Apelação Criminal (Réu Preso) n. 2012.020710-6, de Itapema
Relator: Des. Alexandre d'Ivanenko
APELAÇÃO CRIMINAL. CRIMES CONTRA A DIGNIDADE
SEXUAL. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR CONTRA MENOR DE 14 ANOS DE IDADE
(ART. 214 C/C ART. 224, ALÍNEA "A", DO CP). ALMEJADA ABSOLVIÇÃO DE PARTE
DAS CONDUTAS IMPUTADAS AO RÉU. SENTENÇA QUE CONDENOU O APELANTE POR
ONZE CRIMES DE VIOLÊNCIA SEXUAL, EM CONTINUIDADE DELITIVA. DEPOIMENTOS
NA FASE INVESTIGATIVA E JUDICIAL SOMADOS ÀS DECLARAÇÕES DA VÍTIMA E
CONFISSÃO DO ACUSADO SUFICIENTES PARA SUSTENTAR A CONDENAÇÃO QUANTO A
OITO FATOS NARRADOS NA QUEIXA-CRIME. ABSOLVIÇÃO QUANTO AOS DEMAIS QUE SE
IMPÕE.
DOSIMETRIA. PRIMEIRA FASE. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS
PARA CONSIDERAR A PERSONALIDADE DO AGENTE DESFAVORÁVEL. EXPURGO DO
AUMENTO DA PENA, NESTE PONTO. CARÁTER NEGATIVO DAS CONSEQUÊNCIAS DO
DELITO, TODAVIA, QUE DEVE SER MANTIDO. TRAUMA SOFRIDO PELA OFENDIDA QUE A
LEVOU A MÚLTIPLAS TENTATIVAS DE SUICÍDIO. PENA-BASE ADEQUADA.
RECURSO DEFENSIVO PARCIALMENTE PROVIDO.
Vistos, relatados e discutidos estes autos
de Apelação Criminal (Réu Preso) n. 2012.020710-6, da comarca de
Itapema (Vara Criminal), em que é apelante E. A. P., e apelados P. C. S.
e outro:
A Terceira Câmara Criminal decidiu, por votação unânime, dar provimento parcial ao recurso. Custas legais.
O julgamento, realizado no dia 3 de julho
de 2012, foi presidido pelo Exmo. Sr. Des. Torres Marques, sem voto, e
dele participaram, com voto, os Exmos. Srs. Des. Moacyr de Moraes Lima
Filho e Des. Subst. Leopoldo Augusto Brüggemann. Funcionou, pela douta
Procuradoria Geral de Justiça, o Exmo. Sr. Dr. Raul Schaefer Filho,
tendo lavrado parecer o Exmo. Sr. Dr. Odil José Cota.
Florianópolis, 16 de julho de 2012.
Alexandre d'Ivanenko
Relator
RELATÓRIO
Na comarca de Itapema, P. C. da S.
apresentou queixa-crime contra E. A. P., imputando-lhe a prática de
delito previsto no art. 214 c/c o art. 224, "a", e art. 226, incs. II e
III, todos do Código Penal, pelos fatos assim narrados na peça
vestibular (fls. 1-7):
O Querelado e sua família, bem como a família da
Querelante eram amigos de longa data, e tinham entre si plena confiança,
até mesmo por serem irmãos de fé e instruídos nos mesmos princípios
morais. Por conta dos estreitos laços, as visitas e os encontros entre
ambos as famílias eram regulares.
Sucedeu que, a partir do ano de 1996, como um
lobo disfarçado com pele de ovelha, ou "pior", disfarçado de pastor, já
que era ministro religioso, o Querelado começou a assediar e abusar a
Querelante quando esta tinha apenas seis anos de idade. Os atentados se
repetiram durante sete anos quando, em 2003, Querelante, então,
conseguiu reunir forças físicas, morais e emocionais para resistir às
investidas do Querelado e enfrentar a situação.
Segundo o relato da Querelante, as primeiras
vezes aconteceram no inverno de 1996 quando, devido ao frio, o Querelado
levava algumas crianças para jogar "War" no seu quarto ou
assistir televisão na sala onde, por debaixo das cobertas, acariciava o
corpo da menor Querelante detendo-se nas partes íntimas dela para,
depois, fazer com que ela o acariciasse, detendo a mão da Querelante. A
guisa [sic] de exemplos, a menor Querelante relembra, com pesar, vergonha e revolta, algumas situações de abuso como:
a) Quando estavam na piscina na casa de amigos em comum;
b) No corredor do prédio onde a Querelante
residia, quando o Querelado chamou a menor para ajudá-lo a levar uma
caixa de pizza no lixo, que ficava na calçada do prédio e, intimidando-a
atacou a menor no trajeto entre os andares;
c) Andando de quadriciclo motorizado quando,
com uma mão, o Querelado dirigia o veículo em movimento, e com a outra
mão, abusava da Querelante que estava na sua frente;
d) No mar, quando o Querelado levou a
Querelante para o fundo onde não dava mais pé para a menor, e
segurando-a no colo a masturbava-a [sic] por debaixo da água, com pessoa
ao redor;
e) Nas dependências do prédio da igreja, onde o Querelado servia como "pastor" (Pasmem!).
5. Ressalta-se que os abusos não se limitam
aos fatos retro citados. São muitas as situações de atentados violentos
ao pudor cometidos durante sete anos pelo Querelado contra a Querelante
que, relembrá-los, causa constrangimento, revolta e humilhação na
vítima. Porém, ela ainda encontra forças e coragem para relatar o que
segue.
6. Em meados do ano de 1999, os pais da
Querelante precisaram viajar para Rio do Sul/SC a procura de casa e
escola para suas duas filhas, uma vez que teriam que se mudar para
aquela cidade por conta de uma transferência laboral. Como a Querelante,
então com oito anos, ainda estava em aulas, cursando a quarta série do
ensino fundamental, o Querelado e a sua esposa se ofereceram para cuidar
da menor Querelante durante a semana em que seus pais ficariam
ausentes. Lastimavelmente, Excelência, foi como o lobo pastoreando a
ovelha.
7. Nesses dias, acontecia que, o Querelado ia
buscar a Querelante na escola e, dentro do carro, praticava com ela atos
libidinosos. De noite, os abusos e constrangimentos continuavam
conforme relato nas palavras da própria vítima: [...]
8. Após a mudança da família S. para o
município de Rio do Sul/SC, a família P. vai visitar os S. A seguir,
transcrevemos o relato da Querelante sobre o que aconteceu durante
aquela visita: [...]
11. Tantos abusos e constrangimentos deixaram
seqüelas que abalaram profundamente o estado emocional e psicológico da
vítima, a ponto de ela tentar o suicídio por diversas vezes, ora tomando
remédios em excesso, ora cortando o pulso e os braços (folhas de
rascunho em anexo) em diversas crises nervosas, passando por longos anos
de depressão e transtornos psicossomáticos [...].
Finda a instrução criminal, a
magistrada julgou procedente as imputações da queixa-crime, condenando
E. A. P. à pena de 11 (onze) anos e 8 (oito) meses de reclusão, em
regime inicialmente fechado, por infração ao art. 214 c/c o art. 224,
"a", por onze vezes, na forma do art. 71, todos do Código Penal (com a
redação anterior à dada pela Lei n. 12.015/09), sendo-lhe negada
qualquer forma de substituição da reprimenda corporal (fls. 244-255).
Inconformado com a prestação
jurisdicional entregue, o querelado apelou, por seu defensor, a tempo e
modo (fl. 258). Em suas razões, pugna pela absolvição de oito das onze
condutas criminosas reconhecidas em sentença, ao argumento de ausência
de provas para sustentar o decreto condenatório, com a consequente
redução da fração relativa à continuidade delitiva aplicada à pena.
Cumulativamente, requer a fixação da pena-base em seu mínimo legal (fls.
284-295).
Devidamente intimada para apresentar contrarrazões (fl. 298), a querelante deixou o prazo transcorrer
in albis (fls. 299). Apresentou manifestação o Ministério Público
(fls. 301-303), com as quais os autos ascenderam a este Sodalício.
Remetidos à douta Procuradoria Geral de Justiça, foi emitido parecer, da
lavra do Dr. Raul Schaefer Filho, pelo conhecimento e desprovimento do
apelo (fls. 308-314).
Este é o relatório.
VOTO
Presentes os pressupostos de admissibilidade, o recurso há de ser conhecido.
Inexistindo preliminares a serem debatidas, nem mesmo de ofício, passo à análise do mérito.
Cuida-se de apelação criminal interposta
por E. A. P. contra sentença que o condenou por infração ao art. 214 c/c
o art. 224, "a", por onze vezes, na forma do art. 71, todos do Código
Penal (com a redação anterior à dada pela Lei n. 12.015/09).
Nas razões recursais, inicialmente, pugna
pela absolvição de oito dos onze condutas criminosas reconhecidas em
sentença, ao argumento de ausência de provas para sustentar o decreto
condenatório, com a consequente redução da fração relativa à
continuidade delitiva aplicada à pena.
Primeiramente, importante consignar que o
apelante, seja por meio de sua defesa técnica, seja em seu
interrogatório judicial, admite ter praticado atos de atentado violento
ao pudor contra a recorrida quando esta contava com menos de quatorze
anos de idade. Desta feita, desnecessário neste grau de jurisdição
analisar a materialidade e a autoria de tal conduta, cabendo a este
Órgão Julgador somente verificar a existência de provas para embasar a
individualização dos onze episódios reconhecidos pela sentenciante.
Assim, enunciou a togada singular os
ocorridos como sendo 1) na piscina de amigos em comum; 2) no corredor do
prédio onde residia a querelante; 3) a bordo de quadriciclo motorizado;
4) no mar; 5) nas dependências da igreja
que o réu frequentava; 6) por quatro vezes durante a estadia da
querelante na residência do acusado; 7) na residência da família da
querelante, quando o querelado e sua esposa os visitavam; e 8) quando a
família da apelada frequentava a praia de Itapema.
Quanto ao primeiro evento, "na piscina",
verifico que a defesa do apelante não se insurge, todavia, trata como
sendo um único episódio conjuntamente com aquele ocorrido "no mar". Não
obstante em suas declarações a ofendida ter utilizado a conjunção "ou"
ao afirmar que "quando iam para a praia ou para psicina [sic] E.
levava grupos de crianças para a água, onde aproveitava para praticar
atos libidinosos com a declarante" (fl. 62), entendo que se trata de
episódios diversos, inclusive, dando a vítima a entender que os delitos
ocorreram por mais de uma vez, seja no mar, seja na piscina, pois disse
que o acusado a molestava "quando iam para praia" em vez de "quando foram para praia", e o fez com uso do pronome "quando" com o sentido de "em cada oportunidade que".
Corroboram tal entendimento o relato de
Jonathan Diego Evaristo ao declarar que os ataques ocorriam "na maioria
das oportunidades em que [o réu] conseguia ficar sozinho com ela em
qualquer lugar que estivessem, seja na piscina, na praia, no camping"
(fl. 64); e a anotação de próprio punho da vítima, de fl. 24, a qual tem
como título "no acampamento (no mar)", deixando evidente que este se
tratou de um evento específico, não se confundindo com a situação
ocorrida na piscina. Logo, entendo suficientemente provados o primeiro
(piscina) e o quarto (mar) episódios.
No que tange à segunda situação, que
ocorreu no corredor do prédio onde residia a querelante, esta se
encontra evidenciada no relato de E. L. P. da S., genitor da vítima, ao
afirmar que tomou conhecimento dos fatos pelos relatos da filha, nos
quais descreveu que "E. se aproveitava de momentos em que estavam dentro
do mar, na piscina, em corredores, dentro de casa ou em
acampamentos para manipular as partes íntimas dela" (fl. 67 - grifei),
vindo a confirmar seu depoimento em juízo, quando disse que "os atos
eram praticados pelo querelado quando estavam a sós" (fl. 154 - grifei).
O terceiro episódio, ocorrido a bordo de
quadriciclo motorizado, encontra-se estampado no relato escrito juntado à
fl. 23, ainda que a ofendida tenha se limitado a enunciar o fato, sem
dar maiores detalhes. Mantida aqui, outrossim, a condenação.
O quarto fato já foi tratado juntamente com o primeiro.
Quanto ao quinto fato, crime que teria se dado nas dependências da igreja
que o réu frequentava, o apelo merece acolhimento. Tal evento não é
mencionado em nenhum dos depoimentos colhidos durante o feito, restando
apenas descrito na peça vestibular. Logo, carente de qualquer suporte
probatório, deve o réu ser absolvido.
Com relação ao sexto evento, quando a
querelante ficou hospedada na residência do acusado por alguns dias,
insurge-se a defesa quanto ao número de fatos praticados pelo apelante
naquele período, argumentando pelo reconhecimento de apenas um crime, e
não quatro como o fez a magistrada a quo. Razão lhe assiste em parte.
Realmente não é possível individualizar
quatro delitos, até mesmo porque o raciocínio utilizado na decisão
vergastada, de que teria ocorrido um ato de violência para cada dia, não
se sustenta, uma vez que sequer existe certeza sobre quantos dias a
vítima ficou hospedada na casa do recorrente - os relatos variam de dois
dias a uma semana. Assim, tenho que somente devem ser mantidas as
condenações por dois fatos. Explico: ao narrar este episódio, P. afirmou
que "na época que se mudaram para a cidade de Rio do Sul/SC, a
declarante e sua irmã ficaram uns quatro dias na casa de E., onde ele se
aproveitava da situação para abusar sexualmente da declarante" (fls.
62-63).
Novamente, assim como quando da análise do
primeiro fato, verifico que a linguagem utilizada explicita a
pluralidade de eventos criminosos, pois P. declarou que o réu "se
aproveitava", enquanto que se quisesse afirmar que se tratou de um único
fato teria dito "se aproveitou".
O fato foi confirmado em juízo por E. L.
P. da S., quando asseverou que "houve uma situação em que P., a convite
do querelado e da esposa, permaneceu na casa dele, quando o declarante e
sua mulher se dirigiram a Rio do Sul" (fl. 155).
Desta forma, ainda que o relato manuscrito
de fl. 21 narre apenas um episódio, tenho como certo que ocorreram
neste período no mínimo duas situações de abuso, pelos quais mantenho a
condenação, absolvendo o denunciado dos outros dois fatos que teriam
ocorrido no mesmo período.
Quanto ao sétimo evento, acontecido na
residência da família da querelante, quando o querelado e sua esposa os
visitava, concorda a defesa com a condenação, a qual vejo que está
suficientemente evidenciada no relato manuscrito de fl. 22, declaração
da vítima (fl. 63) e na confissão em delegacia (fl. 25-26) e em juízo
(fl. 107), devendo, outrossim, a condenação ser mantida.
No que tange ao último episódio
reconhecido, o fato é narrado pela vítima, sendo que "depois que se
mudaram para a cidade de Blumenau, a declarante e sua família ainda
frequentavam a praia de Itapema/SC, onde continuava sendo abusada por
E." (fl. 63), declarações estas que devem ser tomadas com especial
atenção.
Como é sabido, os crimes contra a
liberdade sexual geralmente são praticados às escondidas e sem
testemunhas, sendo a palavra firme e coerente da vítima, corroborada
pelos demais elementos e circunstâncias, são suficientes para o decreto
condenatório.
É o posicionamento da doutrina:
A unificação dos tipos penais na figura do art. 213, sob o título único de estupro,
não afastará o mais grave problema de apuração e punição dos crimes
sexuais, consistente da formação de prova robusta, apta a gerar
convicção no julgador. O estupro é cometido, como regra, às escondidas,
sem qualquer visibilidade, inclusive para não permitir à vitima alguma
chance de alcançar socorro. [...] Torna-se, então, um dilema a ser
enfrentado: a palavra do acusado (negando) contra a palavra da vítima
(afirmando). O juiz haverá de analisar o passado comportamental de
ambos, buscando conferir maior credibilidade a quem lhe passar confiança
e retidão. [...] De todo modo, inviável não é a prova de ocorrência
do estupro, baseando-se o magistrado apenas na palavra da vítima. Tudo
dependerá da credibilidade por esta transmitida. (NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual. São Paulo: RT, 2009. p. 20-21 - grifei).
Pacífico o entendimento desta Corte:
Em crimes contra os costumes, é cediço que ante a
dificuldade probatória, haja vista muitas vezes não deixar vestígios, a
prova testemunhal, notadamente a palavra da vítima, quando segura,
coerente e com apoio em indícios e circunstâncias colhidas no processo,
resulta em suficiente suporte para a condenação do ofensor (Ap. Crim. n.
2003.005791-9, rel. Des. Solon d'Eça Neves, j. 21.10.2003).
Dito isto, importante sublinhar que,
devido às particularidades do caso, por vezes a prova dos autos é tênue,
contudo, harmoniosa, sendo o que basta para convencer este Relator da
veracidade dos fatos. Todas as declarações colhidas e depoimentos
prestados, seja na fase investigativa ou em juízo, deixam claro que os
ataques à dignidade sexual da ofendida ocorreram em múltiplas
oportunidades, de forma repetitiva.
P. C. da S. declarou que "lembra que, logo
que E. se mudou para a cidade de Itapema e suas famílias se tornaram
amigas, ele passou a abusar sexualmente da declarante", sendo que "todas as vezes
que as famílias se encontravam, E. se aproveitava para abusar da
declarante" (fl. 62 - grifei). Esclarecendo esta informação, a mãe de P.
informou que "a família de E. e da declarante tinham relações de
amizade muito estreitas, encontrando-se quase que semanalmente" (fl.
61).
E. L. P. da S., em juízo, asseverou "que
ao longo dos anos essas oportunidades mencionadas, ou seja, visitas
mútuas, acabaram se repetindo inúmeras vezes, sendo nelas que o querelado agia" (fl. 155 - grifei).
O apelante confessou que "pegava a mão da
menor e com ela esfregava seu pênis; que na mesma situação colocava suas
mãos dentro da calcinha da menor manipulando vagina da menor" [sic], sendo que "estes atos aconteceram algumas vezes no decorrer dos anos que teve relacionamento com a família da menor" (fl. 107 - grifei).
Assim, fica evidente que os atos
criminosos se repetiram por mais vezes que aquelas oito individualmente
reconhecidas neste grau, sendo as condenações limitadas somente a estas
pela completa falta de elementos para apontar as demais de forma
concreta.
Anoto ainda que as provas da fase
investigativa foram corroboradas pelo interrogatório do acusado perante a
autoridade judicial (fls. 106-108) e pelo depoimento em juízo do pai da
querelante (fls. 154-155).
Desta feita, suficientemente comprovadas,
mantenho a condenação do acusado com relação a oito das onze condutas
reconhecidas no decisum vergastado - na piscina de amigos em
comum; no corredor do prédio onde residia a querelante; a bordo de
quadriciclo motorizado; no mar; por duas vezes durante a estadia da
querelante na residência do acusado; na residência da família da
querelante, quando o querelado e sua esposa os visitavam; e quando a
família da apelada frequentava a praia de Itapema, absolvendo o apelante
das demais, com fulcro no art. 386, inc. VII, do Código de Processo
Penal.
Cumulativamente, requer a fixação da
pena-base em seu mínimo legal, insurgindo-se contra os acréscimos à
sanção fundamentadas na personalidade "deturpada" do acusado e nas
consequências "gravíssimas" do delito (fl. 253).
No que tange à personalidade do réu,
assiste razão à defesa ao argumentar contra o caráter desfavorável
aplicado a esta circunstância judicial, afirmando que "não há nos autos
qualquer laudo técnico que leve à conclusão de que ela é deturpada" (fl.
291). Não obstante os fatos praticados pelo apelante sejam digno de
repúdio, e apesar de entender ser desnecessária a presença de parecer
técnico, tenho que não há elementos suficientes para o agravamento da
reprimenda neste particular.
Destarte, inexistindo nos autos elementos
de convicção suficientes, cumpre acolher o pedido defensivo para afastar
o caráter negativo impingido à personalidade do agente.
Quanto às consequências do crime, todavia,
não há como dar guarida ao apelo. Alega o douto causídico que o trauma
sofrido pela ofendida é normal à espécie e que ausentes do caderno
processual elementos que comprovem as "supostas tentativas de suicídio"
(fl. 293).
Ainda que não se possa negar que a
ocorrência de trauma psicológico é consequência intrínseca aos crimes de
natureza sexual, motivo por que costumeiramente não pode ser utilizada
para agravar a pena imposta, cuida-se o caso em tela de situação na qual
as consequências dos abusos perpetrados pelo apelante foram muito além
do trauma propriamente dito, consubstanciando-se em grave distúrbio, o
qual culminou em automutilação e tentativas de suicídio praticadas pela
vítima.
Tais episódios estão suficientemente
demonstrados nos autos por meio dos registros escritos pela ofendida,
apresentados em folhas sujas de sangue (fls. 21-24), e são confirmados
pelas declarações colacionadas nos autos. Sua genitora, D. B. C. da S.
assevera que:
[...] há um ano, P. está sob tratamento
psicológico, onde começou a escrever sobre os abusos sofridos; que nas
ocasiões em que se lembra dos fatos com mais realismo e escreve sobre
eles, P. fica tão transtornada que se auto-lesiona; que P. costuma tirar
a lâmina do aparelho de barbear e passa nos pulsos, cortando a pele;
que informa que, ainda no corrente ano, P. cortou o pulso esquerdo e
teve que ser levada ao hospital para suturar do corte, onde foram feitos
quatro ou cinco pontos [...] (fl. 61).
O relato é confirmado pela própria P. (fl.
63), seu genitor (fl. 67 e 155) e pelo denunciado, em seu
interrogatório judicial, ao afirmar que "teve a informação de que a
vítima tentou suicídio por duas vezes" (fl. 107). Ademais, consta dos
autos depoimento de Mirce Meri Vieira Setlik, psicóloga que atendeu a
ofendida, confirmando que P. submeteu-se a tratamento pelo período de um
ano (fl. 129), o que supre a ausência de laudo psicológico da vítima.
Assim, tenho que as consequências do
delito extrapolam aquelas inerentes aos crimes sexuais, estando
suficientemente comprovadas nos autos, pelo que, neste tema, nego o
pedido defensivo.
Anoto ainda, a título de esclarecimento, que, contrariamente ao declinado pela magistrada a quo,
entendo ser as circunstâncias do delito merecedoras de especial
repúdio, pois ficou evidenciado que o réu se utilizou da amizade que
tinha com a família da vítima para dela se aproximar e evitar suspeitas,
dificultando a descoberta dos crimes por aqueles que tinham a obrigação
legal de proteger a infante. Entretanto, ausente recurso da acusação,
impossível reconhecer tal situação neste grau de jurisdição, em
observância ao princípio non reformatio in pejus presente em nosso ordenamento jurídico.
Analisados os pleitos do apelante, passo à
adequação das penas relativas aos oito fatos cujas condenações foram
mantidas na presente decisão. Por serem idênticas as circunstâncias,
procedo um único cálculo penal, válido para cada uma das condutas
delituosas.
Hígido o enquadramento legal dado pela
sentenciante ao fato, pois, não obstante revogados os arts. 214 e 224,
"a", do Código Penal, a conduta do denunciado está atualmente tipificada
no art. 217-A do referido diploma legal; todavia, prevendo a lei atual
punição mais grave, neste caso, não deve retroagir, tendo sido
corretamente aplicada, assim, a lei vigente à época do fato.
No primeiro momento do cálculo penal,
desfavorável uma das circunstâncias elencadas no art. 59 do Estatuto
Repressor, qual seja, as consequências do delito, pelas razões alhures
declinadas, fixo a pena-base em 7 (sete) anos de reclusão.
Na segunda fase do cálculo penal, presente
a atenuante da confissão espontânea, e ausentes circunstâncias
agravantes, reduzo a sanção para 6 (seis) anos de reclusão.
Na etapa derradeira, não há causas de
aumento ou diminuição de pena a considerar, pelo que a reprimenda, para
cada fato, resta definitiva em 6 (seis) anos de reclusão.
Presente a continuidade delitiva, ainda
que absolvido de parte dos fatos reconhecidos em sentença, a fração do
acréscimo de pena deve ser mantida como estabelecida em sentença, pois
sedimentado o entendimento de que o patamar máximo de aumento relativo
ao crime continuado deve ser aplicado para sete ou mais condutas
delituosas.
Neste sentido:
DOSIMETRIA - REINCIDÊNCIA - PREPONDERÂNCIA SOBRE
CONFISSÃO ESPONTÂNEA - MAJORAÇÃO DA REPRIMENDA EM 1/6 - PRECEDENTES DA
CÂMARA - CONTINUIDADE DELITIVA - ADEQUAÇÃO DO PATAMAR APLICADO -
MAJORAÇÃO PROPORCIONAL AO NÚMERO DE DELITOS.
[...]
III - A majoração decorrente do reconhecimento do
crime continuado deve levar em conta o número de delitos praticados,
procedendo-se ao acréscimo, que varia de um sexto até dois terços, sobre
a pena prevista mais grave. Neste sentido, para dois crimes, aumenta-se
a pena em um sexto; para três delitos eleva-se em um quinto; para
quatro crimes, aumenta-se em um quarto; para cinco crimes, eleva-se em
um terço; para seis delitos, aumenta-se na metade; para sete ou mais infrações, eleva-se em dois terços (Ap. Crim. n. 2008.076438-0, relª. Desª. Salete Silva Sommariva, j. 22.9.2009 - grifei).
Considerando que a presente decisão
manteve a condenação por oito crimes, majoro a reprimenda de um dos
delitos, porque idênticas, em 2/3 (dois terços), resultando em 10 (dez)
anos de reclusão.
Mantido o regime inicialmente fechado para
o cumprimento da sanção corporal, em observância ao art. 33, § 2º, "a",
do Código Penal e ao art. 2º, § 1º, da Lei n. 8.072/90.
Outrossim, conservada a negativa de
substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos,
uma vez que praticado o delito com violência contra a pessoa, em sua
forma presumida, e porque o quantum imposto ultrapassa o limite previsto no art. 44 do Códex Repressivo.
Ex positis, sou por conhecer o
recurso e dar-lhe parcial provimento, para absolver o acusado de três
das onze condutas criminosas que lhe foram imputadas e afastar o caráter
negativo da personalidade do agente, adequando a reprimenda, restando
E. A. P. condenado à pena de 10 (dez) anos de reclusão, em regime
inicialmente fechado, por infração ao art. 214 c/c o art. 224, "a", por
oito vezes, na forma do art. 71, todos do Código Penal (com a redação
anterior à dada pela Lei n. 12.015/09).
Observa-se que a comarca de origem deverá
promover a(s) devida(s) comunicação(ões), conforme dispõe o § 2.º do
art. 201 do Código de Processo Penal, acrescentado pela Lei n.
11.690/08.
Este é o voto.
Gabinete Des. Alexandre d'Ivanenko
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