Juíza: operação no Alemão é "verdadeira enganação"
"Uma
verdadeira enganação". Esta foi a definição encontrada pela secretária
do Conselho Executivo da Associação de Juízes para a Democracia (AJD),
Kenarik Boujikian Felippe, para a resposta das forças de segurança à
onda de violência no Rio de Janeiro. A magistrada, que é titular da 16ª
Vara Criminal de São Paulo, considera equivocada a maneira como o
tráfico de drogas está sendo combatido. Para ela, só a base da pirâmide
está sendo atingida.
"O que se vê é a prisão dos pequenos. Para se
ter um efeito real, é preciso combater os que estão lá em cima. Os de
baixo são substituíveis", afirma, destacando que "a ponta de cima" é o
empresário que ganha muito dinheiro com o tráfico. "Esse é intocável".
A
juíza condena ainda os casos de violação de direitos humanos que
começam a vir à tona após as ocupações, sobretudo, do complexo do
Alemão, e o tratamento que parte da imprensa tem dado às operações
policiais. Os dois assuntos foram alvos de críticas da AJD, que, no
início da semana, divulgou nota repudiando "a naturalização da violência
ilegítima como forma de contenção ou extermínio da população indesejada
e também com a abordagem dada aos acontecimentos por parcela dos meios
de comunicação de massa que, por vezes, desconsidera a complexidade do
problema social, como também se mostra distanciada dos valores próprios
de uma ordem legal-constitucional".
- O papel da imprensa é trazer
dados, informações para que as pessoas reflitam. Se você não mostra os
fatos sob o ângulo da violação - que, infelizmente, está acontecendo -,
se você vende uma imagem de que aquilo é uma solução, faz um desserviço.
Confira a entrevista.
Por que a AJD decidiu se manifestar?
A que a senhora se refere exatamente?
Em
síntese, o que a imprensa está noticiando é que isso (Estado policial)
vai resolver o grande problema que existe no Rio. E é uma situação mais
complexa, que não vai se solucionar com a entrada da polícia, do
Exército, da Aeronáutica e o que mais seja. Tem que haver um projeto de
país, de comunidade, de estado, de município e o que existe é uma
verdadeira enganação. E a imprensa está corroborando para isso, ao invés
de ajudar a melhorar a situação, ajudar a resolver efetivamente o
problema grave que existe no Rio e que tem uma população que está
submetida à violência do Estado, submetida à violência das milícias e de
pessoas envolvidas no mundo da criminalidade... A população é quem
sofre e vai continuar sofrendo e o problema não vai se resolver.
Ou
o Estado "ocupa" aquele território, e ocupar não significa colocar um
imóvel onde vão ficar policiais. Ocupar no que diz respeito à função
própria do Estado: colocar vários postos de saúde, urbanizar, cuidar do
saneamento básico. Isso é uma coisa que leva tempo.
Fora isso, é
preciso combater a criminalidade, mas de forma séria. O que se vê é a
prisão dos pequenos. Para se ter um efeito real, é preciso combater os
que estão lá em cima. Os de baixo são substituíveis.
Quando a senhora fala dos "que estão em cima" quer dizer aqueles que não vivem nas favelas, mas nas áreas nobres?
Que
não vivem nos morros, mas ganham muito dinheiro com o tráfico de
drogas. E onde está esse dinheiro? O tráfico é um mercado poderoso, mas
não para aqueles que estão ali embaixo. São empregadinhos. E digo que
são descartáveis. Hoje, são presos 100. Amanhã, entram mais 100. A
polícia tem que agir, investigando de onde vem, para onde vai o
dinheiro, qual é a fonte.
Então, na avaliação da senhora, o combate ao tráfico no Rio está sendo feito parcialmente, apenas de um lado?
Do
lado mais baixo da pirâmide que envolve o tráfico. O que estão "lá
embaixo" são o que chamamos de aviões, mulas, pequenos vendedores. A
ponta de cima é o empresário que ganha muito dinheiro com isso. Esse é
intocável. A imprensa não usa uma linha para sequer explicar e vende a
ilusão para a população de que o problema está sendo resolvido.
Em relação às últimas operações policiais realizadas no Rio de Janeiro, quais os erros e acertos na avaliação da senhora?
Acertos?
Sinceramente, não consigo enxergar os acertos. Não consigo enxergar que
a violação de algum direito fundamental possa ser acerto. Eles partem
de que pressuposto? Que os policiais podem invadir as casas. Meu Deus,
não é possível! Ou respeitamos a Constituição ou não.
Na
nota, a associação foi bem dura, ressaltando que, ao violar a ordem
constitucional, o Estado perde a superioridade ética que o distingue do
criminoso. Fica igualmente à margem.
Todos nós somos
atingidos por isso. Quando abro uma exceção de violação de um direito,
não estou violando só para aquele proprietário da casa na favela X, Y.
Na verdade, a violação é de todos nós. Admito a violação, só que não
podemos ser ingênuos de imaginar que esse Estado vai atingir outra
população. A violação direta é só para um tipo de população, a mais
pobre, a mais vulnerável. Vai me dizer que eles vão fazer alguma coisa
do gênero em algum outro local? Não vão.
Vamos falar bem
claramente: vão fazer uma busca e apreensão... Nem busca e apreensão.
Vão simplesmente entrar na minha casa, derrubar a porta para ver se há
alguma arma ou droga? Não vão fazer isso. Eu moro nos Jardins, aqui, em
São Paulo. É seletivo. Então, "só pode ser o pobre o grande inimigo do
Brasil", e as coisas não são assim. O que me incomoda muito é que a
imprensa reforça uma ideia que não tem o mínimo de veracidade, o mínimo
de racionalidade.
O que exatamente?
Toda
essa política de que vão entrar lá (no complexo do Alemão) e resolver o
problema, sendo que ele continua. E não é só no complexo do Alemão. Isso
não é algo que se resolve a curto prazo. Uma investigação séria demanda
um certo tempo, mas é necessário começar. Quem está ganhando tanto
dinheiro com o tráfico?
Tem que haver essa vertente de polícia,
de criminalidade. Acho que tem que haver mesmo, mas não nesse patamar
que estão colocando, que é absurdamente ridículo. O problema não vai
terminar nem diminuir. Estão vendendo uma imagem de que estão resolvendo
o problema e é mentiroso isso.
Qual seria o caminho mais apropriado?
São
dois caminhos básicos. De um lado, o Estado ocupa o território no
sentido de fazer as políticas que lhe competem dentro daquela
comunidade. Tem que ter uma cultura a ser criada e se cria essa cultura
através da garantia dos direitos. Educação, saúde... Quando digo
educação, refiro-me a um projeto para aqueles jovens. Qual expectativa
que eles podem ter de trabalho? É preciso investir nisso. É uma algo a
longo prazo, mas é preciso começar já. Estamos atrasados.
Ao mesmo
tempo é preciso ter uma política referente à área criminal que seja
efetiva. Hoje, eles podem prender mil. São pessoas consideradas
socialmente descartáveis. Amanhã, haverá outros mil para fazer a mesma
coisa. Agora, se você "quebrar" quem tem o dinheiro, quem está lucrando
com isso, aí se pode haver outra perspectiva. O que me incomoda é que a
política adotada não é séria e tem a seguinte caracterísitica: viola os
direitos da Constituição.
Como a AJD está acompanhando as denúncias de violação aos direitos humanos nas favelas ocupadas pelas forças policiais?
Agora
é que elas estão começando a aparecer. Na verdade, a imprensa ficou
vários dias jogando confete para as ilegalidades. Lá no Rio, há várias
organizações que estão começando a receber uma série de informações. Não
dá para desconsiderar toda essa realidade. É preciso que se dê
andamento. Até no Judiciário mesmo.
Fonte: http://www.jb.com.br
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