História: Na Terra Nova, como o Diabo Gosta
20.04.2006
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História: Na Terra Nova, como o Diabo Gosta
Depois
da chegada de Pedro Álvares Cabral em 1500, outros navegantes estiveram
em terras brasileiras, deixando em vários pontos da costa alguns poucos
europeus que se misturaram aos índios e viviam nas aldeias dos naturais
do lugar. Não se pode dizer que esses primeiros homens vinham para o
país desconhecido com a nobre missão de colonizar o gentio no sentido de
civilizá-lo, como costumavam escrever historiadores mais antigos, ainda
influenciados pela mítica que marcou toda a história do chamado
descobrimento.
Eram homens rudes, na imensa
maioria analfabetos, que fugiam da miséria em que viviam no Reino. Não
traziam, portanto, nenhum ideal mais nobre do que se manter vivo a
qualquer custo, o que, convenhamos, já não era pouco. Muitos, inclusive,
condenados por crimes atrozes em Portugal, foram deixados à força na
terra desconhecida. Enfim, eram pobres dispostos a escravizar
miseráveis.
Essa é a verdadeira história da
colonização que se pode intuir das cartas que escreveram os primeiros
jesuítas que vieram para a terra americana e que, em boa hora, Sheila
Moura Hue, doutora em Literatura Portuguesa pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro e professora da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, traduziu do espanhol.
Ainda que impressas em Coimbra em duas
coletâneas uma de 1551 e outra de 1555 , essas cartas foram
traduzidas à época para o espanhol porque assim poderiam alcançar maior
público. Impressionam pela força de suas informações e pela sinceridade,
objetividade e singeleza dos relatos.
Os jesuítas, empenhados em converter
os gentios à religião cristã, mal podiam acreditar no que viam: os
colonos portugueses que encontravam naquelas pequenas povoações eram
mais bárbaros e piores que os próprios índios, causando muitos
escândalos, ao viver com muitas mulheres, fazendo filhos em quem lhes
apetecesse, sem se confessar. E
nfim, vivendo em permanente pecado
mortal.
Não se pense, porém, que os clérigos passavam ao largo das
dissipações abaixo do Equador: muitos logo se tupinizavam, vivendo como o
diabo gosta.
Não eram assim tão poucos e alguns
já estavam na terra havia mais de duas ou três décadas, como se
depreende de uma carta escrita em Pernambuco por Antonio Pires (Castelo
Branco, 1519-Bahia, 1572), que chegou ao Brasil com o primeiro grupo de
jesuítas em 1549: (...) Logo que chegamos, muitos começaram a se
afastar de suas mancebas e de outros pecados, parece-me que foi por
medo, por lhes parecer que trazemos poder para os castigar (...).
Casam-se muitos, o que antes não se fazia, porque queriam mais estar
amancebados com suas escravas e com outras negras forras. Aqui nesta
terra há um costume, que a maioria dos homens não recebe o santo
sacramento, porque têm as negras com que estão amancebados em tanto que
há homens que há vinte anos que não comungam, e confessam-nos e
absolvem-nos. Tudo isso se faz pelas nossas costas, pois agora é nosso
ofício remediá-los.
Também em Pernambuco, então
a mais povoada das capitanias, o padre Manuel da Nóbrega (Minho,
1517-Rio de Janeiro, 1570) queixa-se, em carta de 11/8/1551, de que
muitos filhos de cristãos andam pelo sertão perdidos entre os gentios;
sendo cristãos vivem em seus bestiais costumes. Reclama ainda do
comportamento de alguns clérigos da terra, acusando-os de ter mais
ofício de demônios que de clérigos, porque além de seu mau exemplo e
maus costumes, querem contrariar a doutrina de Cristo e dizem
publicamente aos homens que lhes é lícito estar em pecado com suas
negras, pois que são suas cativas, e que podem ter os assaltados, pois
que são cães e outras coisas semelhantes, por escusar seus pecados e
abominações.
É claro que nem sempre é fácil ao
leitor de hoje entender estes textos, mas a professora Sheila Moura Hue,
a exemplo do que já havia feito na edição de A primeira história do Brasil,
de Pero de Magalhães Gândavo (Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,
2004), permeou o livro com esclarecedoras notas de rodapé em que se pode
ficar sabendo que negras eram as índias e assaltados, os índios
escravizados.
Na introdução, Sheila Moura Hue
passa adiante a informação de que a armada que acompanhou o
governador-geral Tomé de Sousa e desembarcou na Bahia de Todos os
Santos, no dia 29/3/1549, seria composta por cerca de mil homens. É
verdade que, em seguida, deixa explícita a sua estranheza ao especular
como esses mil homens teriam sido abrigados entre os 45 habitantes da
povoação do Pereira até que se iniciassem as edificações da nova vila, a
futura cidade de Salvador, mas não deixa de aproveitar o contraste
numérico entre os moradores e os recém-chegados para observar que isso
daria bem a noção do caráter do empreendimento.
Ora,
não é preciso pensar muito para concluir que, provavelmente, não passa
de mais uma fantasia colocada a andar por historiadores antigos a
informação de que mil pessoas fariam parte da armada de Tomé de Sousa, a
exemplo daquela segundo a qual, com a família real em 1808, chegaram ao
Rio de Janeiro oito, dez, 15 ou 20 mil pessoas, como se lê em vários
livros publicados já no século XXI.
Se um pesquisador minucioso como Nireu Cavalcanti diz em O Rio de Janeiro Setecentista
(Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2004, pág. 96) que, no começo do
século XIX, as embarcações comerciais e de guerra estavam dimensionadas
para 80 passageiros em média cada, delas excluída a tripulação, como
imaginar que os galeões aquelas cascas de noz que aportaram na Bahia de Todos os Santos pudessem trazer cerca de mil homens?
Se
lembrarmos que no Rio de Janeiro, nos anos de 1808 e 1809, aportaram
menos de 30 embarcações trazendo a Corte e os acompanhantes, num total
de 444 pessoas, de acordo com as pesquisas de Cavalcanti, difícil é
aceitar que Tomé de Sousa tenha chegado a Bahia com mais gente em época
em que a travessia dos mares era muito mais difícil e custosa.
Elementar, caro leitor.
____________________
PRIMEIRAS CARTAS DO BRASIL (1551-1555) ,
tradução, introdução e notas de Sheila Moura Hue. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editor, 148 págs., 2006, R$ 29,00. E-mail: jze@zahar.com.br
Fonte: PRAVDA
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