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quarta-feira, 18 de julho de 2012

A mudança na jurisprudência alemã sobre vida privada



Otavio Luiz Rodrigues - 20/06/2012 [Spacca]A visão de Anita Ekberg, na famosa sequência da fonte de Trevi, é uma das mais instigantes cenas do filme La dolce vita, de Federico Fellini. Em um vestido preto, esvoaçante, mas colado ao corpo, a personagem Sylvia Rank, uma atriz americana, parece flutuar pelas águas, enquanto é incessantemente fotografada por um profissional de nome Paparazzo, que acompanha o jornalista Marcello Rubini, vivido por Marcello Mastroiani. Esse sobrenome tornou-se uma palavra universal — paparazzo —, a significar o indivíduo que caça celebridades e tenta, de todas as formas, registrar seus momentos íntimos e, com isso, satisfazer a sede incontrolável de informações absolutamente irrelevantes sobre alguns seres humanos, que renunciaram à vida privada em troca do luxo e do poder advindos do consumo popular da projeção pictórica, cinematográfica, musical ou política de suas próprias existências.
Os paparazzi estão no centro de polêmicas contemporâneas sobre os limites da busca pela informação jornalística e da exposição da vida de celebridades. A morte de lady Diana Spencer, a ex-princesa de Gales, após a perseguição desses profissionais (a maior parte free-lancers), é um ponto de referência nessas discussões, que hoje ocupam o centro de debates acadêmicos no mundo inteiro.
É curioso, mas esse é um problema bem mais antigo do que se supõe. É anterior mesmo à explosão do cinema nos anos 1930 e às cenas registradas por Federico Fellini em sua película de 1960. Se não é o primeiro, o caso do príncipe Otto von Bismarck, do final do século XIX, é importantíssimo por seu ineditismo e por sua similitude com tudo o que se vive nos dias atuais. Otto Eduard Leopold von Bismarck-Schönhausen Fürst [príncipe] von Bismarck e Herzog [duque] zu Lauenburg (1815-1898) foi o maior estadista alemão do Oitocentos. Ele unificou a Alemanha, após três guerras contra a Dinamarca, a Áustria e a França, governou o país em nome do kaiser Guilherme I e foi responsável por leis históricas (e pioneiras) em matéria previdenciária e trabalhista. Com a ascensão ao trono de Guilherme II, o homem errado na hora errada, Bismarck perdeu o cargo de chanceler imperial. Segundo alguns historiadores, antes de morrer, ele previu a eclosão da I Guerra Mundial, por causa de alguma “tolice cometida nos Balcãs”, o que efetivamente ocorreu com o assassínio em Saravejo, no ano de 1914, do arquiduque austro-húngaro Francisco Ferdinando, por um terrorista bósnio.
Mesmo após a queda do poder, Bismarck converteu-se em uma figura extremamente popular na Alemanha, com a arrecadação de fundos em todo o país para construção de estátuas em sua homenagem. Em Hamburgo, há uma famosa estátua do velho chanceler, conhecida comoBismarckdenkmal, que pode ser vista clicando-se aqui, erguida com dinheiro popular e contra a vontade do imperador.
Bismarck, para além da figura do chanceler e do legislador, associou seu nome ao que se pode chamar de “nascimento” dos direitos da personalidade no plano jurisprudencial e normativo, como se teve a oportunidade demonstrar no livro Direitos da personalidade, publicado em coautoria com Jorge Miranda e Gustavo Fruet.
Sua morte, em 1898, causou comoção nacional e tudo o que dizia a Bismarck respeito gerava interesse semelhante às grandes celebridades de nosso tempo. Em razão disso, dois jornalistas conseguiram entrar em sua câmara funerária, em sua residência, após terem subornado alguns criados, e fotografar seu cadáver, com o objetivo de vender as imagens. Toda essa aventura comprova que Bismarck pode ser considerado como uma das primeiras celebridades modernas. A negociação da imagem de seu corpo daria ganhos muito significativos a esses profissionais extremamente ousados, típicos paparazzi do século XIX. Os herdeiros de Bismarck processaram os fotógrafos e obtiveram uma injunção para impedir a divulgação das imagens, além da apreensão das chapas, dos negativos e das impressões. A decisão do Tribunal do Reich [Reichsgerichtshof], que foi de 28 de dezembro de 1899[1], às vésperas da vigência do novo Código Civil alemão,[2] usou como fundamento a entrada ilegal dos autores das imagens na propriedade particular de Bismarck.[3]
Sob forte influência desse caso, em 1907, a Dieta alemã [Parlamento do Império] aprovou uma Lei relativa aos Direitos Autorais sobre Belas Artes e Fotografias (KWG), na qual se exige o consentimento do titular da imagem para que sua reprodução seja lícita.[4] Algumas exceções são apontadas (parágrafo 23), como a participação em eventos históricos, o que dá margem a muitas controvérsias sobre o limite dessa situação excepcional; a imagem ser um mero acessório de uma paisagem ou de grupos de pessoas; a participação em procissões, cortejos, passeatas, greves e outros eventos de natureza multitudinária. No entanto, há ressalvas se, ainda assim, observar-se violação ao direito do titular da imagem ou de seus familiares, se ele já tiver morrido. Em seu parágrafo 22, a lei determina que, após a morte da pessoa cuja imagem houver sido reproduzida, seu uso dependerá de autorização dos parentes, fixando-se o prazo de dez anos para essa proteçãopost-mortem. Em larga medida, há aqui o reconhecimento da tutela de um direito da personalidade em relação a alguém falecido, o que não deixa de ser digno de registro, por se tratar de uma previsão legal inovadora para a época.[5]
Ao longo do século XX, a jurisprudência alemã sobre proteção à imagem e à privacidade foi se consolidando, o que veio a ocorrer de maneira definitiva com o pós-guerra e a adoção da chamada “teoria das esferas” (Sphärentheorie), cujo grande estudioso no Brasil é Wanderlei de Paula Barreto, cujos trabalhos exploram de maneira atualizada e fiel as construções jurisprudenciais alemãs sobre os direitos da personalidade. Em suas palavras: “A chamada teoria das esferas (Sphärentheorie) —esfera íntima intangível, esfera sigilosa e privada e esfera social — não resistiu à crítica da doutrina, fundamentada em dois argumentos: primeiro, o reconhecimento da existência de uma 'privacidade na publicidade', caracterizada pelo fato de alguém ter se recolhido em uma segregação espacial em que ele, de forma reconhecível, objetivamente, quer permanecer sozinho; segundo, porque o conteúdo e o alcance da 'privacidade na publicidade' não será determinado pelo titular do direito, ex ante facto, senão pela jurisprudência, ex post facto, consoante critérios objetivos-normativos que não poderão ser conhecidos pelo atingido, no momento em que ele necessitar da proteção da esfera privada, de tal modo que a incerteza jurídica acaba beneficiando o ofensor do direito".[6]
Essa posição foi abandonada graças a outro caso rumoroso, envolvendo também a aristocracia. Os antecedentes são os seguintes: a princesa Caroline de Mônaco casou-se com Ernst August Prinz [príncipe] von Hanover e passou a ter domicílio na Alemanha, país onde há um forte segmento da imprensa dedicada às celebridades. Ela foi fotografada em momentos de intimidade e suas imagens ganharam os jornais alemães.
Ela ingressou na Justiça e perdeu a ação no Bundesgerichtshof [Tribunal Federal equivalente ao nosso STJ]. Após isso, ela ajuizou uma reclamação junto à Corte Constitucional, que foi rejeitada por se entender que a publicação de fotos de Caroline, em ambiente íntimo, não implicava violência ao livre desenvolvimento da personalidade.[7]
Posteriormente, o caso foi levado ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos, que considerou ter havido violação do artigo 8º da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Segundo o TEDH, as fotos da princesa não foram tiradas em ambientes públicos e ela não estava em missão oficial. As pessoas, segundo a Corte, teriam expectativas legítimas, em certas situações, de proteção de sua vida, dado que existe uma “zona de interação” do indivíduo com os outros. Nesse sentido, mesmo em relação a uma pessoa pública, pode haver uma zona cinza envolvendo a vida privada, que a faz merecedora de proteção. Em suma, não existiria interesse público capaz de justificar a invasão da privacidade, mesmo que ela fosse uma “celebridade”. O interessante é que a Corte Europeia entendeu que ela não poderia ser considerada uma pessoa pública pelo simples fato de ela pertencer a uma família real.
Como resultado a matéria foi devolvida aos tribunais alemães, que passaram a adotar a “abgestuftes Schutzkonzept”, que pode ser traduzida por “sistema [ou conceito] de proteção por camadas [ou etapas]”.
Em 2008, o caso foi novamente para o Tribunal Constitucional, que manteve a decisão do Tribunal Federal, agora baseado no “sistema de proteção por camadas”. Esse novo modelo teórico tem, em linhas bem superficiais, a seguinte estrutura: a) a imagem da pessoa só pode ser divulgada com sua autorização; b) excepciona-se a regra quando a pessoa for relevante para a história contemporânea. Conceito esse desenvolvido na Lei de Direitos Autorais, Artes Plásticas e Fotografia, de 1907; c) haverá exceção à exceção quando a difusão da imagem lesar um interesse legítimo de seu titular.
Essa nova visão do problema subverte alguns postulados sobre a liberdade de imprensa e sua análise é importante para se comparar com a experiência brasileira, o que se fará na próxima coluna.

[1] RGZ 45, 170 (caso Bismarck).
[2] KLIPPEL, Diethelm; LIES-BENACHIB, Gudrun. Der Schutz von Persönlichkeitsrechten um 1900. In. FALK, Ulrich; MOHNHAUPT, Heinz (Hrsg). Das Bürgerliche Gesetzbuch und seine Richter. Zur Reaktion der Rechtsprechung auf die Kodifikation des deutschen Privatrechts (1896-1914). Frankfurt am Main: Klostermann 2000. p. 372.
[3] MIRANDA, Jorge; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; FRUET, Gustavo Bonato. Direitos da personalidade. São Paulo :Atlas, 2012. p.15
[4] A íntegra dessa lei está disponível em: http://www.gesetze-im-internet.de/kunsturhg/. Acesso em 18.11.2011.
[5] MIRANDA, Jorge; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; FRUET, Gustavo Bonato. Op. cit. p. 16.
[6] O ilustre professor paranaense é, sem favor, a maior autoridade no Brasil no assunto. Há diversos trabalhos publicados por ele, cito, porém, este mais recente: BARRETO, W. P. . Os direitos da personalidade na jurisprudência alemã contemporânea. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 41, p. 135-159, 2010.
[7] BVerfGE 101, 361, de 1999.
Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).
Revista Consultor Jurídico, 18 de julho de 2012

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