Processo: | Apelação Cível nº 2011.010379-5 |
Relator: | Ricardo Roesler |
Data: | 26/07/2011 |
Apelação Cível n. 2011.010379-5, da Capital
Relator: Desembargador Substituto Ricardo Roesler
REMESSA NECESSÁRIA. AÇÃO POPULAR. DEMANDA EXTINTA POR SUPERVENIENTE AUSÊNCIA DE INTERESSE PROCESSUAL. IMPROPRIEDADE. EDIÇÃO DE DECRETO QUE RETIFICA ANTERIOR DIPLOMA DE TOMBAMENTO, PARA EXCLUIR DA PROTEÇÃO ESPECIAL O PORTAL DO IMÓVEL (RESIDÊNCIA DO HISTORIADOR OSWALDO RODRIGUES CABRAL), AO FUNDAMENTO DE INTERESSE PÚBLICO (ALARGAMENTO DE LOGRADOURO). DESISTÊNCIA, POSTERIORMENTE, DA DESAPROPRIAÇÃO DA ÁREA "DESTOMBADA", COM REVOGAÇÃO DO DECRETO EXPROPRIANTE, APENAS. MANUTENÇÃO, TODAVIA, DO DECRETO QUE CANCELOU PARCIALMENTE A PROTEÇÃO DO TOMBAMENTO (DECRETO N.º 61/99). INTERESSE PÚBLICO NÃO EVIDENCIADO. NULIDADE DO DECRETO N.º 61/99. SENTENÇA REFORMADA.
RECURSO DO AUTOR. FIXAÇÃO DE HONORÁRIOS. SENTENÇA QUE SE ABSTÉM DO ARBITRAMENTO. FIXAÇÃO DE ACORDO COM AS CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO CONCRETO. RECURSO PROVIDO.
Tendo sido alterado o Decreto n.º 144/89, por meio do Decreto n.º 61/99 (a fim de excluir da proteção de tombamento do portal da residência do Prof. Oswaldo Rodrigues Cabral), a posterior revogação unicamente do Decreto n.º 133/99, que autorizara a desapropriação da área com o fim de alargamento da rua, não esvazia por si o objeto da ação popular, tendo em vista manter-se hígido o decreto que mitigara o tombamento, excluindo o portal (Decreto n.º 61/99).
Conquanto se admita a revisão do ato de tombamento, tem afirmado a doutrina que o seu cancelamento exige, por evidente, a perda dos elementos que ensejaram a proteção especial (Gina Copola, Tombamento: algumas relevantes considerações), o que exige, evidentemente, detalhamento técnico.
Na hipótese, pretendia-se a desfiguração do imóvel (cujo conjunto arquitetônico era originalmente resguardado em sua integralidade), com o fim de realizar obra pública, que, afinal, revelou-se desinteressante ao ente Municipal. Nesse contexto, a mitigação do tombamento, promovida pelo Decreto n.º 61/99, deve ser afastada, mantendo-se a integral proteção conferida pelo decreto primitivo (Decreto n.º 144/89).
Por força do primado da causalidade, são devidos os honorários também na ação popular, não obstante o desfecho que se tenha conferido (STJ, REsp 916.611/SP, Rel. Min. Mauro Campbell Marques).
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 2011.010379-5, da comarca da Capital (2ª Vara da Fazenda Pública), em que é apelante Paulo Guilherme Poyares dos Reis, e apelado Município de Florianópolis:
ACORDAM, em Segunda Câmara de Direito Público, por votação unânime, reformar a sentença em sede de remessa necessária e dar provimento ao recurso. Custas na forma da lei.
1. RELATÓRIO
Contra sentença que julgou extinta a ação popular sem resolução do mérito, Paulo Guilherme Poyares dos Reis interpôs recurso.
Em síntese, o recorrente manejara ação popular contra o Município de Florianópolis, a Sra. Angela Regina Heizen Amin Helou e o Conselho Técnico do Patrimônio Histórico, Artístico e Natural - Cotesphan, com o que pretendia "a anulação de todos e quaisquer atos que visem a demolição de parte ou totalidade dos bens tombados pelo Decreto Municipal n.º 144/89 e ao comprometimento das árvores declaradas imunes ao corte, pelo Decreto Municipal n.º 152/87" (fl. 17).
O pedido fundava-se no receio de que a casa tombada, outrora pertencente ao historiador Oswaldo Rodrigues Cabral, tivesse seu conjunto arquitetônico agredido. Na prática, aquele imóvel, tombado desde 1989 como patrimônio histórico, arquitetônico, artístico e natural, tivera revisto o decreto de proteção, para excluir o "muro" frontal. Com a medida o Município tencionava promover o alargamento do logradouro que confronta o imóvel, a rua Esteves Júnior, no centro de Florianópolis.
Segundo o autor, o imóvel, como um todo, estava albergado pela proteção - inclusive os espécimes da flora local - não sendo legal nem legítima a tentativa de suprimir o tombamento, mesmo que apenas do portal. Postulou-se então a concessão de medida liminar, para o fim de impedir qualquer ato que pudesse pôr em risco o conjunto arquitetônico ou as árvores que ornam o imóvel, e avizinham-se ao muro. Requereu, ao fim, a anulação de todos e quaisquer atos que visassem à demolição de parte ou de todos os bens tombados pelo Decreto n.º 144/89, bem assim que fosse impedida a supressão da vegetação local, de acordo com o Decreto n.º 152/87.
Instado o Município manifestou-se, afirmando que o Decreto n.º 144/89 não definia expressamente que o "muro" estava inserido no conjunto arquitetônico protegido, e bem por isso o Município, por meio da Cotesphan, deliberou pela sua "exclusão" da área tombada, o que se deu com a edição do Decreto n.º 61/99.
Afirmou, também, que o Decreto n.º 3.866/41 autoriza o Presidente da República a cancelar tombamento, e que igual prerrogativa é conferida aos Prefeitos. Ressaltou, no mais, que o cancelamento vem ao encontro de interesse maior, e por ele justifica-se, sendo por isso legal o ato, e razão pela qual a liminar não mereceria atenção.
Negou-se a liminar (fls. 65-67).
Citados, os réus apresentaram defesas.
O Município repisou os argumentos iniciais (fls. 73-77).
A demandada Angela Regina Heizen Amin Helou apresentou defesa em idênticos termos, reafirmando a legalidade do ato (fl. 78-82).
O Cotesphan, em contestação de fls. 85-88, aduziu ter agido de forma "extremamente técnica", e sob tal perspectiva opinou pela demolição do "muro", afirmando que o decreto "não é cristalino" no ponto e que o portal "denota a sua pouca expressão arquitetônica em todo o contexto" (fl. 87), justificando, assim, a manifestação favorável daquele órgão à demolição.
O autor impugnou (fls. 90-99).
Saneou-se o feito, e determinou-se a realização de perícia. Após indas e vindas, o Município peticionou a extinção do processo, aduzindo a perda de interesse do autor na demanda, tendo em vista a edição do Decreto n.º 7.660/09, que veio a revogar o Decreto n.º 133/99 (que expropriava a área em que está encravado o portal em questão).
Não houve oposição do autor, que, a bem da verdade, manteve-se silente; o Ministério Publico opinou pela extinção da ação (fls. 212-213).
Extinguiu-se o feito em sequência, ao argumento de ausência de interesse processual (fls. 214-215).
Sobreveio recurso do autor, pugnando a fixação de honorários. Houve contrarrazões (fls. 227-230).
Nesta instância, o Ministério Público opinou pelo conhecimento e provimento do recurso (fl. 235-238). Lavrou parecer pela douta Procuradoria-Geral de Justiça a Exma. Sra. Dra. Vera Lúcia Ferreira Copetti.
Vieram-me conclusos.
2. VOTO
Trato de recurso contra sentença que julgou extinta demanda popular, por perda superveniente de objeto. Na prática, discutia-se a possibilidade de revogação ou mitigação do alcance de decreto de tombamento, que conferira proteção especial a imóvel outrora de propriedade do historiador Oswaldo Rodrigues Cabral (Decreto n.º 144/89). O tombamento, ao que indica a justificativa pare edição do decreto, deu-se em face do relevante valor histórico, artístico, arquitetônico e cultural do imóvel.
Embora reconhecido o valor e a relevância daquela propriedade, o Município, a propósito de melhorar o tráfego de pedestres pela rua Esteves Junior, promoveu a alteração do decreto, de sorte a excluir da proteção um dos muros (o que confrontava com a via), para então demovê-lo e eventualmente ampliar a calçada no local. É a partir desse cenário que se orquestrou a ação popular, voltada a evitar qualquer ato que pudesse afastar ou diminuir a proteção conferida pelo Decreto n.º 144/89.
O processo, em tese, ascendeu por força do recurso do autor, que procura a satisfação de interesse bastante prosaico no contexto (é voltado unicamente à concessão de honorários - isso porque, extinto o feito sem resolução do mérito, deixou-se de fixar a verba). Olvidou-se, porém, que a solução enseja o reexame necessário, por força do disposto no art. 19 da Lei n.º 4.717/65. A propósito, ali dispõe que "a sentença que concluir pela carência ou pela improcedência da ação está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal".
A sentença, enfim, sujeita-se ao duplo grau de jurisdição. E creio que mereça reforma.
Conforme já destaquei, a ação voltava-se à proteção do patrimônio tombado, então em vias de ser mitigada com a alteração do Decreto n.º 144/89. Esse decreto dispunha sobre aampla proteção daquela que fora a residência do Professor Oswaldo Rodrigues Cabral. A propósito, no que interessa ao caso, o decreto dispunha que "o tombamento compreende o exterior e o interior da edificação, bem com a área do jardim adjacente" (art. 2.º, fl. 26). A proteção, portanto, era irrestrita (tanto era assim que a pretensão de derrubar o portal firmou-se na edição do Decreto n.º 61/99, que limitou o tombamento).
A certa altura, o Município peticionou nesta e em outra demanda, de natureza expropriatória (ambas julgadas nesta ocasião), noticiando a edição do Decreto n.º 7.660/09, que então revogara o Decreto n.º 133/99, postulando em sequência a extinção da demanda.
De acordo com o Município, o Decreto n.º 133/99, que autorizara a desapropriação da parte frontal do imóvel tombado, teria perdido o seu efeito, em face da edição do Decreto de 2009. Logo, não remanesceria interesse, já que o bem, em tese, não estaria mais ameaçado. Nesse passo, entendeu o magistrado ter de fato havido perda do objeto, fato que, aparentemente, transitou inconteste (com anuência, inclusive, do Ministério Público - fls. 212-213).
Todavia, a revogação do Decreto n.º 133/99 em absoluto esvaziou o conteúdo desta ação.
Observo do corpo do decreto revogador (Decreto n.º 7.660/09) que o decreto revogado tratava unicamente da "declaração de utilidade pública para fins de desapropriação" da área de propriedade de Odete Ramalho (fl. 154), atual proprietária do imóvel tombado. Cópia do decreto revogado, aliás, consta de fl. 06 dos autos da ação desapropriatória (autos n.º 2011.010378-8), e de fato trata unicamente da desapropriação.
Não tenho dúvidas de que o Decreto n.º 7.660/09 fulminou qualquer efeito decorrente do decreto expropriatório; no entanto, bem visto o processo é possível perceber que antes dele fora editado decreto distinto, pretendendo dar alguma conformação ao Decreto n.º 144/89. Esse decreto, de n.º 61/99, que acompanha o processo desde a contestação ofertada pelo Município, dispunha em seu art. 1.º: "O caput do art. 2.º do Decreto 144/89, passa a ter a seguinte redação: 'O tombamento compreende o exterior e o interior da edificação, bem como a área do jardim adjacente, excluído o muro frontal'" (fl. 57 - grifei).
Esse Decreto visivelmente deu novo alinho ao decreto de tombamento inicial (de n.º 144/99), e não se tem notícias até então de que os seus efeitos tenham sido alterados. Em princípio, portanto, os pressupostos que autorizaram a ação popular permanecem hígidos. Afinal, é evidente que a pontual alteração da redação original do Decreto n.º 144/89 permitiria, em dado cenário, a renovação de atos de expropriação, e a consequente demolição daquele muro. No mais, é bom lembrar, a causa de pedir próxima tratava da impossibilidade de o Poder Público alterar a vocação do bem tombado, e promover, ainda que parcialmente, o cancelamento da proteção (e a proteção originária, já ressaltei, era irrestrita em relação ao conjunto arquitetônico).
Remanesce então, como objeto, a possibilidade de alteração daquele quadro de proteção inicial, que eventualmente poderá dar-se com outras formas e nuances, a partir dos contornos dados pelo Decreto n.º 61/99. É providencial, portanto, aferir-se sua legalidade.
Pois bem. O tombamento é, por excelência, ato complexo; é procedimento pelo qual a Administração Publica reserva, com restrição, o uso de determinada propriedade. Segundo Marçal Justen Filho, "consiste num regime jurídico específico, imposto por ato administrativo unilateral de cunho singular, quanto ao uso e fruição de coisa determinada, cuja conservação do interesse da coletividade e consistente em dever de manter a identidade dele (...)" (Curso de direito administrativo, Saraiva, 2009, p. 521).
É, portanto, a partir do juízo da Administração Pública, e desde que observado algum interesse especial de proteção em determinado bem, que se legitima o tombamento. De qualquer sorte, cuida-se de ato vinculado no que pertine à forma, pois exige prescrição em lei (Lúcia do Valle Figueiredo, Curso de direito administrativo, Malheiros, 2006, p. 314-315), e é regulado no Município de Florianópolis pela Lei n.º 1.202/74. O que se pergunta é se, uma vez afetado pelo tombamento, pode haver o seu cancelamento, ainda que parcial.
A propósito do que regularmente ocorre no âmbito administrativo, a revogação de um ato - notadamente o vinculado - exige prescrição em lei. Não seria diferente ao cuidar-se do tombamento, sobretudo por exigir algum fundamento razoável o seu cancelamento. A providência, aliás, tem regulação em lei federal, autorizando o Presidente da República a proceder ao "destombamento". Sobre o tema, ensina Maria Sylvia Zanella di Pietro:
"Último dado a assinalar no tocante ao procedimento é o que se refere à possibilidade de ser cancelado o tombamento. Pelo artigo 10, in fine, do Decreto-lei n.º 25, a decisão do tombamento não era passível de recurso. Porém, esse dispositivo ficou revogado pelo Decreto-lei n.º 3.866, de 29-11-41, ao estabelecer que 'o Presidente da República, atendendo a motivos de interesse público, poderá determinar, de ofício ou em grau de recurso, interposto por qualquer legítimo interessado, seja cancelado o tombamento de bens pertencentes à União, ao Estado, aos Municípios ou a pessoas naturais ou jurídicas de direito privado, feito no IPHAN, de acordo com o Decreto-lei n.º 25, de 3-11-37'.
Esse dispositivo tem sido criticado pelo fato de dar ao Presidente da República o poder discricionário de cancelar o tombamento, passando por cima de parecer de órgão técnico competente para manifestar-se (cf. Carlos Augusto A. Machado, 1987: 35).
Não nos parece procedente a crítica, tendo em vista que o dispositivo só autoriza o cancelamento 'por motivos de interesse público', o que exige motivação, contrastável perante o Judiciário, por parte do Presidente da República. Se é verdade que a proteção do patrimônio cultural é dever do Estado precisamente pelo seu interesse público, não é menos verdade que esse interesse pode, em determinado momento, conflitar com outros, também relevantes em merecedores de proteção; um deles terá de ser sacrificado, a critério da autoridade a quem a lei conferiu o poder de decisão" (Direito administrativo, Atlas, 2008, p. 133).
A lei regente (Lei Municipal n.º 1.202/74), todavia, não faz prescrição pontual; quando muito afirma que "as legislações federal e estadual serão aplicadas subsidiariamente pelo Município" (art. 26). De qualquer modo, parece suficiente para que o Chefe do Executivo Municipal possa, do mesmo modo, levantar a proteção especial (Antonio A. Queiroz Telles, Tombamento e seu regime jurídico, RT, 1992, p. 84).
Enfim, ainda que haja dura crítica, sobretudo capitaneada pela doutrina em torno da discricionariedade do Chefe do Executivo em cancelar o tombamento, na prática há albergue normativo. De qualquer sorte, o que se tem afirmado é que haverá, por óbvio, de privilegiar-se o interesse local (Heraldo Garcia Vitta, Tombamento: uma análise crítica, em Revista trimestral de direito público, v. 31, jul-set.2000, Malheiros, p. 174).
Esse interesse, todavia, não parece simplesmente justificado em identificar-se alguma necessidade, sem relação direta com as razões que autorizaram o tombamento. Em regra o que se exige é que o bem tombado já não mantenha mais aqueles elementos informadores do tombamento. Conforme adverte Gina Copola, "é plenamente possível o desfazimento do tombamento desde que não exista mais a fundamentação ou o motivo para a manutenção do instituto sobre determinado bem" (Tombamento: algumas relevantes considerações, em Fórum de direito urbano e ambiental, n. 33, mai-jun/2007, Editora Fórum, p. 47).
Parece ser a providência mais prudente. Afinal, se o tombamento destina-se a proteger determinado bem em face do interesse que presta à memória ou ao bem-estar coletivo, somente a perda desses caracteres é que justifica, de modo razoável, o cancelamento da restrição. Eventualmente, contudo, haverá de se considerar algum outro interesse, mas desde que se revele então imperativo, suficiente a justificar o sacrifício do patrimônio que desfruta da proteção especial.
Não é o caso. Na espécie, aliás, o que se pretendia era eventual alteração do traço da rua em face da modificação do passeio, o que implicaria no recuo do "muro".
Não ignoro que se pretendia alguma melhoria local; o que me afigura claro é que a decisão foi tomada sem apuro técnico, agitada, de certo modo, com algum amadorismo. Lembro que a decisão de derrubar o "muro" decorreu de discussão que tomou pauta em reunião do IPUF (o Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis), em que o próprio presidente da Cotesphan (entidade aqui também demandada) posicionou-se contra, tendo em vista que o recuo do muro atentaria contra o bem protegido. É de certo curioso, aliás, que judicialmente a Cotesphan tenha afirmado o portal como algo dispensável.
A "reconstrução do muro", aliás, foi muito discutida naquela ocasião, cuja votação terminara em empate, revelando por alguns dos presentes não só a falta de sensibilidade com a obra, mas a pouca familiaridade com a conservação do patrimônio tombado, como se a reconstrução da obra fosse algo plástico, de natureza meramente administrativo, o que ensejou no momento desvelada oposição de alguns dos participantes (daí em princípio ter-se definido, na mesma reunião, que a reconstrução do portal recuado não prestigiaria a forma anterior - apenas o conjunto arquitetônico - seguindo assim recomendações internacionais, e assim evitaria o "engano histórico" - fl. 62).
De fato. A comparar-se simbolicamente a representação daquela obra com o que normalmente sucede no campo religioso em relação às suas imagens e representações, a tentativa de reconstrução é algo profano. Bem por isso, conforme lembra Marshall Sahlins, que a maioria das culturas se opõe à "reforma" de obras históricas, cuja única exceção de maior expressão se vê na cultura xintoísta - que ainda assim concebe a reconstrução de monumentos cumprindo os rituais antigos, empregando os mesmos materiais e instrumentos (A cultura japonesa está sempre em transformação, em Esperando Foucault, ainda, Cosac Naify, 2004, p. 13-14). O que se quer dizer com isso? O óbvio, creio: o bem tombado está sempre para além de sua alvenaria. O que se mantém não é só a forma, mas o simbolismo que ele representa. A reconstrução é então a construção de nova forma, sem ligação simbólica com a obra original, de caráter puramente burocrático. Em dado panorama, o imóvel, portanto, restaria desfigurado, pois em termos práticos se suprimiria a sua fachada, pois, independentemente da reconstrução das formas originais ou de qualquer outra que viesse a privilegiar o "conjunto arquitetônico" não haveria possibilidade de resgate histórico. O que se vende a partir daí é a ideia de preservação do patrimônio apenas pela manutenção formal da obra, sem nenhuma relação material com sua concepção original e com sua história - algo que certamente causaria arrepios ao seu criador, homem dado que era também, ao estudo antropológico.
Diante desse cenário, talvez alguma avaliação técnica poderia revelar a necessidade imperiosa de supressão do muro para proteger-se algum interesse público de maior projeção no local, mesmo que o bem tombado mantivesse ávido seus predicados (sobretudo os que ensejaram o tombamento). Mas nenhum estudo técnico se fez, ao contrário o belo trabalho de catalogação realizado ao tempo do tombamento (veja-se as justificativas em fls. 24 e 29-33). Agora, a decisão tinha sabor estritamente burocrático, um apelo protocolar.
A falta de motivação idônea, aliás, ficou mais evidente no desdobrar da ação, permitindo concluir sem sobressaltos que, por ora, o interesse a preponderar é de fato a proteção do patrimônio cultural, arquitetônico e histórico. Prova bem palmar disso, aliás, diz respeito ao Decreto n.º 7.660/09, com o que o Município postulou a extinção da Popular. Dele serviu-se a Municipalidade unicamente para revogar o Decreto precedente (n.º 133/99), que declarou de utilidade pública área de terras de propriedade de Odete Ramalho - a proprietária do bem protegido.
Com a edição do Decreto n.º 7.660/09 o Município revisou discricionariamente a desapropriação, revelando o seu desinteresse em levá-la a cabo (bem por isso postulou a extinção do feito expropriatório). Por essa medida se pode concluir que eventual interesse em despojar o imóvel de sua especial proteção esvaiu-se com a retratação, pois a edição do Decreto ainda vigente - o de n.º 61/99 - deu-se por uma única razão: permitir a subsequente desapropriação da fachada do imóvel.
Portanto, ainda que se possa admitir ao Poder Público Municipal a revisão do ato de tombamento, não há, até aqui, justificativa válida. Daí nada revelar-se mais adequado e oportuno que se assegurar a proteção.
Nesse particular, a intervenção judicial é providencial; afinal, nesse contexto, a utilidade do Decreto n.º 61/99 escapa à discricionariedade que se tributa ao Chefe do Executivo, e permite a revisão judicial. A propósito, não fosse pela revelada ausência de propósito da manutenção do decreto na quadra atual, observo que o Município não observou o procedimento necessário para promover o "destombamento".
Se pretendia inicialmente o Município alçar-se das prerrogativas do Presidente da República no que concerne ao cancelamento do tombamento, deveria, também, observar o procedimento que se impõe no âmbito federal; veja-se que, embora a decisão de cancelar tenha matiz discricionário, ela deve, invariavelmente, preceder de parecer do órgão técnico especializado. Conforme alerta José Afonso da Silva,
"O ato de tombamento é, porém, vinculado no sentido de que não severificará sem o parecer técnico do órgão competente, (IPHAN, (IBPC), ou entidade semelhante nos Estados ou Municípios), aconselhando a media. O ato está pois, vinculado a este parecer. Mas este não vincula a autoridade competente para emitir o ato de tombamento. Quer dizer: mesmo que seja pela expedição do ato, a autoridade goza de competência discricionária para examinar a conveniência e a oportunidade" (citado por Antonio A. Queiroz Telles, op. cit., p. 72-73).
Se o parecer é imperativo (mesmo que não vinculante) à afirmação do tombamento, o mesmo regime se deve apontar quando de seu cancelamento, sem o que o Administrador poderia, livremente, dispor da propriedade especialmente protegida a seu sabor, contexto em que substituiria a discricionariedade pelo arbítrio.
Disso, por certo, não se cuidou; o Município, aliás, justifica a mitigação do tombamento a partir de reunião feita no IPUF, sem maior apuro técnico para detectar a propriedade de medida tão gravosa.
No mais, o que se trouxe aos autos é por si bastante para evidenciar que o imóvel mantém as qualidades que lhe permitiram o status tributado pelo tombamento: apesar de sofrer principalmente com a longevidade e o tímido interesse dos órgãos de proteção, o imóvel por si causa deleite àqueles que têm ou tiveram o privilégio de conhecê-lo. O "muro" de que se fala é, na verdade, um belíssimo portal, que confere à propriedade uma atmosfera bucólica, bem harmonizada com a vegetação ali ambientada. O desenho arquitetônico é inspirador, característico de tempos mais contemplativos (a arquitetura é própria das décadas de 1940-1950). O imóvel, enfim, é uma coisa só, um todo em si. Deliberadamente mutilá-lo com a supressão do portal, a que insensivelmente se nomina simplesmente de muro é, para além do simples descaso com o patrimônio e o conjunto arquitetônico, um ato de crueldade contra a memória histórica da cidade, um ato de autofagia cultural. Somente desvelado interesse público ou necessidade incontestável poderia justificar lançar opacidade ou apagar aquele belo cenário arquitetônico.
Há mais a considerar. Ainda que não conste documentos precisos sobre os fatos, noticiou-se em algum momento que o tombamento não se deu compulsoriamente, como de regra; neste caso, a família o fez. Segundo a ata de reunião organizada no IPUF, em que se discutia o destino da fachada daquele imóvel, uma das arquitetas convidadas lembrou aos presentes que o tombamento "foi um pedido voluntário, e que a família quis presentear a cidade com a preservação da residência do ilustre historiador catarinense" (fl. 60). Não fosse pelo revelado altruísmo da proprietária do imóvel - o tombamento voluntário, para dizer pouco, exige considerável dose de elevação e desprendimento - fala-se em patrimônio que resguarda boa parte da história catarinense, e com ele a memória de um dos seus mais ilustres e brilhantes filhos, o Prof. Oswaldo Rodrigues Cabral. Conhecido historiador, co-fundador da Faculdade Catarinense de Filosofia, fundador do Museu de Antropologia e parlamentar. E ali, onde foi seu refúgio, repousa hoje seu grande legado: sua casa era também seu escritório; foi ali que o historiador, num trabalho que transformou em prazeroso passatempo, ajudou a reconstruir o passado histórico deste Estado e de seu povo (Jornal O Estado, de 11.10.78 - fl. 34). Resguardá-lo em sua integridade significa, antes de tudo, manter viva a rica biografia do historiador, e principalmente proteger os frutos de uma longa vida dedicada à memória de nossa gente e à historiografia do Estado de Santa Catarina.
Assim, voto pela reforma da sentença, para prover o pedido inicial, e impedir qualquer alteração do patrimônio tombado a partir dos contornos do Decreto n.º 61/99, dada sua visível falta de aprumo técnico, e que por tal razão declaro nulo.
Remanesce a análise do recurso do autor, limitado unicamente à petição de honorários.
A sentença não fixou a honorária; a bem da verdade, sequer mencionou-os. De toda sorte, são eles devidos.
Como bem se sabe, o litigante vencido submete-se à sucumbência. Por força do primado da causalidade, quem dá causa à demanda submete-se aos seus rigores. E o mesmo se dá em sede de ação popular. A propósito:
"PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO POPULAR. EXTINÇÃO POR PERDASUPERVENIENTE DE OBJETO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE. CABIMENTO.
1. No caso concreto, tem-se ação popular que foi julgada extinta sem resolução de mérito por perda superveniente do interesse de agir em razão da anulação, pela própria Administração Pública, do ato impugnado. A extinção ocorreu antes da triangulação do feito, ou seja, antes mesmo da citação da parte recorrida.
2. No entanto, pelo princípio da causalidade, que rege a temática dos honorários advocatícios, responde pelos ônus da sucumbência aquele que deu causa à demanda - no caso, considerando o exercício da autotutela administrativa no mesmo sentido do que foi propugnado pelo autor-recorrente, fica evidente que a causa da ação é de responsabilidade dos réus apontados, a quem compete arcar com os honorários, independentemente do julgamento sem resolução do mérito.
3. Ganha relevância, ainda, o fato de que, apesar de não ter havido a citação dos réus, os mesmos chegaram a ser intimados do teor de medida liminar.
4. Recurso especial provido, devendo os autos retornarem à origem para a fixação de honorários advocatícios" (REsp 916.611/SP. Segunda Turma. Rel. Min. Mauro Campbell Marques. Decisão de 02.09.10).
Pois bem. Nada obstante tenha que se afirmar a sucumbência, não é, por certo, o caso de "julgar", ainda que hipoteticamente, a causa. Há, evidentemente, a necessidade de mensurar-se o contexto para então tributar os honorários, mas sem que isso implique na análise objetiva do processado.
A propósito, a ação data de 1999, chegando a termo (em primeiro grau) apenas em maio de 2010. Seguem, então, doze anos de trânsito da ação, onde o causídico manteve a diligência ordinária. No mais, observo que não se chegou a produzir provas de maior complexidade, bem porque a necessidade de eventual perícia esbarrou na revogação do decreto de tombamento.
Destaco, por fim, que se tributou à causa o possível valor do bem à época (R$ 87.500,00, fl. 18), e que, por outro lado, há que se observar os contornos do art. 20, sobretudo no que respeita à oneração da Fazenda, que figura, naturalmente, demandada neste feito (dividem o polo passivo o Município e o Conselho Técnico do Patrimônio Histórico, Artístico e Natural - Cotesphan). Considero, no mais, que ao autor a ação popular perdeu sua natural vocação com o pedido de extinção do Município, sem que tenha atentado à permanência do Decreto n.º 61/99, que se manteve íntegro até então. Lembro que apenas por força da remessa é que a situação se vê, enfim, remediada.
Dadas estas variáveis, que a bem da verdade servem apenas para orientar um julgamento que é, por excelência, de feição subjetiva, tenho por bem fixar a verba em R$ 5.000,00 (cinco mil reais).
3. DECISÃO
Ante o exposto, a Câmara decidiu, por votação unânime, reformar a sentença em sede de remessa necessária, e dar provimento ao recurso do autor.
O julgamento, realizado no dia 5 de julho de 2011, foi presidido pelo Exmo. Sr. Desembargador Newton Janke, com voto, e dele participou o Exmo. Sr. Desembargador Cid Goulart.
Lavrou parecer pela douta Procuradoria-Geral de Justiça a Exma. Sra. Dra. Vera Lúcia Ferreira Copetti.
Florianópolis, 5 de julho de 2011.
Ricardo Roesler
Relator
Fonte: PORTAL DO TJ/SC
Um comentário:
q coisa ruin
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