Divórcio à marciana
Na era dos vídeos virais e do Facebook, se Tom Cruise insistir em proteger a cientologia pode perder mais que sua 3ª mulher
07 de julho de 2012 | 18h 45
Lúcia Guimarães - O Estado de S. Paulo
"Como é que eu posso acreditar em Deus se, na semana passada, minha língua ficou presa na esfera da máquina de escrever elétrica?" (Woody Allen)
Andrew Kelly/Reuters
Ao processar o marido 'cientologista-mor', Katie Holmes joga a seita de Tom na centrífuga digital
Cientologia, a mais rica e controvertida igreja aparecida nos Estados Unidos nos últimos 50 anos, enfrenta, graças a um casamento desfeito, uma crise que pode decidir seu futuro. Ao mover um processo surpresa de divórcio contra o ator e cientologista-mor Tom Cruise, a atriz Katie Holmes jogou a seita na força centrífuga da mídia digital. A cientologia é objeto intermitente de ridículo e também protagonista do maior número de processos legais já movidos por qualquer instituição americana.
A diferença entre Nicole Kidman, a senhora Cruise número 2, que foi defenestrada de surpresa pelo marido em 2001, perdeu o bebê que esperava um mês depois e cujo silêncio sugeria intimidação, e Katie Holmes, a número 3, "auditada" especificamente como candidata a esposa e reprodutora por membros da seita, não é apenas a dificuldade atual de manter a disciplina através de segredos e chantagens. A cientologia tem sofrido deserções de membros importantes que lavam a roupa suja em websites. Uma série produzida por dois bravos repórteres do Tampa Bay Times na Florida, em 2009, expôs confinamento ilegal de apóstatas e uma unidade de inteligência que um documentário alemão compara à temida Stasi, da era comunista. Não é à toa que a Alemanha, com sua memória recente do nazismo e do comunismo, lidera o antagonismo contra a seita na Europa.
O movimento lançado no livro Dianética, em 1950, pelo medíocre autor de ficção científica L. Ron Hubbard - "a ciência revolucionária da mente humana" - , era um sarapatel de cretinices que misturava ficção, anticomunismo e, mais tarde, ensinamentos orientais. Começou como um pacote de autoajuda. Só se institucionalizou como religião em 1953. Hubbard escrevia cartas para o diretor do FBI, J. Edgar Hoover, denunciando supostos comunistas e oferecendo sua Dianética como arma de combate ao socialismo. Mas acabou agressivamente perseguido pelo FBI e passou os últimos seis anos antes da morte, em 1986, fugindo do governo americano.
O foco negativo da mídia no besteirol intergalático pregado por Hubbard se agravou quando seu sucessor, David Miscavige, assumiu o controle da operação que a revista Time chamou numa famosa capa de 1991 de O Culto da Ganância. E, é bom avisar, boa sorte para o jornalista que se aventurar por uma investigação da seita. Richard Behar, autor daquela capa, teve seu histórico de crédito revistado ilegalmente e enfrentou nada menos do que dez advogados e seis detetives particulares despachados pela máfia de David Miscavige, o capo apontado como o melhor amigo de Tom Cruise.
Não há um supermercado mais ativo de crenças religiosas do que os Estados Unidos do pós-guerra. O país produziu uma linhagem de humoristas à altura de seu fervor. De Mark Twain - "Os deuses não oferecem recompensa pelo intelecto" - a H. L. Mencken - "A fé pode ser definida como a crença ilógica na ocorrência do improvável" -, o zelo piedoso encontrou a pena afiada, sem esquecer o clássico personagem Mickey, de Woody Allen, em Hannah e suas Irmãs, que explica a um hare krishna por que precisa experimentar mais uma religião: "O catolicismo para mim foi: morra agora, pague depois".
A atriz Katie Holmes está sendo descrita na mídia americana como uma esposa stepford que fugiu do cativeiro para salvar a filha Suri, de 6 anos, da doutrinação da cientologia, marcada por isolamento social e uma educação muito aquém do currículo básico de escolas. Ex-membros da cúpula da seita revelaram como os dois filhos adotivos de Tom Cruise e Nicole Kidman, Bella, hoje com 19 anos, e Connor, com 17, foram alimentados de informação negativa sobre a mãe por membros da cientologia, em 2001. Muito se especulou sobre que informação obtida de Kidman em sessões gravadas de "auditoria" poderia ser tão embaraçosa para despachar a atriz em silêncio, sem os filhos, de volta para a Austrália.
O segredo e o clima de paranoia descritos em inúmeros depoimentos de pessoas que abandonam a seita - duas deserções recentes foram o pai e a sobrinha do líder David Miscavige - não podem mais ser mantidos na era da internet. Mesmo que use capangas para aparecer de surpresa com câmeras na porta de ex-membros, a cientologia não tem como controlar o fluxo de informação negativa e de denúncias como o uso de trabalho forçado de menores, que já chamou a atenção do FBI.
Um novo livro sobre a cientologia, do roteirista e colaborador da revista New Yorker Lawrence Wright, é esperado para este ano. O livro é baseado no artigo de 24 mil palavras que a New Yorker publicou em fevereiro de 2011, O Apóstata: Paul Haggis contra a Igreja da Cientologia. A reportagem de Wright narrava o desencanto e a repulsa do diretor de Crash e roteirista premiado com o Oscar por Menina de Ouro, que passou 34 anos envolvido com a cientologia. Haggis tem duas filhas lésbicas e, ao cobrar satisfações sobre o apoio financeiro à campanha contra o casamento gay, em 2008, começou a ler as histórias dos ex-membros online e descobriu um mundo de espancamentos, contratos de "1 bilhão de anos" com crianças e campos de "reeducação".
O racha público de Paul Haggis com a cientologia, que o livro de Wright vai trazer de volta, há de aumentar a pressão sobre celebridades que ajudam a manter o fluxo de caixa para a seita de apetite inesgotável. Tom Cruise foi a maior bilheteria do cinema de 2011, numa recuperação extraordinária de sua carreira que, no meio da década passada, havia sido afetada pelo comportamento lunático e a defesa da cientologia. Mas, na era dos vídeos virais e da militância via Facebook, se Cruise tentar proteger a cientologia pode perder mais do que sua terceira mulher.
Fonte: ESTADO DE SP
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