MÁRCIA SOMAN MORAES
DE SÃO PAULO

A Europa passa, nos últimos meses, por uma onda de projetos de lei para banir o uso dos véus islâmicos que cobrem todo o corpo e o rosto --a burca, ou niqab, que deixa apenas os olhos à mostra. O debate é justificado pela defesa do secularismo, pela igualdade da mulher e pela preocupação relativa ao terrorismo. No entanto, para analistas ouvidos pela Folha, tais projetos são uma jogada política para atrair os eleitores da ultradireita em um momento de crise.

Corão diz que mulher deve se vestir decentemente
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Na França, o presidente Nicolas Sarkozy apresentou nesta semana ao Conselho de Ministros seu projeto para vetar o uso do véu nas ruas. O líder francês, que viveu duro golpe nas eleições legislativas de março deste ano, diz considerar a vestimenta "contrária à dignidade da mulher".


Ahmad Masood/Reuters
Mulher afegã usa burca, véu que cobre todo o corpo e rosto; véu é comum no país, mas raro no resto do mundo
Mulher afegã usa burca, véu que cobre todo o corpo e rosto; véu é comum no país, mas raro no resto do mundo

Na Bélgica, que acaba de dissolver o governo por uma disputa entre as comunidades flamenga e francófona, os deputados aprovaram a lei que veta o uso da burca em espaços públicos.

Na Itália, a coalizão Liga Norte, aliada do governo de direita do premiê Silvio Berlusconi,
apresentou proposta de lei que estabelece prisão e multa às mulheres de burcas por uma questão de segurança e ordem pública.

Outros países, como o Reino Unido, Holanda e Alemanha, também aplicam ou estudam há anos vetos parciais ao uso da burca. Vale lembrar ainda o recente referendo suíço que proibiu os minaretes nas mesquitas do país.

Arte/Folha

"É um gesto completamente movido por política", diz Tariq Ramadan, professor de Estudos Islâmicos Contemporâneos da Universidade Oxford. "O que vemos é uma direita em queda de popularidade que tenta atrair eleitores e distrair os cidadãos com um debate polêmico".

Para Yvonne Haddad, especialista em relações entre cristãos e muçulmanos, a prova disso está nos números. Estimativas indicam que há cerca de 2.000 mulheres que usam o véu completo na França. Já na Bélgica, não há estatísticas, mas a comunidade muçulmana chega a um total de 400 mil muçulmanos, 4% da população.

"É uma tempestade em copo d'água", resume Haddad. "Se a questão é discutir a opressão da mulher e sua igualdade, há questões muito maiores, como educação e igualdade de oportunidades, a se discutir".

Liberdade

Um dos maiores e mais questionáveis argumentos em defesa ao banimento da burca é a libertação da mulher muçulmana, que seria oprimida ao ter que cobrir o corpo e rosto diante dos homens.

Os analistas afirmam, contudo, que não cabe ao Estado avaliar se as mulheres usam o véu como devoção a Deus ou por obrigação.

"A opressão está nos olhos de quem a vê. Muitas muçulmanas escolhem usar o véu em crença sincera de sua devoção e como parte de sua identidade muçulmana", diz Haddad.


Fotomontagem/Folha Online
Véu islâmico, obrigatório para as mulheres muçulmanas, está no centro de polêmica na Europa por sua versão mais radical
Véu islâmico das mulheres muçulmanas está no centro de polêmica na Europa por sua versão mais radical

Para aquelas que são coagidas a usá-lo, afirma, o banimento causará apenas mais isolamento e dificultará a busca por ajuda.

O veto à vestimenta vai contra o princípio de neutralidade do Estado, segundo o qual o governo não veta nenhuma visão religiosa, para que seus cidadãos possam ter a expressão livre de suas crenças na sociedade.

"Negar ao cidadão o direito de usar as vestimentas ligadas a uma religião qualquer destrói, e não protege, o secularismo no qual os Estados se constituíram, proibindo que as pessoas manifestem sua religião", afirma.

Segurança

A hostilidade ao traje é justificada ainda pela associação da burca com os braços mais radicais do islamismo, responsáveis também pela ameaça terrorista em solo europeu.

Quando a ameaça pode vir de qualquer pessoa, cria-se a necessidade de identificar a todo momento os indivíduos em aeroportos, transportes públicos e bancos o que, segundo os críticos, a burca não permite.

"O argumento é válido, mas a resposta, mais uma vez, é exagerada", afirma Haddad. A mulher de burca não pode mostrar o rosto a homens que não sejam de sua família, mas não há problemas em retirar o véu, reservadamente, diante de mulheres.

O tema é polêmico e o debate, apesar de ter ganho proporção estatal, é em seu princípio incoerente, conclui Ramadan. "Forçar uma mulher a permanentemente abandonar o véu em nome da proteção dos direitos é incoerente política e moralmente", diz. "Talvez tão errado quanto os regimes fundamentalistas islâmicos quererem coagir as mulheres a se vestir dessa forma".

O debate já chegou aos Estados Unidos. O presidente Barack Obama afirmou em discurso no Cairo, em junho passado, que não se pode disfarçar a hostilidade em relação a qualquer religião sob o pretexto do liberalismo.

"É importante que os países ocidentais evitem impedir os muçulmanos de praticar a religião como a vêem, como, por exemplo, tentando ditar quais roupas uma mulher muçulmana deve vestir. A fé deve nos unir".

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A liberdade religiosa, pelo visto, só vale para os cultos dominantes: católicos e protestantes.