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quinta-feira, 19 de julho de 2012

ALIANÇA BOLIVIARIANA PARA AS AMÉRICAS - Um novo modelo de integração para os novos tempos



Por meio da criação de organismos multilaterais, países da América Latina e do Caribe querem construir outros modelos de desenvolvimento e integração. Aposta-se em um processo de mudanças que abalem as velhas estruturas do colonialismo e construam um modelo em que a integração e a colaboração sejam pré-requisitos
por Maximilién Arvelaiz





As câmeras registraram quando o presidente Hugo Chávez, durante a 5ª Cúpula das Américas, em Trinidad e Tobago, presenteou seu homólogo norte-americano, Barack Obama, com um exemplar do livro Veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano. Tal gesto foi noticiado amplamente pelas agências de notícias internacionais como um ato “pitoresco” e provocador por parte do presidente venezuelano.

Diante de representantes de nações que, como conta o livro de Galeano, se especializaram em ser “serventes” e fontes de abastecimento de “necessidades alheias”, em consequência do subdesenvolvimento de seu próprio povo, Obama sugeriu que o passado fosse esquecido, pois ele e seu governo representariam um novo tempo nas relações interamericanas. O presente de Chávez nada mais era do que uma resposta a esse discurso de Obama, proferido durante a abertura da Cúpula.

A obra de Galeano é imprescindível para que não nos esqueçamos da história de saques, desigualdade e miséria a que fomos submetidos desde a colonização. O escritor uruguaio sintetiza muito bem esse passado: “A história do subdesenvolvimento da América Latina integra, como foi dito, a história do desenvolvimento do capitalismo mundial”.1

Passados três anos da entrega do presente − a julgar pela política externa da Casa Branca, fundamentada em guerras, apoio a golpes de Estado e permanência de bases militares espalhadas pelo continente −, concluo: Obama não leu o livro. Ou leu e entendeu que para assegurar a dominação dos Estados Unidos sobre as riquezas da região, onde ainda existem as maiores reservas de petróleo e água doce do mundo, é necessária a manutenção das velhas relações de dominação.

As últimas reuniões da Cúpula das Américas, em Cartagena (Colômbia), e da Organização dos Estados Americanos (OEA), em Cochabamba (Bolívia), mostraram que o sistema interamericano ainda expressa essa velha política, baseada no desrespeito à soberania e apoiada na chamada Doutrina Monroe (“América para os americanos”) e em um ineficiente modelo de integração que os Estados Unidos tentam impor desde a fundação da Cúpula das Américas, em 1994.

O que ficou claro nessas ocasiões − graças às posições políticas da maioria dos governos progressistas de nosso continente − é que a OEA, o Tratado de Assistência Recíproca (Tiar), a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e todo o sistema interamericano representam uma arquitetura jurídica cujo único objetivo é manter a dominação dos Estados Unidos sobre os demais países do continente.

À época da fundação da Cúpula, auge do neoliberalismo, relembremos, estava na pauta um esforço para a criação de acordos de livre-comércio que beneficiavam somente alguns setores deste enorme continente. O maior objetivo dos Estados Unidos era pôr em prática a Área de Livre Comércio das Américas, a Alca, derrotada antes mesmo de sair do papel, dado seu caráter injusto e unilateral. A 4ª Cúpula das Américas, em novembro de 2005, na cidade de Mar del Plata (Argentina), onde a proposta da Alca foi engavetada, representou um grande momento de inflexão desse velho sistema. Ali, os povos de Nossa América, representados por seus governantes e movimentos sociais, não só demonstraram um acúmulo de forças na luta pela soberania, comotambém anunciaram uma guinada política no continente, já iniciada em 1999, com a chegada do presidente Chávez ao governo da Venezuela, por meio de eleições democráticas.

Contra a dominação hegemônica, a Aliança

No ano anterior à Cúpula, em 2004, Venezuela e Cuba já haviam substituído os tratados de livre-comércio pela Alternativa Bolivariana para os Povos de Nossa América (Alba), uma proposta de integração que se baseia mais em princípios de solidariedade e cooperação do que somente em uma relação comercial. O acordo consistia principalmente na troca de petróleo, a principal riqueza venezuelana, por assistência médica, uma das principais contribuições de Cuba. Numa sociedade em que o “ouro negro” vale mais do que vidas salvas, setores conservadores, respaldados pela mídia mundial, acharam o acordo desvantajoso − para a Venezuela.

Esse tipo de relação, que rompe com esquemas economicistas e privilegia acordos políticos e sociais necessários para a promoção do bem-estar, faz que o comércio e o investimento, combinados com as estratégias de luta contra a pobreza, se tornem instrumentos para alcançar um desenvolvimento justo e sustentável.AAlba − que depois substituiu o termo Alternativa por Aliança, incluiu o Tratado de Comércio entre os Povos (TCP) e abrangeu Nicarágua, Equador, Bolívia, Dominica, São Vicente e Granadinas, Antígua e Barbuda − éa expressão de um projeto diferente, que se opõe ao fracassado modelo neoliberal em crise e representa a verdadeira integração soberana da América Latina e Caribe.

Os países da Alba-TCP lideram hoje um processo de transformação do sistema interamericano, construindo uma nova arquitetura, que tem como inspiração o pensamento de Simón Bolívar, principal expoente de uma geração de lutadores que sempre defenderam a integração continental autêntica, por meio da construção da Pátria Grande latino-americana. Os princípios dessa aliança são diametralmente opostos à lógica dos tratados de livre-comércio, já que favorecem cooperação e solidariedade em vez de competição e exploração; comércio justo em substituição ao livre-mercado; e recursos naturais sob proteção do Estado e para o bem-estar da população, não a serviço do lucro de empresas estrangeiras.

Infelizmente, reuniões de organismos multilaterais de que participam países da América do Norte mostram que as políticas de redução do papeldo Estado e os tratados de livre-comércio que privilegiam apenas um dos lados ainda encontram defensores no continente, apesar de seus efeitos devastadores na atualidade: milhares de desempregados, retrocesso nos direitos trabalhistas, aumento da pobreza e muitos indignados em Wall Street.

Não à toa, 33 países da América Latina e Caribe reuniram-se em torno da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), no ano passado, pela primeira vez sem a presença dos Estados Unidos e do Canadá e com a participação de Cuba. O presidente Hugo Chávez, um dos principais incentivadores do organismo, definiu muito bem aquele momento: “Agora é a hora da América Latina e do Caribe”.

A criação da Celac, assim como da Alba, da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e do Banco do Sul, por exemplo, só foi possível, gostaria de ressaltar, graças ao novo reordenamento geopolítico do continente. Governos progressistas, cujos representantes foram eleitos democraticamente, tentam forjar seus próprios modelos de desenvolvimento e integração. Apesar da diversidade de orientação política dentro do espectro ideológico e das especificidades culturais, a maioria tem um objetivo prioritário: a erradicação da miséria e da pobreza, dívidas históricas de um passado em comum − esse que não podemos esquecer, pois é também elemento estrutural de nossa união e integração.

O presidente Obama tinha razão em um ponto em seu discurso em Trinidad: é, sim, verdade que vivemos um novo tempo nas relações interamericanas. Mas, certamente, ele não é protagonizado pelo presidente norte-americano e seu governo. Vivemos outros tempos, diferentes daqueles em que empresas transnacionais dominavam os recursos naturais dos países latinos, lançando mão inclusive de golpes de Estado e deixando rastros de desigualdade social. Hoje, entra em confronto com esse modelo o projeto de recuperação da soberania, de emancipação dos povos e de unidade entre os países, todos princípios fundamentais da Alba.

Em sintonia com essa concepção, a Venezuela estuda sua saída da CIDH, ao mesmo tempo que incentiva a constituição de um organismo regional de defesa dos direitos humanos pela Unasul e a Celac. É importante lembrar que a CIDH, órgão subordinado à OEA, não só reconheceu as autoridades envolvidas no golpe de Estado venezuelano de abril de 2002, como foi incapaz de expedir uma medida cautelar a favor do presidente Chávez, naquela ocasião. Tal postura não condiz com o atual modelo soberano de nação defendido pela maioria dos governos do continente.

Pelo mesmo motivo, os países da Alba se retiraram, na última reunião da OEA, do Tratado de Assistência Recíproca, instrumento oriundo de um contexto de Guerra Fria, já ultrapassado e que nunca funcionou quando realmente necessário, como aconteceu no caso da guerra entre Argentina e Inglaterra pelas Malvinas. Na ocasião, os Estados Unidos se posicionaram contra a nação Argentina, a quem supostamente deveriam defender.

A posição da Alba contra o golpe de Estado em Honduras, em 2009, a luta pelo reconhecimento da Palestina perante a ONU, a exigência do fim do bloqueio econômico a Cuba, assim como a criação da Celac com a presença da Ilha (que segue excluída da Cúpula das Américas), representam respostas políticas às ingerências imperialistas e evidenciam a senilidade dos organismos multilaterais tradicionais.

O petróleo a serviço 
do bem-estar da população

Em 1971, ano da publicação de As veias abertas da América Latina, Galeano descrevia uma Venezuela totalmente diferente da que conhecemos hoje, depois de treze anos de revolução bolivariana. Da Venezuela, explicava Galeano, “provém quase metade dos lucros que os capitais norte-americanos subtraem de toda a América Latina”. A enorme desigualdade social consequente da exploração do petróleo pelo capital estrangeiro resultou no quadro descrito a seguir: “Esse é um dos países mais ricos do planeta e também um dos mais pobres e um dos mais violentos. Ostenta a renda per capita mais alta da América Latina e possui a rede de estradas mais completa e ultramoderna. Proporcionalmente à quantidade de habitantes, nenhuma outra nação do mundo bebe tanto uísque escocês. As reservas de petróleo, gás e ferro que seu subsolo oferece para exploração imediata poderiam multiplicar por 10 a riqueza de cada um dos venezuelanos; em suas vastas terras virgens poderia caber inteira a população da Alemanha ou da Inglaterra [...]. Desde que o primeiro poço de petróleo começou a jorrar, a população se multiplicou por 3 e o orçamento nacional por 100, mas boa parte da população, que disputa as sobras da minoria dominante, não se alimenta melhor que na época em que o país dependia do cacau e do café”.2

Hoje, as políticas de investimentos sociais, combinadas com desenvolvimento e crescimento econômico, resultaram numa diminuição da pobreza geral em 50% desde 1998, segundo dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). Ainda segundo a Cepal, a Venezuela bolivariana usufrui a distribuição de renda mais justa da América Latina3 − um cenário difícil de imaginar há apenas uma década.

Desde as eleições de Chávez, a administração do lucro do petróleo esteve a serviço dos venezuelanos. Ciente da condição de economia mais forte da Alba, a Venezuela transformou o produto em um dos principais combustíveis do motor do organismo, atuando de forma coerente com a política externa do governo, que tomou a decisão necessária de não mais virar as costas para os países vizinhos.

Fruto da decisão de colocar as pessoas como centro de sua ação política, econômica e social, as iniciativas dessa aliança vêm impactando positiva e diretamente a vida de milhares de cidadãos ao lograr reduzir a pobreza, o analfabetismo e a mortalidade de nossos povos. Os quase 2 milhões de pessoas que tiveram acesso ao tratamento oftalmológico gratuito por meio da Misión Milagro Internacional, por exemplo, viram concretamente os efeitos desse novo modelo de integração.

No campo da educação, outro dado impactante e pouco divulgado na imprensa de nossos países: quatro nações que integram a Alba − Venezuela, Cuba, Equador e Nicarágua − são reconhecidas pela Unesco como livres de analfabetismo, boa parte graças ao método cubano Sim, eu posso.

A participação popular é elemento fundamental da Alba, único organismo de integração que contempla um Conselho de Movimentos Sociais. A aliança permite o vínculo entre os movimentos sociais dos países-membros (e também daqueles que não são membros, mas se identificam com esse esforço), incentivando-os a contribuir com desenvolvimento e ampliação do processo Alba-TCP.

Uma nova arquitetura financeira também foi criada pelos países-membros da Alba, com o objetivo de dar sustentação aos 38 projetos agrupados em catorze atividades socioeconômico-financeiras nas áreas de educação, saúde, cultura, soberania alimentar, energia, transporte, ambiente, ciência e tecnologia. O Banco da Alba e o Sistema Unitário de Compensação Regional de Pagamentos (Sucre) foram criados para promover o comércio justo e a complementaridade econômica e diminuir a dependência do investimento estrangeiro. O principal desafio dessas instituições é construir a independência financeira e proteger-nos da crise do capitalismo mundial provocada, em grande parte, pela irresponsabilidade dos países do Norte.

Como prova de que esse modelo de integração democrático e soberano tem tido êxito, hoje os trabalhadores de nosso continente têm a sensação de que nossos filhos terão dias melhores, ao contrário do que percebem os trabalhadores dos Estados Unidos e da União Europeia, que, infelizmente, temem pelo futuro dos seus. De acordo com a Cepal e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), apesar das incertezas da crise, a taxa média de desemprego na América Latina e no Caribe caiu de 7,3%, em 2010, para 6,7% em 2011, “em níveis não vistos há muito tempo”, ressalta o relatório conjunto das instituições.4

Enquanto isso, dados oficiais do governo de Obama apontam um aumento do desemprego nos Estados Unidos: em maio, a taxa chegou a 8,2%. Na zona do euro, o número de desocupados bateu recorde: chegou a 11%. Torço para que as populações desses países não tenham de arcar, ainda mais, com o custo da crise de um sistema financeiro especulador e injusto.

Na América Latina e no Caribe, não queremos repetir os erros de um sistema que já se mostrou inadequado para os novos tempos. Busca-se, pelo contrário, a construção de um processo de mudanças profundas que abalem as velhas estruturas políticas, econômicas e sociais do colonialismo, em um modelo em que a integração e a colaboração continental sejam pré-requisitos para o desenvolvimento da região.



Maximilién Arvelaiz

é embaixador da República Bolivariana da Venezuela no Brasil.

Ilustração: Daniel Kondo




1 Eduardo Galeano, Las venas abiertas de América Latina [As veias abertas da América Latina], Imprenta Rosgal, Montevidéu, 2006, p.15.
2 Idem, p.262 e 263.
3 Anuário estadístico de América Latina y el Caribe 2011, Cepal, p.70.
4 Coyuntura laboral en América Latina y el Caribe: productividad laboral y distribución. Celac y OIT. Disponível em: <www.eclac.cl/id.asp?id=46824>.


Fonte: LE ONDE DIPLOMATIQUE

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