Alguém trocaria 16 hospitais por um estádio de futebol?
Os 39 vereadores que aprovaram o incentivo fiscal ao Itaquerão argumentam que “toda a Zona Leste vai ganhar com a obra”
Branca Nunes
Terreno onde será construído o Estádio do Corinthians, mais conhecido como Itaquerão, São Paulo (SP)
(Fernando Cavalcanti)
Embora céticos, os moradores de Itaquera – a grande maioria formada por
corintianos militantes – tentam acreditar que o poder público não vai
desperdiçar mais essa oportunidade de investir numa área da periferia da
cidade
Depois de passarem meses garantindo que não haveria um centavo de dinheiro público em estádios para a Copa do Mundo de 2014, foi essa a decisão do prefeito e do governador de São Paulo. Juntos, resolveram brindar a Odebrecht e o Corinthians com 510 milhões de reais. Como o custo total da obra é estimado em 890 milhões de reais, cada uma das 68 mil cadeiras do Itaquerão (como é conhecido o estádio do Corinthians) custará 13.088,23 reais.
Há 32 anos, Anilton Darci Ribeiro nasceu em Itaquera. A casa onde mora com a mulher e o filho, a dois quilômetros do local do futuro estádio, tem dois quartos, cozinha, sala, banheiro, área de serviço e um riacho de esgoto a céu aberto que corre no quintal. A prefeitura alega que não tem dinheiro para a canalização.
Há 16 anos, Diana do Nascimento chegou do Ceará e instalou-se na Favela da Paz, ocupada por 400 famílias a menos de um quilômetro do estádio. Ali, as casas são de papelão, as instalações elétricas são clandestinas e o crack extermina um adolescente por semana. No projeto do Polo Institucional Itaquera, plano urbanístico que teve suas diretrizes aprovadas em agosto de 2008, está previsto que o Parque Linear Rio Verde será construído dentro do terreno onde hoje está a casa de Diana. Ela nunca ouviu falar disso. Tampouco recebeu a visita de um agente de saúde, de um assistente social, nem de funcionários do governo. O que mais queria era a instalação de um semáforo na Avenida Miguel Inácio Curi para que seus filhos chegassem à escola com segurança. Há um mês, pintaram uma faixa de pedestres que os carros insistem em não respeitar.
Francisco Carlos da Silva treina mais de 50 crianças na pista de 200 metros que pintou na Rua Nicolino Mastrocola, em Itaquera
Dos 890 milhões de reais destinados à construção da arena, 400 milhões de reais serão emprestados pelo BNDES, com juros subsidiados. Outros 420 milhões de reais virão da prefeitura e, 70 milhões de reais, serão destinados pelo governo do estado a uma arquibancada móvel de 20 mil lugares, que permitirá ao Itaquerão comportar um público de 68 mil pessoas – como exige a FIFA para estádios que almejam sediar a abertura da Copa. Embora maquiados por nomes como “Certificados de Incentivo ao Desenvolvimento” e “isenção fiscal”, toda essa bolada tem a mesma fonte: o dinheiro público.
As contrapartidas - O principal argumento dos 39 vereadores que aprovaram o donativo ao Itaquerão é que “toda a Zona Leste vai ganhar com o estádio”. Os 15 contrários ao Projeto de Lei 288/2011 têm dúvidas a respeito. “Em 2004, aprovamos o Programa de Desenvolvimento Econômico da Zona Leste e ele ainda não saiu do papel”, lembra Cláudio Fonseca, líder do PPS na Câmara Municipal. “Não aceito que o dinheiro público seja investido em um empreendimento exclusivamente privado. Nada garante que esses 420 milhões de reais resultarão em incentivos para aquela região. Com esse dinheiro, seria possível construir, por exemplo, mais de 400 creches que atenderiam cerca de 200 crianças cada uma”.
Em troca de um estádio de quase 1 bilhão de reais, o Corinthians terá que investir 12 milhões de reais em programas sociais na região. De acordo com uma nota da prefeitura, “a Secretaria Municipal de Planejamento ainda está definindo como este investimento será utilizado e quais secretarias ou entidades serão beneficiadas”. O clube poderá concluir um terço dessas ações até seis meses depois da Copa de 2014. As demais, até 2019.
Não há nenhuma grande exigência para a Odebrecht. O único compromisso da empresa é arcar com 1% do valor das obras mitigadoras de impacto no trânsito que será gerado pelo estádio.
Anilton Darci Ribeiro e Adriana de Aro Lima, moradores de Itaquera, ao
lado do riacho de esgoto que corre no quintal da casa onde moram
Hoje, a Radial Leste, principal acesso à Itaquera, é a quarta via mais movimentada de São Paulo no período da manhã, e a campeã de lentidão durante a tarde. Pela estação Corinthians-Itaquera do metrô, a quarta mais movimentada da capital, passam 200 mil pessoas por dia. Para a Copa do Mundo, está previsto, de acordo com o governo, “o aumento da capacidade e a modernização da infraestrutura existente” do metrô e dos trens da CPTM que abastecem a região.
O Polo Institucional lista, entre outros projetos, a construção de novas Fatecs, um terminal rodoviário, um parque tecnológico, um centro de convenções e eventos, um novo batalhão da Polícia Militar e uma unidade da entidade filantrópica Obra Social Dom Bosco. Também estão previstas a ampliação do Fórum Judiciário, a instalação de uma unidade do Senai e a criação do Parque Linear Rio Verde, uma gigantesca área de lazer que interligará o Rio Verde ao Parque do Carmo.
Parque do Carmo, Itaquera
Nos mais de 55 quilômetros quadrados de Itaquera existem hoje 10 Assistências Médicas Ambulatorias (AMAs), um hospital municipal, cinco escolas municipais de ensino fundamental, dois parques, 11 escolas municipais de educação infantil e 23 Unidades de Básicas de Saúde (UBS). Pode não ser pouco, mas está muito longe do ideal. “Itaquera ainda é um bairro dormitório”, diz Francisco Carlos da Silva, nascido e criado na Zona Leste. “Temos carências nas áreas de saúde, educação, transporte. Vivem falando da cracolândia da região central de São Paulo. Temos 20 pequenas cracolândias por aqui”.
Na mira da Justiça - A forma como foi feita a negociação entre o poder público, a Odebrecht e o Corinthians, gerou duas ações no Ministério Público de São Paulo. A primeira investiga se, ao conceder isenção fiscal de R$ 420 milhões de reais para a construção de um estádio privado, a prefeitura estaria cometendo improbidade administrativa. A segunda está sendo analisada pelo promotor de Habitação e Urbanismo José Carlos de Freitas. Ele quer saber quais os reais impactos sociais que a construção vai causar na região e descobrir por que a Companhia de Tecnologia e Saneamento Ambiental (Cetesb) concedeu licença ambiental à obra sem exigir, segundo o promotor, “um profundo estudo de impacto ambiental”.
“É preciso saber qual o impacto social para a população de baixa renda”, argumenta Freitas. “Ninguém disse quantas casas serão desapropriadas, nem para onde essas pessoas serão removidas”.
Quanto à questão ambiental, a prefeitura afirmou, por meio de nota, que a primeira etapa do processo – o Relatório de Impacto de Vizinhança (RIVI) – foi aprovada pelos técnicos responsáveis da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente e da Câmara Técnica do Conselho Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. Até a semana passada, a Cetesb não havia mandado para o Ministério Público a documentação pedida. Freitas avisa que a investigação não tem prazo para terminar.
A população - Embora céticos, os moradores de Itaquera – a grande maioria formada por corintianos militantes – tentam acreditar que o poder público não vai desperdiçar mais essa oportunidade de investir numa área da periferia da cidade. O poder público quer manter essa confiança. Segundo o município, entre as benesses imediatamente ligadas à arena estão a criação de 700 empregos – 200 permanentes e 500 nos dias de jogos e eventos –, a valorização do mercado imobiliário, e a geração de receita de 442 milhões de reais até 2014 ligada a eventos esportivos.
Pelo menos a especulação imobiliária já começou. Cláudia Santorsula, corretora da Renascer, uma das imobiliárias mais antigas de Itaquera, conta que os apartamentos da Cohab – localizados bem ao lado de onde será erguido o estádio –, antes vendidos a 95.000 reais, agora estão custando 135.000 reais. Casas em condomínios fechados avaliadas em 150.000 reais subiram para 230.000 reais. “O problema é que a renda da população ainda não acompanhou a valorização”, observa Cláudia. “Por isso as vendas diminuíram bastante nos últimos meses”.
Franklin Rusig, proprietário da imobiliária Rusig, confirma. “Houve um aumento de cerca de 30% no preço dos imóveis da região”, conta. “Mas a procura baixou. Muitos clientes também desistiram de vender seus terrenos, dizendo que preferem esperar a Copa do Mundo para ver se eles valorizarão ainda mais”.
O governo informou que, nos últimos anos, a Secretaria de Educação investiu 7 milhões de reais em programas de reformas e melhorias nas 23 escolas estaduais da região de Itaquera, e 2 milhões de reais – desde 2007 – na Escola Técnica do bairro. Também foram 38 milhões de reais entre verbas de custeio e folha salarial da USP Leste. A soma equivale a 11% do valor que será destinado a um estádio de futebol.
Vista aérea do parque aquático do Sesc Itaquera, na Zona Leste de São Paulo, uma das poucas opções de lazer da região
Fonte: Rev. VEJA
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