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domingo, 29 de julho de 2012

O governo não respeita as leis, mas exige que os contribuintes o façam





EDUCAÇÃO FISCAL
“O tributo tem de ser distribuidor de riqueza”



 

"Quanto custa o Brasil para você?" O "você" em questão é você mesmo, leitor, cidadão e contribuinte. A pergunta foi feita em março, como slogan, pela campanha anual da Justiça Fiscal promovida pelo Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional, o Sinprofaz. Desde 2009, coincidindo propositalmente com a época do ano em que brasileiros costumam correr para finalizar a declaração do Imposto de Renda, o Sinprofaz tem empreendido um esforço na direção do que qualificam como “educação fiscal” do cidadão brasileiro.

O mascote da campanha anual é uma formiguinha, carregando com dificuldade, nas costas, um pesado cubo inscrito com siglas como ICMS, PIS, IPVA, ITR, Cide, IR, IPI, IOF, Confins, CSLL, entre outros. A campanha, em todas suas edições, tem lançado um apelo sobre a necessidade de reformas no sistema tributário do Brasil, que, apesar da massiva arrecadação de tributos, está entre as 12 nações mais desiguais do planeta e amarga a 70ª posição na aferição do Índice de Desenvolvimento Humano em um grupo de 177 países.

O esforço vem justamente do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda, que representa agentes que se ocupam da cobrança dos créditos tributários da União. Para o órgão, pensar em mudanças no sistema tributário não está dissociado de combater a sonegação. Segundo eles, a injustiça social e a ausência de contraprestação estatal não justificam a sonegação. Pelo contrário, podem ser corrigidas justamente pelo pagamento de tributos. “O pagamento do tributo tem de funcionar como gerador e distribuidor de riqueza”, defende o procurador da Fazenda Nacional Allan Titonelli Nunes, presidente do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz) e também do Fórum Nacional da Advocacia Pública Federal.

Em entrevista à revista Consultor Jurídico, Titonelli afirmou que não é possível pensar em corrigir as mazelas sociais do país sem pensar antes na reformulação do sistema tributário. “Temos que refletir sobre isso se pretendemos ter um país que realmente alimente uma ideia de Justiça social.”

Da realização da Campanha Nacional da Justiça Fiscal, em março, até aqui, o Sinprofaz tem se ocupado também de mobilizações em favor do que qualificam como “descaso do governo federal” com as carreiras do sistema da Advocacia-Geral da União, que cobre as funções de procurador da Fazenda Nacional, procurador federal, advogado da União e procurador do Banco Central. “Cada real investido nos últimos dez anos na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) dá em torno de R$ 175 de recuperação no total. A PGFN se paga em 19 dias de trabalho”, disse Allan Titonelli, durante a entrevista, defendendo investimentos estruturais para que a PGFN possa exercer seu papel.

Titonelli é crítico da proposta de nova lei orgânica da AGU, que dispõe que os cargos de chefia nas consultorias não são exclusivos dos membros das carreiras da AGU. Ele advoga contra a iniciativa de se tratar honorários sucumbenciais como receita pública, reclamando a titularidade dos honorários advocatícios como direito legal e essencial dos agentes da advocacia pública em contencioso onde a Fazenda saia vencedora.

Sobre a questão do tributo como instumento de correção de injustiças sociais, Titonelli defende que a mudança de foco do modelo de tributação sobre o consumo para um modelo que incida sobre a renda e patrimônio pode levar a um primeiro e decisivo passo para transformar a política tributária brasileira. “Só assim poderemos promover um crescimento econômico e social equânime”, insiste.

Leia os principais trechos da entrevista:

ConJur — Em março, o Sinprofaz realizou mais uma edição da Campanha Nacional da Justiça Fiscal. O tema do combate à sonegação é pouco simpático para o contribuinte em geral. O esforço é convencer o contribuinte que, apesar da alta taxa de arrecadação e da ausência de contraprestação, ainda assim a sonegação não se justifica? 
Allan Titonelli Nunes — A campanha surgiu em 2009, fruto de um posicionamento crítico que a carreira tem tido em relação ao próprio governo federal, com a administração tributária como um todo, por conta de que, às vezes, muitos problemas do sistema tributário acabam recaindo em ações judiciais. Em certo aspecto, o procurador verifica que muitos cidadãos, muitas empresas deixam de pagar tributo pela complexa realidade tributária que enfrentamos. Verificamos que há boa fé, há boa vontade, mas erros ocorrem no pagamento ou na elaboração de uma declaração.

ConJur — Nesse caso, não há sonegação ativa.
Allan Titonelli Nunes — Exato. Somado a isso, há uma realidade que temos no país de questionamento quanto à carga tributária em relação ao PIB. Hoje, a carga tributária corresponde a 36% do PIB, o que acaba gerando uma grande concentração de renda, pelo aspecto de a dinâmica tributária ser incidente essencialmente sobre o consumo. Esse posicionamento crítico acabou se exteriorizando através da campanha, que vem com o mote da Justiça fiscal. E a ideia foi criar um dia, uma semana para debater e refletir sobre esses problemas do sistema tributário nacional como um todo, principalmente no que tange à educação fiscal, a reforma tributária e combate à sonegação.

ConJur — A escolha do mês de março não é aleatória, certo?
Allan Titonelli Nunes — Sim, é a época em que o cidadão tem essa sensação imediata de quanto ele está pagando de tributo como um todo. O Imposto de Renda é um tributo que atende muito a diversos princípios que entendemos como justificador da Justiça fiscal. A questão da seletividade, por exemplo. E também por ser um tributo sobre patrimônio, sobre a renda especificamente, o que traz mais Justiça.

ConJur — A intenção é sensibilizar o Poder Legislativo?
Allan Titonelli Nunes — Sem dúvida. Há uma série de exemplos nefastos que identificamos. Por exemplo, a questão da extinção da punibilidade pelo pagamento ou parcelamento do tributo. Até o período Collor, não se extinguia a punibilidade pelo pagamento ou parcelamento do tributo. Agora, com as mudanças na lei, há um outro conceito da instituição de punibilidade. Isso é, só haveria punibilidade do sistema tributário se a pessoa parcelasse ou pagasse o tributo até o oferecimento da denúncia. Depois, já não se teria essa possibilidade. Hoje, há previsão. Só que há um julgamento no Supremo para definir essa questão ainda, a questão da constitucionalidade. Um outro problema na esfera da sonegação envolve as empresas internacionais quando se instalam no país. Como não é obrigatório que elas informem o quadro societário completo, mas somente que tenham um representante legal no país, ocorre que muitas empresas de paraísos fiscais se instalam por aqui, deixando de pagar tributo. Aí não adianta querermos inscrever em dívida ativa porque, na verdade, é uma empresa fictícia, e não vai ter como fazer o redirecionamento da execução fiscal para aqueles que são os reponsáveis. Isso gera concorrência desleal e desemprego. Apresentamos um projeto de lei ao deputado federal Paulo Rubem (PDT-PE) que iguala as empresas nacionais às empresas estrangeiras. As empresas estrangeiras teriam os mesmos deveres que as empresas nacionais.

ConJur — A campanha parece focar mais em mudanças pontuais do que no apelo à reforma tributária mais ampla.
Allan Titonelli Nunes — Na verdade, falamos em reforma tributária, mas com a consciência dos problemas do federalismo brasileiro, principalmente das competências tributárias que são divididas na União, estados e municípios. Pautamos propostas que simplifiquem o sistema tributário. E uma das metas é justamente que o sistema tributário saia da incidência do consumo e vá para o patrimônio, modelo adotado pela maioria dos países desenvolvidos.

ConJur — Como impor educação fiscal a um contribuinte que arca com uma das maiores cargas tributárias do mundo e não dispõe de contraprestação por parte do Estado à altura do que paga? 
Allan Titonelli Nunes — Na verdade, a sociedade hoje não repugna a sonegação. A ideia é: “Nossa carga tributária é alta, a contraprestação estatal é pequena, então sonegar faz parte do jogo.” Combatemos essa distorção porque o cidadão comum é muito mais penalizado do que diversos outros segmentos da sociedade. O cidadão comum, de baixa renda principalmente, consumindo praticamente toda sua remuneração, aquele que ganha até dois salários mínimos, paga cerca de 50% de sua renda em tributos. Quem ganha acima de 30 salários mínimos paga cerca de 20% da sua renda em tributos. Então, temos que refletir sobre isso, se pretendemos ter um país que realmente alimente uma ideia de Justiça social.

ConJur — E a contrapartida a essa premissa seria...
Allan Titonelli Nunes — Quem tem mais, paga mais. E se todo mundo pagar, todos pagarão menos, criando a possibilidade de se diminuir a carga tributária. Esses são dois pontos que exploramos.

ConJur — É possível pensar nisso sem a perspectiva de uma reforma tributária?
Allan Titonelli Nunes — O mote da reforma tributária sempre é trazido por todos os governos, principalmente nos dois primeiros anos de gestão. O FHC encaminhou um projeto, o Lula encaminhou um projeto e a Dilma também acena na mesma direção. Como procuradores da Fazenda Nacional e como debatedores e estudiosos do assunto, marcamos a posição de que existe a relação entre a necessidade da reforma tributária e o enfrentamento da sonegação. Quem combate a sonegação é o procurador da Fazenda Nacional, que recupera os créditos em dívida ativa da União. E aí vale colocar os problemas que enfrentamos por conta da estrutura defasada que nos atende.

ConJur — Como o trabalho de vocês é comprometido por esse déficit de estrutura? 
Allan Titonelli Nunes — Em comparação com a magistratura, hoje cada magistrado dispõe de 19 servidores. O mesmo vale praticamente para o Ministério Público. Hoje, na PGFN, não dispomos de sequer um servidor para cada procurador. Os sistemas informatizados são pulverizados, não há ainda integração entre todo o sistema da Receita e o sistema da PGFN, apenas parcial.

ConJur — É uma questão de investimento? 
Allan Titonelli Nunes — Cada real investido nos últimos dez anos na PGFN resulta em cerca de R$ 175 de recuperação no total. A PGFN se paga em 19 dias de trabalho. E, apesar disso, não é raro ocorrer o desvio daquelas verbas que seriam para ser reinvestidas no órgão. O exemplo é o Fundaf. O Fundaf é um programa determinado para reestruturação da administração tributária. E parte do Fundaf é destinado para fazer a recuperação do crédito da PGFN. E, por previsão legal, todo esse encargo legal que é recolhido na hora que se inscreve débito em divida ativa da União — quando é ajuízada a execução fiscal pelo custo da movimentação da maquina administrativa —, era para ser revertida no órgão, para fazer dele um ente estratégico. E, na verdade, isso não tem acontecido. O governo, todo ano, tem feito o descontingenciamento do Fundaf, o que acaba tornando o órgão enfraquecido, não o dotando de todos os mecanismos necessários para exercermos o combate à sonegação e recuperar todos os créditos da União. Hoje, temos um estoque de juros da dívida ativa de R$ 800 bilhões. Se tivéssemos um órgão melhor aparelhado, certamente poderíamos recuperar um percentual muito maior desse espaço de divida ativa da União.

ConJur — E a questão dos programas de parcelamento?
Allan Titonelli Nunes — Apesar de o governo ter essa ideia de combate à sonegação, ele acaba tendo uma atitude meio contraditória. Tivemos primeiro Refis, Paes, Paex e agora Refis da crise. Se uma empresa, há cinco anos atrás, tivesse deixado de pagar todos os tributos e depositado o valor correspondente à dívida em um CDB ou na poupança e aderisse ao Refis da crise e efetuado pagamento à vista e integral, teria sobrado dinheiro na conta dela. Então, a lógica do governo, às vezes, acaba incentivando a prática de sonegação, na medida em que trabalha com parcelamentos reiteradamente, ciclicamente. Desse modo, muitas vezes, o contribuinte acaba optando por deixar de pagar o tributo e aderir ao parcelamento. E essa lógica na verdade tem que ser invertida.

ConJur — De outra forma, não valeria a pena pagar o tributo. 
Allan Titonelli Nunes — O pagamento do tributo não pode ficar sujeito a lógica do mercado. Tem que compelir, tem que haver mecanismos que façam o contribuinte cumprir com a obrigação. No caso das grandes corporações financeiras, se não houver uma multa, inclusão de juros em um patamar elevado, vai ser melhor para a empresa que tem um capital financeiro muito maior deixar de pagar tributo e ir para rentabilidade financeira econômica. E, então, só quando ela estiver no final de um processo judicial, realizar o pagamento. Porque a margem de lucro maior é no mercado. Desse modo, na verdade, o governo tem que trabalhar cada vez mais para favorecer o pagamento espontâneo do tributo com multas que realmente sejam educativas, no sentido de que não facilitem a vida da empresa, do cidadão, de ir pro mercado e ter um ganho maior do que pagar o tributo.

ConJur — As multas já parecem excessivas, até injustas.
Allan Titonelli Nunes — Para o cidadão, fica a sensação de que o “leão” é um pouco voraz, as multas são excessivas. Mas há uma razão de ser para a multa ser pesada para aqueles que não pagam o tributo no prazo legal. Poderia até haver exceções, como ocorre no processo penal com a exclusão da culpabilidade por diversos aspectos. Poderíamos pensar a exclusão da criminalidade desde que comprovada, vamos supor, por exemplo, em razão de dificuldades financeiras da empresa etc. O ponto é que a regra deve sempre privilegiar o pagamento espontâneo do tributo.

ConJur — Que práticas melhorariam os problemas do sistema tributário sem depender de uma reforma integral?
Allan Titonelli Nunes — Por exemplo, integralizar a política do ICMS. Hoje em dia, o Confaz não tem servido para quase nada, porque tem vários estados que estão desobedecendo, dando incentivos fiscais sem ter aprovação pelo respectivo órgão.

ConJur — Nosso modelo de federalismo tem um papel nisso, correto? 
Allan Titonelli Nunes — Sim, é o nosso modelo jabuticaba, em que os municípios têm autonomia que nem os estados possuem. O Brasil se construiu assim. Então, há necessidade de você adequar uma lógica municipal, estadual e federal para todas as questões nacionais. Não só referente ao sistema tributário, mas também à competência administrativa e legislativa de cada um desses entes.

ConJur — E aí entra a discussão do pacto federativo.
Allan Titonelli Nunes — Esse discurso deveria ser dotado de uma menor carga de regionalismo político. Sabemos que há forças políticas regionais que acabam contrariando determinados projetos porque estes não atendem os interesses do respectivo estado. Então, nesse aspecto, temos que rediscutir o federalismo tendo em mente que o fim, a meta, é o cidadão.

ConJur — Para o cidadão ainda é difícil entender o caminho entre a arrecadação e a contraprestação?
Allan Titonelli Nunes — Temos espécies tributárias que abarcam essa compensação direta. Temos as taxas, as contribuições de melhorias e, em certo aspecto, as contribuições sociais. As taxas e contribuições de melhoria são vinculadas à prestação específica de atividade estatal. E as contribuições sociais têm, no caso, uma destinação especifica, que é a seguridade social como um todo. Mas o que vemos é que o governo adotou uma prática que é perniciosa e um pouco descaracterizadora dessa ideia de se ter uma vinculação da contraprestação estatal específica.

ConJur — Como?
Allan Titonelli Nunes — A União acaba desvinculando a receita da sua respectiva destinação, o que resulta no arranjo orçamentário ao “Deus dará”. Uma lógica que descaracteriza a natureza dos tributos.

ConJur — Em alguns países, o contribuinte sabe que o imposto sobre propriedade é destinado, por exemplo, à escola do bairro. O que nos falta para termos essa transparência? Descentralizar a arrecadação?
Allan Titonelli Nunes — A transparência sempre é essencial e necessária para se verificar principalmente o caráter contraprestacional, mas nem sempre essa lógica é possível de ser implementada. Nosso sistema constitucional e administrativao foi pensando ainda dentro de uma visão de quando o país tinha 70 milhões de habitantes. Somos mais de 180 milhões hoje. Apesar da discrepância, o Estado brasileiro ainda é essencialmente prestador de serviços sociais, garantidor de saúde universal e habitação.

ConJur — Então, o problema não é a centralização administrativa?
Allan Titonelli Nunes — Eu acho que o problema não é a centralização. Com a Constituição de 1988, acabamos possibilitando a criação de muitos municípios insustentáveis. Então, têm municípios que vivem exclusivamente do Fundo de Participação de Municípios (FPM). O que não significa que estar perto da localidade do cidadão e saber dos problemas da dinâmica municipal não seja importante. Pelo contrário, é um fator agregador de participação política.

ConJur — E não seria também um fator de descomplicação da burocracia?
Allan Titonelli Nunes — A meu ver, não. A burocracia da União é muito menor e melhor resolvida do a que dos estados e municípios. Hoje, no âmbito geral, nós temos uma estruturação da administração público-federal melhor organizada do que a dos estados e municípios.

ConJur — Qual seria um primeiro passo pragmático em relação à melhoria de nosso sistema tibutário?
Allan Titonelli Nunes — Primeiro, desvincular a tributação com ênfase no consumo, o que traria maior Justiça social. Hoje, cerca de 75% da renda do país está concentrada nas mãos dos 10% mais ricos. Isso mostra claramente que o sistema tributário brasileiro está promovendo uma concentração de renda e que, apesar de ter havido o acesso da população de camada mais pobre, há alguns bens de consumo, esse distanciamento brutal entre os mais pobres e ricos ainda persiste. Penso que o sistema tributário nacional, como um todo, tem de desempenhar um papel social relevante de promover a igualdade social, de promover crescimento econômico e social equânime.

ConJur — Um cenário em que o tributo não seja apenas uma obrigação inconveniente e produza resultados para a sociedade.
Allan Titonelli Nunes — Sim. Um instumento até de correção de injustiças sociais. O que nos falta é buscarmos uma perspectiva mais ampla. Por isso, reitero que é essencial sair de um modelo voltado para a tributação com foco no consumo e mudarmos para um modelo que incida sobre o patrimônio, sobre a renda, que é o modelo adotado na maioria dos países.

Rafael Baliardo é repórter da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 29 de julho de 2012

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