CONSTITUIÇÃO E PODER
O cerco a Hans Kelsen e a crônica de uma injustiça
Como todos sabemos, a história, sobretudo a História com letra maiúscula, é cheia de mistificações. Enaltecemos nossos heróis e desmerecemos nossos inimigos. Após a guerra, os vencedores são glorificados, mesmo em seus defeitos, enquanto os derrotados são desprezados até em suas virtudes. Winston Churchill sabia disso, quando, em meio a guerra, ao ser questionado sobre o que a História diria dele, previu com deliciosa ironia: “a História será bondosa comigo, pois eu tenho a intenção de escrevê-la[1]”.
José Saramago, no seu maravilhoso livro História do Cerco de Lisboa, conclui, por intermédio de um de seus melhores personagens, o revisor Raimundo Benvindo Silva, que, à exceção dos fatos reais, não existe história, mas apenas literatura. Ao início do romance, ao ouvir do autor de um livro sobre o cerco à cidade de Lisboa a advertência de que o seu livro era de História, o revisor Raimundo Silva, do alto de sua experiência, tendo sido encarregado de revisar inúmeros livros sobre História, irá contestá-lo com a seguinte distinção entre os fatos históricos e a História escrita: “senhor doutor, tudo quanto não for vida, é literatura. A História também, a História sobretudo, sem querer ofender”[2].
Muito bem. Entre as vítimas das fraudes e mistificações históricas, poucos sofreram tanta injustiça como, por décadas, vem suportando o nome de Hans Kelsen. Todo aquele que conhece o mínimo sobre a vida e a obra do pai da Teoria Pura do Direito confronta-se diariamente com falsidades e difamações perpetradas tanto contra a sua história pessoal quanto contra suas formulações teóricas. No Brasil, a falta de leitura e de conhecimento sobre a obra do grande jurista apenas incrementam a extensão e a profundidade das mentiras históricas contra ele assacadas. De fato, não é incomum encontrarmos alunos, profissionais e até mesmo professores de Direito que atribuem à sua teoria, por exemplo, ter conferido legitimidade à ordem jurídica nazista, isso quando não fazem pior, ao atribuir ao próprio Kelsen inclinações nazifacistas.
A ofensa já seria de todo extraordinária, não fosse o fato ainda mais surpreendente de Hans Kelsen, por sua origem judaica, ter sido um dos intelectuais mais perseguidos pelo Nacional-Socialismo de Hitler.
São muitos os atos de perseguição contra ele desferidos pelo Partido Nacional-Socialista (nazista). Com base na Lei de Restauração do Funcionalismo, foi demitido, com efeito imediato, do seu cargo de professor em 1933. Em 1934, mais uma vez por causa de sua origem judaica, é forçado a deixar a editoria da Revista para o Direito Público (Zeitschrift für Öffentliches Recht), que ele próprio fundara. Em fevereiro de 1936, perde a cidadania austríaca e alemã e passa a ser perseguido em toda a Europa, isto é, em todos os países em que o regime nazista tivesse influência.
Já reconhecido em todo o mundo (em 1936, já fora agraciado com o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Harvard e por outras universidades), Kelsen viu-se obrigado a deixar a Áustria e a Alemanha, tendo encontrado emprego na Universidade de Praga, graças ao apoio de Frans Weiss, professor de origem judaica como ele. Ao chegar em Praga, é do próprio Kelsen um dos relatos mais impressionantes da perseguição que o Nazismo implacavelmente lhe impunha, mesmo longe de Viena e de Berlim[3]:
“No dia de minha aula inaugural, o prédio da universidade estava ocupado por estudantes nacionalistas e por membros de organizações não estudantis de nacionalidade alemã. Precisei cruzar por uma brecha estreita essa multidão insuflada pela imprensa nacionalista alemã contra minha contratação para chegar ao auditório colocado à minha disposição pelo decano para minha aula inaugural. Como se constatou em seguida, esse auditório também estava ocupado pelas organizações nacionalistas. Os estudantes que haviam se inscrito na minha aula foram impedidos com violência de entrar no auditório. (...) Quando entrei no auditório, ninguém se levantou das cadeiras — era uma afronta direta, já que, segundo a tradição acadêmica, os estudantes tinham de se levantar à chegada do professor. Logo depois das minhas primeiras palavras, ressoou o grito: “Abaixo os judeus, todos os não judeus têm que deixar a sala”, com o que todos os presentes deixaram o auditório, onde fiquei sozinho. Tive de atravessar a mesma brecha entre os fanáticos que me encaravam com olhares cheios de ódio para voltar ao decanato. Ao fazê-lo, observei que muitos estudantes eram espancados e jogados escada abaixo. Eram muitos estudantes inscritos na minha aula, que haviam sido encarcerados em um auditório e agora eram jogados fora do prédio com violência.”
Kelsen só encontraria paz depois de emigrar para os Estados Unidos, tornando-se professor da Universidade da Califórnia, em Berkeley, onde viveu até a sua morte e que se tornaria, no dizer do próprio Kelsen, o último refúgio de um viajante cansado.
Contudo, pode-se dizer que a perseguição a Hans Kelsen não terminaria com a sua morte. Kelsen é perseguido até hoje pelas posições teóricas que defendeu. Na maior parte das vezes, por pura desinformação; em outros casos, indisfarçada má fé.
Não sou exatamente um kelseniano. Tenho algumas diferenças e dificuldades com algumas conclusões do grande pensador. Provavelmente, em tais diferenças, eu esteja errado. Mas são pontos importantes que não me permitem inscrever-me como um adepto da teoria pura. Entretanto, Norberto Bobbio, ele mesmo um neokelseniano, concluirá que em algum nível muito sutil de sua teoria pura, mais especificamente, no âmbito de sua metalinguagem, até o próprio Kelsen falharia em ser kelseniano, pois, tão cioso da pureza do método (Reinheit der Methode) quando afirma que toda ciência deve se limitar a dizer o que seu objeto é, e não o que ele deve ser, Kelsen acaba por pregar, contradizendo-se, no nível de sua metateoria do Direito, o que a teoria do Direito deve ser e não o que ela de fato é.
Em Kelsen, a ciência e o conhecimento devem ser sempre descritivos, nunca prescritivos. Em termos mais analíticos: Kelsen, como explica Bobbio, trabalha com três níveis de linguagem: a linguagem do Direito (que é prescritiva e pertence à autoridade do Estado que decide), a linguagem do cientista do Direito (que, segundo Kelsen, deve ser descritiva e pertence ao cientista do direito) e a linguagem da teoria da ciência do Direito (que, sendo conhecimento, deve ser também descritiva/explicativa e pertence ao teórico que tem por objeto a própria ciência do Direito). Contudo, como demonstra Bobbio, quando Kelsen, a partir da teoria da ciência do Direito, prescreve ao cientista do Direito o que ele deve fazer (limitar-se a dizer o que o Direito é) e não apenas o que o cientista realmente faz, Kelsen, por sua vez, como vemos, na condição de teórico da ciência, não está descrevendo o que o seu objeto de estudo (a ciência do direito) é, mas sim, prescrevendo o que ele deve ser. Nisso, segundo Bobbio, a contradição kelseniana. Como se vê, a pureza metódica acaba sendo abandonada pelo menos no nível da metateoria kelseniana.
Mas, sutileza teórica e ironia à parte, todos aqueles que têm o conhecimento básico da obra do grande jurista certamente já testemunhou centenas de inverdades, confusões e desvios que são, cotidianamente, praticados em nome de suas posições teóricas. É tão grande a montanha de anomalias praticadas contra a teoria pura, que a primeira tarefa de quem almeja defender as suas posições é a de separar o que de fato foi dito do que ele jamais defendeu.
Uma das mais impressionantes inverdades atribuídas a Kelsen, essa inclusive compartilhada no Brasil por alguns que se dizem kelsenianos, é a de que, em sua teoria pura, Kelsen teria afirmado que o Direito ofereceria sempre uma única resposta correta aos casos jurídicos controvertidos. Nada mais falacioso. Hans Kelsen, em verdade, tem um capítulo na segunda versão da seu Teoria Pura dedicado, precisamente, a dizer o contrário, isto é, dizer que, no máximo, o Direito oferece à autoridade encarregada da decisão para o caso concreto uma moldura onde ele pode subtrair, mediante um ato de vontade, uma de várias possibilidades: “Se por ‘interpretação’ se entende a fixação por via cognoscitiva do ato de interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o direito a interpretar e,consequentemente, o conhecimento das vária possibilidades que dentro dessa moldura exista[4].
Outra controvertida tese de Kelsen, origem de muitas críticas, é a sua defesa intransigente, aliás, de origem Kantiana, da diferença entre moral e direito. Vem daí uma das maiores inverdades contra Kelsen: a de que sua teoria teria dado sustentação e legitimidade ao Nazismo. Muito pelo contrário. A maior parte dos juristas nazistas aceitava de bom grado a submissão do Direito alemão a uma autoidentificada moral do povo alemão como a fé e moral do partido nacional-socialista. A fusão e a submissão do Direito à moral, portanto, além de uma enorme confusão teórica que persiste até hoje, só por si, não lhe acresce muito em legitimidade e justiça. De fato, aceita a submissão do Direito à moral, ter-se-ia depois que se questionar sobre qual moral estamos a falar, numa regressão ao infinito. Aqui como diz o próprio Kelsen, em outro maravilhoso livro (Was ist Gerechtigkeit?), muitas lágrimas e muito sangue já foram derramados em torno dessa questão: "o que é a justiça?" e, no máximo, podemos nos esforçar para ter melhores perguntas, jamais uma resposta definitiva[5].
Por outro lado, com o dizer que o estudo do Direito tem que observar o Direito como de fato ele é, e não como ele deveria ser, Kelsen jamais negou que o Direito sofresse injunções tanto da moral como da política (aliás, provocado pela incompreensão dos críticos, afirma-o expressamente), mas pregava apenas que o estudo de um objeto (o Direito) por uma ciência (a ciência do Direito) deveria concentrar-se no que ele de fato é, e não do que ele (o Direito) deveria ser idealmente.
Além das múltiplas explicações dadas pelo próprio Kelsen na sua Reine Rechtslehre sobre a importância da pureza do método, é interessante ouvir do próprio Kelsen o que lhe movia quando se viu obrigado a escrever a Teoria Pura, pois muitos dos seus problemas estão sendo cotidianamente ressuscitados: “O que chamou a minha atenção na exposição tradicional desses problemas foi a total falta de exatidão e fundamentação sistemática e, sobretudo, uma tremenda confusão dos questionamentos, a confusão permanente entre o que é o Direito positivo e o que o Direito deveria ser — seja qual for o ponto de vista valorativo — e a diluição da fronteira entre a questão de como os sujeitos deveriam se comportar segundo o Direito positivo e a questão de como eles efetivamente se comportam. A separação nítida entre uma teoria do Direito positivo e a ética, de um lado, e a sociologia, do outro, me parecia urgentemente necessária. Mas tarde (...) ficou claro para mim que a pureza do método era o objetivo ao qual eu tendia[6]”.
Não obstante a crítica dirigida a Kelsen, o fato é que a questão da separação entre Direito e moral está mais viva do que nunca. Para não ir muito longe em exemplos a favor de Kelsen, além do outro grande jurista do século passado, Herbert Hart, vemos hoje o mais respeitado dos filósofos, insuspeito em sua teoria sobre a moral, antes de tudo um defensor da democracia e do diálogo, ninguém menos do que Jürgen Habermas, que, desde o seu já clássico Faktizität und Geltung (vertido para o português como “Direito e Democracia”), vem repudiando o que, a seu juízo, representa graves conseqüências de uma indevida confusão entre normas jurídicas e normas morais[7].
Mas perguntarão: E se o direito for injusto? Kelsen ofereceu, com o exemplo de sua vida, resposta a esse problema com a qual, certamente, Habermas concordaria: numa ordem democrática, mude-se, ou anule, a norma considerada injusta, ou indevida, pelo parlamento, ou através do controle de constitucionalidade pela justiça constitucional, da qual Kelsen, não esqueçamos, pelos menos no modelo concentrado, foi um dos idealizadores à época da promulgação da Constituição austríaca de 1920.
Muito bem, mas, insistirão: E, na extraordinária situação, de a própria ordem jurídica como um todo ser injusta e sem possibilidade de modificação? Aí, a única solução é, provavelmente, fazer como Kelsen e, não podendo suportar nem mudar uma ordem jurídica que se apresenta desumanamente opressiva e injusta em seu todo, emigrar para um outro país.
[1] (No original: History will be kind to me for I intend to write it).
[2]J. Saramago. História do Cerco de Lisboa. SP: Companhia das Letras, 2000, p. 15.
[3] Autobiografia de Hans Kelsen. Tradução de Gabriel Nogueira dias e José Ignàcio Coelho Mendes Neto Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2ª Ed, 2011, p. 102.
[4] H. Kelsen. Teoria Pura do Direito. SP: Martins Fontes, 2006, p.390
[5] Citação no original: "Was ist Gerechtigkeit? Keine andere Frage ist so leidenschaftlich erörtert, für keine andere Frage so viel kostbares Blut, so viel bittere Tränen vergossen worden, über keine andere Frage haben die erlauchtesten Geister – von Platon bis Kant – so tief gegrübelt. Und doch ist diese Frage heute so unbeantwortet wie je. Vielleicht, weil es eine jener Fragen ist, für die die resignierte Weisheit gilt, daß der Mensch nie eine endgültige Antwort findet, sondern nur suchen kann, besser zu fragen.", in H. Kelsen. Was ist Gerechtigkeit?, Stuttgart: Reclam, 2000, p. 9.
[6] Autobiografia de Hans Kelsen. Op. cit., 2011, p. 42.
[7] J. Habermas. Faktizität und Geltung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1998, 704 p.
Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.
Revista Consultor Jurídico, 30 de julho de 2012
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