Geneticistas reconstruíram o DNA da bactéria que causou a epidemia mais mortal da história. Por que reviver esse monstro?
O século XIV foi terrível para a Europa Ocidental. A Inglaterra e a França se arruinaram na Guerra dos 100 anos. O clima global começou a esfriar, dando início à Pequena Era do Gelo (1400-1650), com a perda de colheitas e fome generalizada. Foi nesse cenário de penúria e desnutrição que eclodiu a Peste Negra. Entre 1347 e 1352, entre 30% e 50% da população da Europa Ocidental morreu na pandemia mais mortal da história. O total de vítimas no resto do planeta é desconhecido, mas a magnitude da catástrofe deve ter sido semelhante. A humanidade já fora vítima de pandemias terríveis – como a Praga de Atenas, em 430 a.C., ou a Peste de Justiniano, que entre 541 e 544 se abateu sobre o império bizantino –, mas a Peste Negra foi a pior delas. As vítimas eram acometidas de uma febre repentina. O corpo era coberto por caroços purulentos e dolorosos, do tamanho de laranjas. Os doentes deliravam. Morriam em uma semana.
Decorridos 700 anos, a Peste Negra continua matando na África e na Ásia. Causada pela bactéria Yersinia pestis, a doença tem, hoje, baixa virulência e pode ser combatida com antibióticos. Os sintomas atuais são tão brandos em comparação com os relatos do século XIV que os infectologistas duvidavam que seu causador fosse a mesma bactéria Y. pestis. Caso fosse, por que há 700 anos ela foi tão mais letal?
Há três semanas, a primeira pergunta foi resolvida. Uma equipe internacional de geneticistas anunciou na revista científica Nature ter extraído o DNA da Y. pestis dos dentes de quatro cadáveres: um homem, duas mulheres e uma criança. Eles foram enterrados em 1349, ao lado de outras 2.500 vítimas, numa cova coletiva no antigo cemitério de East Smithfield, na região onde hoje estão a Torre de Londres e a Ponte de Londres. “Recuperamos cerca de 99% do genoma da antiga Yersinia pestis”, diz o geneticista alemão Johannes Krause, da Universidade de Tübingen. “Ao comparar esse genoma com o das cepas modernas da Y. pestis, não vimos uma única alteração.” O estudo detalhado dos 4,6 milhões de bases que compõem o DNA da bactéria explicará por que ela foi tão perigosa no passado. Na falta desse estudo, existem duas hipóteses complementares para o fenômeno. A primeira, simples, é a desnutrição de boa parte da humanidade na época. Enfraquecidas, as pessoas seriam presas fáceis da bactéria. A outra hipótese é do geneticista Hendrik Poinar, da Universidade McMaster, no Canadá. Ele diz que a mortalidade no século XIV foi altíssima porque ninguém tinha resistência imunológica contra aquela bactéria recém-evoluída. Com base na frequência de mutação da bactéria original e de suas descendentes modernas, descobriu-se que a doença surgiu entre 1282 e 1343.
Até a reconstrução da bactéria da Peste, nenhum agente infeccioso com mais de 100 anos fora recuperado. Em 2005, infectologistas americanos recriaram o vírus influenza da Gripe Espanhola de 1918, que matou 100 milhões de pessoas. Queriam entender por que aquela cepa de vírus fora tão mais virulenta que a gripe comum. Descobriu-se que a gripe de 1918 foi causada pelo vírus influenza do tipo A(H1N1), a mesma família do vírus causador da pandemia de gripe suína de 2009. Uma única e letal mutação separa o vírus antigo do atual. Os pesquisadores ressuscitaram o microrganismo de 1918 para testar sua letalidade. As cobaias infectadas morreram asfixiadas em quatro dias.
Por que os cientistas correm riscos ao reviver organismos tão perigosos? Eles dizem que isso é essencial para evitar epidemias futuras. Os cientistas acreditam que, ao entender a letalidade da bactéria da Peste Negra ou do vírus da Gripe Espanhola, podem criar tratamentos preventivos contra possíveis mutações perigosas. Há casos, porém, em que essa explicação não basta. O pior inimigo da humanidade foi a varíola, que matou centenas de milhões desde a Antiguidade. Em 1980, após uma bem-sucedida campanha de vacinação da Organização Mundial da Saúde (OMS), o vírus da varíola foi declarado extinto na natureza. Como ele sobrevivia apenas nos seres humanos (ao contrário das gripes, que vêm de pássaros e outros animais), a vacinação pode efetivamente erradicá-lo. As duas únicas cepas sobreviventes – que deveriam ter sido destruídas há décadas, por determinação da OMS – estão no Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos e no Instituto de Virologia de Moscou. A desconfiança entre americanos e russos faz com que hesitem na hora de destruir o vírus. Alegam ser preciso preservá-lo para fazer vacinas. A verdade é outra. Washington e Moscou temem ceder ao oponente o monopólio de uma arma decisiva numa eventual guerra biológica. Resulta desse impasse um risco maior: caso o vírus da varíola escape de um laboratório, encontrará a humanidade indefesa. As crianças não são mais vacinadas contra a doença, e a imunidade dos adultos já prescreveu. Nem se fabricam mais vacinas. Segundo a OMS, uma pandemia de varíola poderia matar até 2 bilhões de pessoas.
Fonte: Rev. ÉPOCA
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