Desde 1891, o estado brasileiro declarou-se laico. Até hoje, esse princípio não faz parte do ensino público
“Isso não é de Deus, menino”, adverte a educadora de uma escola estadual que tenta acalmar o adolescente indisciplinado. Edilene Ramos, 55, professora de língua portuguesa e pastora evangélica usa o conhecimento bíblico para lidar com “alunos mais rebeldes”. Em outra escola, da rede municipal, durante alguns anos a prece realizada pelos estudantes antes do início das aulas trazia o trecho: “Pai de infinita bondade, que os espíritos de luz protejam a nossa família…”. O teor da oração foi elaborado pela vice-gestora da escola,Leonora Maciel, uma espírita declarada.
Situações como essas são comuns em escolas públicas e colocam em xeque a laicidade do Estado, que foi estabelecida com a primeira Constituição Republicana Brasileira, em 1891. Seja por meio de símbolos expostos ou pelas atividades pedagógicas complementares, o discurso, que deveria ser neutro, parece ofuscado pelas ações de quem atua no ambiente escolar. Ao deixar transparecer suas crenças e valores religiosos, as escolas desconsideram o pluralismo religioso. E as rusgas na relação entre pais, professores e estudantes se tornam constantes.
Leonora trabalha com educação desde 1998. Conhece bem os embates religiosos entre os muros da escola. Hoje atua como vice-gestora da escola municipal Pastor Munguba, que fica no Jordão Baixo, Zona Sul do Recife. A escola realiza o ritual diário da prece. Até o final do ano passado, o Pai Nosso e a oração do Santo Anjo do Senhor, além da prece espírita criada por ela, na intenção de que todos se sentissem contemplados, eram professados antes do sinal tocar. “Ninguém é obrigado a fazer a oração e aconselho aos que não quiserem que permaneçam em silêncio”, conta. Mas, recentemente, os alunos se manifestaram contra essa atitude dela e pediram que apenas o Pai Nosso fizesse parte do rito.
Na escola estadual Professora Olindina Alves Semente, no Barro, região Oeste do Recife, os alunos dos 1º e 2º graus convivem com a imagem de Nossa Senhora de Lourdes há mais de 20 anos. Dentro de uma gruta de pedra que fica em um dos pátios da instituição, a santa foi instalada em homenagem a uma ex-diretora da escola que era devota. Alguns pais, normalmente os evangélicos, já reclamaram dessa presença católica, mas a gruta permanece intacta ao longo de duas décadas.
Ao mesmo tempo em que prega a neutralidade, o Estado não anulou certas representações devotas. Para a antropóloga Maria Edi da Silva, também não encontrou maneiras de lidar com a diversidade no ambiente escolar. O tema foi objeto de estudo de sua dissertação de mestrado Diversidade Religiosa na escola pública: um olhar a partir das manifestações populares dos ciclos festivos. O carnaval, as festas juninas e o ciclo natalino de três escolas localizadas no bairro do Jordão serviram de campo para a observação. “Verificamos privilégios da presença de símbolos religiosos em detrimento de outros, os católicos em detrimento dos afro-brasileiros, por exemplo”.
Para Maria Edi, professores e gestores impõem suas crenças de forma naturalizada sem levar em consideração que um “cidadão virtuoso” não é prerrogativa apenas da religião católica ou outras mais aceitas na cultura brasileira. “É preciso um olhar atento aos aspectos educativos familiares, nos quais a orientação religiosa se inclui. Se a família segue uma determinada orientação é necessário que a escola pública respeite e garanta aos indivíduos o direito de professarem seus credos”, afirma.
Professora de Língua Portuguesa da rede estadual de ensino há 21 anos, Edilene Ramos, 55, é pastora evangélica e trabalha na Escola Professora Olindina Alves Semente. Por causa de problemas nas cordas vocais, está afastada da sala de aula e desempenha funções diversas na instituição. Conta que costuma lidar com crianças e adolescentes indisciplinados com base nos preceitos bíblicos, mas diz que não faz pregação. “Tenho cuidado para não ferir as crenças de ninguém. A intenção é conscientizar sobre respeito e amor ao próximo”, assegura.
A ausência de limites entre a fé dos educadores e a sala de aula também pode acarretar em situações de intolerância e discriminação. No início do ano, em São Bernado, na grande São Paulo, o pai de um aluno denunciou à Justiça a escola onde o filho estudava. O adolescente de 15 anos sofria bullying por recusar-se a participar da pregação evangélica da professora de história.Praticante do candomblé, o garoto começou a ser perseguido pelos colegas. A professora alegou que a pregação fazia parte de sua metodologia de ensino.
“A lei é clara ao proibir quaisquer forma de proselitismo nas escolas públicas. Os professores e diretores não podem submeter os alunos a práticas religiosas ou pregação. Fazê-lo configura uma agressão à laicidade do Estado”, defende o doutor em Antropologia Social e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Emerson Giumbelli. Pesquisador do tema e colaborador do Instituto de Estudos da Religião (ISER), pondera sobre a necessidade de se criar oportunidades igualitárias para as diversas matrizes religiosas. “Em razão da história nacional, os emblemas cristãos são
privilegiados. Muitos professores consideram que, sendo a maioria da população cristã, é legítimo privilegiá-la. No entanto, é preciso dar igual espaço a todas as religiões, além de possibilitar a expressão de ateus e agnósticos”.
A gerente de Políticas Educacionais de Educação Infantil e Ensino Fundamental da Secretaria de Educação do Estado, Shirley Malta, afirma que a conscientização dos profissionais que atuam na rede de ensino acontece de maneira gradual. “A religião católica é predominante em nossa cultura desde a chegada dos portugueses. O reconhecimento das demais, assim como a postura laica, que deve ser implantada nas escolas, faz parte de um processo maior de conscientização e mudança cultural. Essa é uma questão que não pode ser tratada por decretos nem por força da intolerância”.
o aluno invisível
O destaque de algumas religiões em detrimento de outras traz como consequência a invisibilidade e até o afastamento de muitos estuantes. Os evangélicos, no entanto, aparecem no grupo que mais grita por reconhecimento. Vitória Lohanna Santos, 11, cursa a 4ª série da Escola Municipal Antônio Correia, no Barro, e é seguidora da Assembleia de Deus. Há dois anos matriculada na instituição, ela nunca participou das festividades promovidas pela escola. “Em dia de ensaio ou de festa ela volta para casa ou até falta”,comenta a mãe, Fernanda Santos, 33. Adriely Ketully, 9, estudante da Escola Municipal do Jordão, região Sul do Recife, é outra que nunca comungou das atividades culturais promovidas pela instituição. “A menina evangélica não pode participar das festas juninas e do carnaval. E a escola não pode obrigar”, argumenta a mãe, Adriana Pereira, 29. Um levantamento feito pela pesquisadora Maria Edi, que também atua como vice-gestora da escola em que Adriely estuda, mostrou que cerca de 62% dos alunos da instituição são evangélicos e não frequentam as atividades culturais promovidas durante as festividades católicas.
A partir desses dados, a antropóloga e gestora mostra a necessidade do Estado observar a pluralidade religiosa no âmbito escolar. Assim, evitaria a invisibilidade de estudantes que não estão representados nas práticas pedagógicas com viés cultural. “A Secretaria de Educação do Estado e, mais notadamente a da Prefeitura do Recife, pregam uma política multicultural com base na garantia de direitos e respeito à diversidade. Mas como implementar uma política compartimentada, que não inclui os diferentes e trata todos como iguais?”, questiona Maria Edi.
O último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2010, mostrou o avanço dos evangélicos no território nacional. Depois dos católicos, que aparecem com 64,3% da população, eles ocupam a segunda posição na pesquisa, com 22,2%. O que equivale a 42,3 milhões de adeptos. Em 2000 o percentual era de 15,4%. O levantamento mostrou ainda que Pernambuco é o estado do Nordeste com maior concentração de evangélicos. Atualmente são 1.788.973. Os números demonstram o avanço dos protestantes nas esferas públicas, incluindo as salas de aulas.
Esse novo panorama é alvo de estudo para a antropóloga e professora da Universidade Federal de Pernambuco Roberta Campos. Ela enfatiza que por causa da origem protestante iconoclasta,os pentecostais fazem uma ruptura com o passado e veem religiões afro-indígenas, por exemplo, como demoníacas. “Como consequência, essa visão pode gerar conflitos de convivência e os pais evangélicos acabam proibindo os filhos de participar de atividades que envolvam visitas a terreiros ou quilombos, aulas de capoeira, maracatu ou festas juninas”.
Apesar do sentimento de estranheza que motiva a ausência dos estudantes evangélicos nas atividades de cunho cultural, alguns pais demonstram o desejo de inserir seus filhos nas práticas pedagógicas da escola, mas sem ferir os dogmas que norteiam suas vidas. Como professora do ensino fundamental, Fernanda, mãe de Vitória, reclama da falta de opções para a filha. “A escola não apresenta alternativa. Ou é isso ou é nada. Acho que a escola pública deveria atender as necessidades de todos os alunos”, defende Fernanda Santos.Adriana, mãe de Adryelle, faz coro e conta que já soube de casos em que filhos de amigas que fazem parte de sua congregação perderam nota por não participar de algumas atividades. Diretora de Ensino e Formação Docente da
Secretaria de Educação, Esporte e Lazer do Recife, Joana Andrade afirma que a instrução repassada pela gestão é de que escolas criem alternativas para todos os alunos, utilizando os espaços de leitura, por exemplo. “Também sugerimos aos profissionais que atuam nas escolas orientar os pais sobre a relevância das atividades culturais propostas para a formação dos seus filhos”.
Roberta Campos defende que as manifestações culturais, mesmo ligadas a uma tradição católica, não devem ser esquecidas para garantir a laicidade do Estado. Ela aponta como alternativa para promover a integração dos evangélicos no contexto das atividades escolares o estabelecimento de um diálogo esclarecedor sobre a importância cultural das comemorações e permitir que optem por participar ou não. “Por que não participar é tão perigoso assim? Às vezes penso que há uma ideia de viés nacionalista como se, não participando, você não seria um brasileiro completo”. O respeito, ela aponta, é o caminho mais seguro. “Devemos encontrar algum modo de conviver com a diferença. Ela não precisa ser escondida, camuflada, abafada. Acho que isso não resolve. Não educa”.
a cultura das aparências
Anualmente, as gestões da educação municipal e estadual enviam os fardamentos para os alunos matriculados na rede pública de ensino. O uniforme é composto por camiseta e bermuda. Ou calça jeans. A padronização do fardamento também tem despertado embates nas escolas. Meninas da Assembleia de Deus usam saia e os pais costumam procurar a direção dos colégios para fazer cumprir o dogma religioso. Como gestora, Maria Edi conta que já precisou mandar reformular o short de uma aluna a pedido da mãe. “Uma estratégia pontual e não institucional. Não há nenhuma orientação de como devemos proceder. Acho legítimo que haja umlevantamento de quantas crianças usam saia na escola”, pontua. Segundo ela, quando professores e gestores fingem não ver a religião dos alunos e dos seus pais, fica explícita a forma como lidam com a questão das diferenças. “Fingir que a singularidade do outro não existe é uma forma de preconceito e ausência de reconhecimento”, defende.
Para a dona de casa e sacerdote do candomblé Agda Lima, 27, em alguns casos a omissão das escolas podem até reforçar a discriminação. De 2011 para cá, ela já perdeu as vezes que procurou a escola estadual Áurea de Moura Cavalcanti, em Ouro Preto, Olinda, onde a filha estuda. Laís, 10, é xingada de “macumbeira” pelos colegas de turma porque leva no pescoço uma guia de Iemanjá. “Os professores só reclamam, mas não orientam os alunos e as ofensas continuam”, reclama Agda.
A Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional favore a valorização das tradições religiosas afro-índigenas-brasileiras como parte da formação do povo brasileiro. Mas a prática mostra que a adoção de tais medidas nem sempre eliminam a intransigência. “Embora existam propostas que atendam a necessidade do respeito à diversidade religiosa, em muitos casos isso não ocorre. Várias pesquisas apontam para situações de preconceito dentro das salas de aulas, especialmente em relação aos fiéis das religiões de matriz africana. Muitos professores são despreparados para abordar religiões
minoritárias. Nem sabem lidar com situações de intolerância religiosa”, analisa Emerson Guimbelli.
Roberta Campos diz que, dependendo do contexto social, a seta da intolerância pode mudar de direção. “Tenho notado que a presença de protestantes declarados em ambientes de maioria católica também gera conflitos. Nesses casos, a vítima do preconceito pode ser o pentecostal”.
Shirley Malta, gerente de Políticas Educacionais do Estado, afirma que a Secretaria de Educação nunca tomou conhecimento de casos de intolerância religiosa nas instituições que integram a rede de ensino. Ela assegura que o respeito às crenças dos estudantes é garantido no regimento interno das escolas assim como o modo de vestir e destaca a criação do “Projeto Legal: Contruindo cidadania, tecendo solidariedade”, que deve formar comitês de mediação de conflitos nas escolas.
Lenne Ferreira (texto) e Alcione Ferreira (fotos)
Fonte: Revista AURORA, DO DIÁRIO
DE PERNAMBUCO, VIA PAULOPES
Nenhum comentário:
Postar um comentário