahia 50, em Pernambuco 100, em Itamaracá 18 ou 20, e na Paraíba outros tantos; mas que aproveita fazer-se tanto açúcar se a cópia lhe tira o valor, e dão tão pouco preço por ele, que nem o custo se tira.




-=-=-=-


Relendo Virgílio Várzea (Santa Catarina/A Ilha):




O engenho de farinha


É de maio a outubro de cada ano, em geral, que começam a trabalhar os engenhos de farinha e os de cana: os primeiros funcionam em todas as freguesias e arraiais uns após outros ou muito conjuntamente, durante todo aquele espaço de meses, conforme o tempo em que as roças foram plantadas, pois as de mandioca o podem ser em qualquer época; os segundos só trabalham de maio a agosto comumente, que são os meses próprios para a colheita da cana, mas a sua plena atividade limita-se verdadeiramente a junho e julho, época caracterizada lá entre os roceiros pelo "tempo do açúcar".

Ocupar-nos-emos em primeiro lugar dos engenhos de farinha, descrevendo-os resumidamente em toda a sua organização e função, pintando o viver e a operosidade dessas gentes dos sítios, durante as farinhadas, e traçando ao mesmo tempo igualmente a maneira pela qual, findos esses trabalhos, se fazem as novas plantações.

Só possuem engenhos de farinha ou de cana os lavradores remediados ou mais abastados, porque esses aparelhos, posto que primitivos e simples — como são todos os da Ilha — demandam todavia um dado capital para o seu estabelecimento e a construção de um prédio apropriado, embora o prédio, as mais das vezes, como se observa comumente, não passe de um grande rancho de paredes de pau a pique barreadas e coberto de tiririca, abundantíssima ali nos terrenos alagados. Por essa razão os lavradores pobres só podem fazer farinha depois que esses proprietários acabam a sua. Então tomam de empréstimo os engenhos, pagando a utilização que deles fazem com a pequena retribuição de alguns dias de serviço de lavoura prestados àqueles proprietários.

Os engenhos elevam-se sempre ao centro das áreas de terra mais adequadas a cada espécie de cultura, para facilitar a condução das colheitas que têm de ser neles preparadas atendendo também a outros requisitos indispensáveis, como água próxima e abundante para todos os misteres, pastagens para animais, vias de comunicação fáceis, etc. Daí o serem, na sua maior parte, colocados longe das habitações dos proprietários, muitas vezes à distância de um quilômetro e mais, porém sempre à beira das estradas de rodagem e nas proximidades de cachoeiras, regatos ou rios. Por estarem assim afastados guardam todos acomodações para famílias, que neles habitam nos longos dias dasfarinhadas: cada um é dividido em duas seções comunicando-se internamente — uma com salas e quartos para os serviços domésticos, convenientemente assoalhada e provida de certo conforto: a outra aberta e de chão, muito ampla, onde se acha o aparelho com todos os acessórios, tendo pequenas janelas e duas largas portas de saída, uma à frente e outra aos fundos.

Situados a algumas braças da estrada real, com um caminho fechado por uma porteira que vai dar ao terreiro vasto, de onde saem para todos os lados os atalhos que levam às plantações em torno, os prédios têm a cercá-los, quase junto às paredes e ao telhado, grandes bananais, cafeeiros e laranjais que os ocultam às vezes sob os rendilhados das ramagens espessas, através das quais mal se os avista de longe, por estreitos fragmentos barreados. A um recanto próximo vê-se o cercado de varas unidas e altas protegendo uma bela horta, onde vicejam, de par com legumes de toda a espécie, esplêndidas roseiras, jasmineiros e malvas, como nos alegres jardins florescentes que ornam sempre nesses campos a frente das moradas rústicas. Estas hortas-jardins são cuidadas, durante a faina da farinha, pelas moças de casa e depois pelos homens da lavoura — filhos ou agregados — que vão passar dias e semanas aos engenhos para a plantação, a limpa ou a capina das roças.

Mas vejamos o aparelho do engenho de farinha na sua organização e disposição, como na de seus acessórios, para depois tratarmos da colheita da mandioca, sua raspagem e preparo para a fabricação da farinha, quando esses ranchos — pois que outro nome não merecem — regurgitam de pessoas, mulheres e homens, labutando alegremente, entre risadas e cantares, e formando essas cenas e quadros encantadores da vida rural catarinense.


O aparelho do engenho compõe-se de um grosso pião a pino, trabalhando no alto em um orifício feito na viga-mestra da cumieira e embaixo sobre um largo dormente de madeira, onde encaixa o outro extremo. Do meio do pião, faceado em quatro quinas e mais reforçado aí, saem vários raios de madeira sustentando uma grande roda denteada de 10 metros de diâmetro mais ou menos, a qual engrena horizontalmente no eixo, também denteado, da roda da sovadeira e a põe em contínuo movimento, impulsionada por sua vez pela almanjarra recurva de peroba, cuja ponta elevada faz firme no referido pião quase junto ao orifício da viga. A almanjarra desce como um enorme gancho, salvando no meio círculo que descreve a roda grande da engrenagem, a mesa da sovadeira e todo o aparelho desta, o forno colocado sob o seu raio, o cocho da escorredura e o da massa, de sorte a poder mover-se livremente no pescoço do boi que se junge à ponta descendente, onde há uma pequena canga com dois canzis, como os dos carros, e a brocha para prender o animal. A roda da sovadeira é menor que a outra e gira verticalmente dentro de um quadrado de madeira, tendo a uma de suas faces perpendiculares, justamente no ângulo onde encunha a prancha chamada mesa da sovadeira, uma pequena aberta a que justapõe, muito unida, a chapa de folha-de-flandres, picada em arestas vivíssimas, que rala a mandioca reduzindo-a à massa de que se faz a farinha. Na base do quadrado assente sobre o chão, há um cocho fundo onde cai toda a massa, que é retirada para a prensa em grandes tipitis à proporção que aumenta. Com a mesa da sovadeira entesta o cocho da escorredura, onde se deposita com água a mandioca raspada e de onde a vai tirando o sovador para o ato da ralagem. Nesse trabalho o sovador se escancha sobre a mesa e, empunhando as raízes duas a duas, coloca-as de ponta contra o crivo reluzente e cortante da roda, que se move incessantemente. O forno é circular e todo feito de tijolos cobertos de grosso reboco, segurando às bordas uma caldeira de cobre, funda de meio palmo e de seis metros de diâmetro, em que se torra a farinha por fornadas seguidas. Em certa altura, abaixo da linha da caldeira, uma pequena abertura na parede marca a boca do forno, pela qual se introduzem as achas e toros de lenha que alimentam o fogo durante a forneação. Mexe a farinha uma espécie de hélice de madeira movida pelo aparelho geral do engenho, dispensando assim a presença efetiva do forneiro, que é em geral qualquer dos homens empregados em outros misteres, e cujas funções consistem apenas em examinar de vez em quando o ponto em que se acha a farinha até ficar pronta, renovar o combustível ou atiçar os trafogueiros. Tal é o aparelho principal do engenho.

Além deste há apenas o da prensa, que consta de uma armação de grossas e pesadas madeiras (geralmente peroba) com uma forte base de 2,5 m de comprimento por 0,7 m de largura, de onde se erguem duas colunas quadradas coroadas em cima por um pranchão do feitio da base, porém mais delgado e estreito. Entre as colunas, e à distância igual um do outro, veem-se dois enormes fusos de madeira, que se prendem à travessa do alto e cujas cabeças faceadas têm quatro amplos orifícios, onde se fincam, para se lhes dar movimento, os chamados paus de prensa. São estes fusos que, descendo sobre os tipitis cheios, colocados sobre a mesa da prensa e convenientemente cobertos pelos pesados e grossos discos de madeira conhecidos por chapéus dos tipitis, os comprimem poderosamente para o enxugo da massa, que é depois levada ao forno. A mesa da prensa é toda sulcada de estreitos e rasos entalhos ao longo dos quais corre a água gomosa da mandioca que, caindo a princípio em um pequeno cocho e passando depois por meio de uma calha para outro arrumado fora, no terreiro, se vai secar e purificar ao sol, constituindo o polvilho.

Completando os utensílios necessários a um engenho de farinha, quando em funcionamento, há, além dos cochos já citados, pequenos outros destinados às raspas, à caroeira e à mandioca puba, bem assim ainda alguns de grandes proporções, feitos em geral de velhas canoas de voga inutilizadas no serviço do tráfico ou das redes. Estes últimos servem de paióis à farinha, que neles se deposita logo que sai do forno e neles permanece, bem coberta por grandes esteiras de peri, até à ensacadura ao fim das farinhadas.


As raspas são pequenos pedaços de mandioca escolhida, que a gente dos engenhos aproveita, depois de convenientemente preparados, para pudins e outros doces. Chama-se caroeira a massa picada e seca, crespa de um aspecto grisalho, que resulta da mistura dos pequeninos nós brancos das raízes que rejeita o ralador com as aparas negras da mandioca, a qual se distribui em rações ao gado e outros animais. Amandioca puba consegue-se mergulhando-se as túberas já raspadas em um cocho com água durante dias, após o que é utilizada na confecção das saborosas roscas, chamadas de mandioca puba.


Já vimos as vasilhas apropriadas para tudo isso e suas designações: vejamos agora o que são e do que se fazem os tipitis acima mencionados.

Os tipitis são uma espécie de balaios da capacidade de um alqueire proximamente, altos e de forma faceada (quando novos, pois uma vez em uso adquirem imediatamente um feitio circular), fechados por uma boca redonda e do diâmetro de um prato. São feitos de taquaras verdes, que, cortadas em fitas estreitas e desbastadas à faca, dão-lhes admirável flexibilidade, aumentada ainda pela molhadura que tomam esses cestos nos rios ou fontes, durante dias, cada vez que têm de entrar em serviço. Os tipitis, mesmo depois da taquara seca, uma vez umedecidos, conservam por muito tempo essa flexibilidade; e assim é que duram, em uso contínuo, de quatro a seis anos e mais.


3. A farinhada


Em maio começam a emigrar para os engenhos as primeiras famílias dos lavradores-proprietários, quando estes não possuem redes, pois os que as têm só podem entrar em farinhada ao fim da quadra mais ativa da pesca, lá para outubro ou novembro; e só o fazem antes, nos anos em que a farinha está em "alta" e tem grande consumo nos estados do norte, como por ocasião de secas e outras. Em tais épocas então dividem o pessoal do trabalho entre os engenhos e as redes, e eles próprios, numa prodigiosa atividade, galopando a cavalo do sítio para a praia e vice-versa, desde o romper do dia até à noite, ora assistem aos lanços das últimas, ora aos trabalhos dos primeiros. Mas geralmente em maio já muitos engenhos trabalham pelos arraiais e freguesias da Ilha catarinense.

Assistamos à mudança de uma dessas famílias para o seu engenho acompanhemos uma farinhada do primeiro ao último dia, apanhando-a em seus principais detalhes e cenas.


Na véspera, o carro ou os carros — porque os proprietários às vezes dispõem de dois ou de três, conforme suas posses e haveres — ocupam-se exclusivamente na condução da criação, pequena mobília e utensílios caseiros indispensáveis ao conforto, à lida propriamente doméstica e à do engenho, carregando igualmente os mantimentos necessários à família para uma estada de um a dois meses. Semanas antes, esses mesmos veículos têm acarretado do campo, em carradas seguidas, a lenha que terão de consumir fogão e o forno durante esse tempo, a qual é disposta em montões, ao fundo do terreiro, sob os cafeeiros e laranjeiras. Por esse tempo, já o edifício do engenho que, como de costume quando não está em serviço, serve de celeiro ao café, ao feijão, ao milho, ao amendoim e ao arroz, se acha completamente desimpedido e arrumado, com todo o aparelho e acessórios prontos para a faina da mandioca, bem como a parte onde assentam as salas e demais cômodos reservados à família. Aí também, já os tipitis, amarrados uns aos outros cm molhadura de dias para adquirirem flexibilidade, coalham, como estranhas ilhotas rendadas, as grandes fontes ou pequenos braços de rios que recortam as terras em volta; e o caminho geral do engenho e os estreitos atalhos aparecem limpos das ervagens e grama que os invadiram durante o ano, numa total roçadura e capina, de que se veem ainda contra as sebes as touceiras ressequidas estrumando os espinheiros.



No dia marcado para a partida, ao primeiro cantar do galo, a turma de filhos e agregados do lavrador que não pernoitou no engenho, põe-se de pé e sai para os pastos ou currais a pegar os bois, que são cangados ao carro no terreiro da habitação, sob a larga parreira onde este ficara, já de sebe nos fueiros, para a condução da família. A esse tempo, a dona da casa ergue-se e vai de quarto em quarto acordar as meninas, uma das quais —a mais velha — se dirige logo para a cozinha a fazer o fogo e a cuidar do "aparado". A velha mãe e as outras filhas vão ver as trouxas e mais uma ou outra coisa que fora deixada para a última hora, como acontece sempre nos lares latinos, enquanto o marido, fumando um longo cigarro de palha ou mascando, sela, à cocheira, um dos seus cavalos de montaria, dando ordens contínuas aos rapazes que se agitam no terreiro a embarcar os tarecos, numa matinada alegríssima.


Tudo isto se faz ainda escuro, com as estrelas a piscarem do alto do azul-ferrete do céu no seu crivo de ouro vivo. A sombra sepulta ainda os vegetais, que mal ramalham pelas frondes, à primeira aragem fria da alvorada. E a lufa-lufa feminil cresce dentro de casa, onde as raparigas esvoaçam atrapalhadamente, incertas e estremunhadas, de candeia ou vela de sebo na mão, a vestirem-se e a procurarem as coisas, sob os ralhos esganiçados da velha, que as aguilhoa no seu lidar expedito...

Por fim, tudo pronto, todos se vão acocorar à cozinha e, bebido o "aparado", postas a lata do açúcar, e as colheres, e as xícaras, em um samburá de asa, que um dos rapazes imediatamente arrebata ao braço, ó velho roceiro toca o "povo" para o terreiro e fecha a porta da cozinha.

A velha e as moças sobem então para o carro, já totalmente despertas e a rirem-se; e o veículo, os cocões afrouxados nas cunhas para não chiar, entra a rolar lentamente pelo caminho, no ranger das guascas da canga, no plac-plac das patas dos animais e no rumor seco das rodas, solavancando as asperezas do terreno, em meio às emanações deliciosas das plantas e ao trilar festivo dos pássaros, à primeira claridade suave que vem dourando o nascente...


4. A colheita da mandioca


À mesma hora, mais ou menos, em que a família segue para o engenho, largam daí os outros carros para os mandiocais das encostas ou das chapadas dos morros. Conduzem-nos os homens da turma que pernoitara no engenho, os quais se dividem ainda em dois pequenos grupos — um que fica nos trabalhos da arrancadura das raízes na roça, outro que se ocupa nos serviços internos do engenho e nos carros, como o sovador, o moço dos tipitis e da muda dos bois, o da prensa, os carreiros, e o forneador. Estes últimos são auxiliados depois pelos que trazem o carro onde vem a família. Nos dias que se desdobram no prosseguimento da faina, todos se revezam, a fim de que as durezas da labuta se repartam igualmente por todos.

Os mandiocais dos morros são os primeiros a colher-se, pela longa distância a que ficam sempre dos engenhos, como já observamos, pois que estes se acham em regra situados em planícies, atendendo ao equilíbrio de certas condições que precisam reunir para o seu bom funcionamento, condições já também apontadas por nós e que são — a proximidade de águas abundantes, pastagens, estradas de rodagem, etc.

Chegado o pessoal à roça, deixam-se os carros em lugar apropriado, debaixo do pequeno rancho de palha que se costuma construir aí para abrigo da gente, durante o tempo da plantação e da capina, ou sob as grandes árvores copadas. Em seguida descangam-se os bois, que são amarrados pela soga nos lugares gramosos do monte, ficando os carros com o cabeçalho sobre o muchaco e a sebe arranjada para receber a carga.


Os arrancadores iniciam o serviço por um dos extremos da roça e, pegando a rama com as duas mãos e balançando-a, arrancam as raízes, que estão à flor da terra fofa, as quatro, seis e mais, pois tantas dá cada pé de mandioca; depois, sacodem-nas um pouco para caírem os torrões, e quebrando-as pela ponta da cepa atiram-nas para os grandes balaios vazios que têm ali à mão. À proporção que os balaios se enchem conduzem-nos para os carros, atopetando cada um de per si até à conta da carrada. Cobrem esta de rama, que encarapitam e socam no alto dos fueiros, ajudam os carreiros a travarem com cordas a carga e voltam prestamente à faina, acumulando montes e montes de raízes, em meio ao mandiocal, enquanto os carros vão e volvem.

Três carros, servindo simultaneamente, podem fazer de doze a quinze carradas por dia na distância de um quilômetro, pois não trabalham senão de manhã e à tarde, evitando as horas em que o sol é escaldante para não estafarem os bois.


5. A raspadura


As primeiras carradas chegam quase sempre pelas sete horas da manhã. Já a família, estabelecido e arrumado tudo em seus cômodos, prepara-se alegremente para a raspadura. É este, com a colheita do café e a do algodão, o único serviço propriamente agrícola em que se emprega a mulher nesses sítios da Ilha, não falando na pequena ocupação com a criação, os jardins e as hortas, o que é insignificante. Além desses, os outros trabalhos femininos são exclusivamente domésticos, isto é, só se fazem portas a dentro no lar, como a fiação do gravatá, do algodão, do linho, os bordados, as rendas de almofada, os crivos, as tecelagens e tantos outros.


A matuta ou roceira catarinense, como em geral a de todo o Brasil, não se parece nisso com a aldeã europeia, a portuguesa especialmente (das ilhas ou do continente) que trabalha na agricultura e em certos misteres da pesca como um homem, chegando a ser carreira, pastora, remeira, etc., como nô-la descreve Guerra Junqueiro, n'Os Simples, Ramalho Ortigão, n'As Farpas, e muitos outros dos antigos e modernos escritores do Reino. E Oliveira Martins, tratando da pesca no seu magnífico livro Portugal nos Mares, diz em uma nota à pág. 244 da 2a. edição dessa obra: "São estas (as mulheres dos arraiais) quem vende o peixe e cura dos aprestos dos barcos. O pescador desembarcado terminou o seu trabalho: a esposa é quem dirige a economia da indústria".


A roceira de Santa Catarina (falando sem atender a exceções, que não entram nem podem entrar aqui como argumento), quer nas regiões interiores ou de serra acima, quer no litoral, não toma parte direta na agricultura, nos labores másculos da vida pastoril, nem na pesca, resumindo-se a sua atividade a tal respeito tão somente aos misteres caseiros, que são aliás avultados e importantes, como veremos agora na lida interna do engenho.


Encostados os primeiros carros à larga porta do terreiro, a carga é vazada em grandes cestos para um vasto lugar inteiramente desimpedido, que fica ao centro do engenho, ao pé do principal aparelho. Aí as raízes se acumulam num grande monte, que aumenta pelo dia adiante, à maneira que se sucedem as carradas.


A mãe de família e as filhas, com as moças da vizinhança que quase sempre aparecem para ajudá-las na labuta, imediatamente tomam lugar em volta do monte de mandiocas, agachando-se sobre amplas esteiras ou sentando-se em baixos cepos de madeira. Assim postadas, e cada uma com uma faca ou coto de faca (muito usado nos sítios), começa a raspadura, que é feita com rapidez e destreza por essas mãos femininas e mimosas, avultando, dentro em horas, ao lado do montão negro cheirando a terra revolvida de fresco, um outro de raízes brancas, que o sovador vai levando, aos balaios, para o cocho da escorredura e para a raladeira.

Todo o trabalho da raspadura é feito alegremente e sob a maior expansão, numa parolagem contínua, entre ditos graciosos e frescas, sonoras risadas. As moças, nos seus vestidos de chita mais velhos e nos seus corpetes e casacos folgados, os braços nus até aos cotovelos onde as mangas se enrolam em regaços, os rostos cheios e de um róseo levemente tostado pelo sol, balançam continuamente os bustos para a frente e para trás, a apanhar ao grande monte as raízes escuras e empoeiradas de areia, que para logo alvejam em suas mãos, sob o passar vivo da faca, que as decepa e esfola num seguido rasque-rasque. E o rumor das conversas e risos só é interrompido de longe em longe pela chegada dos carros, que fastam pesadamente no terreiro, atopetados de mandioca, chiando e rangendo pelo eixo e as guascas, contra a porta do engenho. A velha mãe ou o pai grita então para as raparigas, numa exigência de atividade:


— Vamos, meninas! olhem as novas carradas aí!...

E o montão de mandioca, que já se achava bastante reduzido, cresce e se alteia de novo, como no começo, sob os grandes cestos de raízes que se lhe despejam em cima, no esvaziamento dos carros.

Às ave-marias, geralmente, cessa a arrancadura nas roças e chegam as últimas carradas. Colocam-se os veículos, prontos para os primeiros serviços do outro dia, debaixo das ramagens espessas das laranjeiras e do cafezal; amarram-se os bois próximo às porteiras, nas pastagens em volta, com uma ração farta de caroeira ou de mandioca miúda; e os arrancadores e carreiros passam ao trabalho interno do engenho, alternando com o pessoal que aí se acha na raladeira e com o que lida com a massa, com os tipitis e com a prensa. A essa hora mais ou menos começam a chegar para a "trela" os rapazes da vizinhança ou da freguesia, que vêm de deixar os labores das , culturas ou das redes, quando não estão também em farinhada nos seus sítios. Aparece igualmente uma ou outra das famílias amigas das proximidades, que não faltam jamais a essas agradáveis visitas aos engenhos em faina. E o rancho adorável das moças visitantes, com os rapazes recém-vindos, mistura-se, numa balbúrdia expansiva, à roda da gente de casa, caindo todos a auxiliar a raspadura e por forma tal que, apesar do montão de mandioca ser enorme a esse tempo, desaparece, dentre em horas, sob os braços invasores e destros.

O serviço toma logo outro aspecto e a conversação intenseia, mais cortada de risadas e ditos, na atividade que aumenta. Surge então a aposta a "capote", cena rústica interessantíssima pelos diálogos engraçados que desperta entre raparigas e rapazes, diálogos que são sempre o fator de namoros e consequentes casamentos futuros, por estabelecerem, durante esses meses de farinhada, entre a fogosa juventude dos dois sexos, uma certa intimidade que não existe fora disso, nem mesmo nas festas do lar, como os batizados e bodas, as novenas e "batuques".


A aposta a "capote" consiste no seguinte: o grupo dos rapazes, que fica colocado a uma banda, entra a raspar as raízes de mandioca só até metade, jogando-as assim nesse estado para as moças, que as acabam de limpar com presteza admirável, em desafio de atividade àqueles, cujos esforços se resumem unicamente em aumentar-lhes a tarefa a um ponto que elas não possam dar vazão. E nisto reside o modo de ganhar o "capote": se as moças dão vazão às raízes ao fim de uma ou duas horas — que é quanto dura comumente a aposta — acabando-as de raspar ao mesmo tempo que lhes é atirado o último "capote", obtiveram a vitória; se o não fizeram, porém, esta pertence àqueles.

A pressa e o atabalhoamento de ação a que cada grupo se força, com a rebusca de raízes tortas e cheias de nós para dificultarem o "capote", são que determinam os diálogos pitorescos de que falamos acima, os quais tanto fazem rir aos velhos, relembrando-lhes saudosamente os tempos brilhantes da mocidade extinta. Esses diálogos chocam-se seguidamente, entre risadas constantes, findando infalivelmente por uma troça ruidosa das moças, quando perde o grupo dos homens; e por um berreiro triunfal dos últimos se são aquelas os vencidos. E todos acompanham a balbúrdia numa jubilosa expansão.

Aos domingos, o serviço acaba mais cedo e as famílias enxameiam em maior número, organizando-se então, entre rapazes e moças, variados jogos e danças roceiras, figurando principalmente, em meio às últimas, a chama-rita (*), a cana-verde (**) e as rodas gerais de fandango.


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A denominada Chama-rita: 



Um vídeo do ritmo conhecido como cana-verde:










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