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segunda-feira, 14 de junho de 2010

Igreja católica - Entre 1890 e 1930

ISSN 1981-1225
Dossiê Religião
N.4 – abril 2007/julho 2007
Organização: Karina K. Bellotti e Mairon Escorsi Valério
A Igreja Católica na Bahia da Primeira República
(1890-1930)
Catholic Church in Bahia from First Republic
(1890-1930)
Israel Silva dos Santos
Mestrando em História – UFBA
Correio eletrônico: kublaican@ig.com.br
Resumo: Este artigo é sobre a reforma da Igreja Católica na Bahia entre 1890 e 1930, após a separação entre Igreja Católica e Estado brasileiro, considerando o processo de romanização da instituição.
Palavras-chave: Religião - Igreja Católica – Romanização – República – Bahia.
Abstract: This article is about the reform of the Catholic Church in Bahia between 1890 and 1930, after of separation between Catholic Church and Brazilian State, considering the Romanization process of institution.
Key-words: Religion – Catholic Church – Romanization – Republic – Bahia.
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Embora possamos dizer que pessoas e instituições estão sempre passando por um processo de mudança, por uma transição, uma adaptação aos tempos, uma instituição em especial merece atenção, pois manteve e mantêm um discurso que pretende ser imobilista ante a realidade. A Igreja Católica Apostólica Romana é, sem dúvida, uma instituição que procura defender a crença na sua imutabilidade. Apesar de estar a todo tempo tentando se adaptar às mudanças ocorridas no mundo, seu discurso ainda é o de uma instituição a-histórica, que percebe e defende a imutabilidade nos seus princípios e na sua crença. Entretanto, devemos considerar que este mesmo ponto de vista não alcança as suas formas de atuação diante das sociedades, das culturas com que ela tem procurado se relacionar nos seus aproximados dois mil anos de história. Pois a sua vida, a sua existência depende dessa capacidade de adaptação.
O presente trabalho apresenta exatamente uma dessas tentativas de adaptação que a Igreja Católica, em especial, baiana, tentou produzir, não quanto aos seus discursos de instituição hegemônica no campo político e religioso, mas quanto as suas formas de atuação diante de uma nova conjuntura que se fez valer no fim do século XIX – a República. O regime republicano, instalado em 15 de novembro de 1889, trouxe o fim do padroado régio e suas prerrogativas, e o fim do monopólio católico no campo religioso brasileiro. Foi o decreto 119-A de 1890 que instituiu essas modificações, provocando o clero a uma reforma na instituição e nas suas formas de relacionamento com a elite política e o povo baiano e brasileiro. Reformas que, diga-se de passagem, haviam sido pretendidas antes mesmo de proclamado o novo regime, no arcebispado de D. Romualdo Antônio de Seixas (1828-1860), na Bahia, e com os outros bispos “reformadores”, D. Antônio Ferreira Viçoso (1844-1875), em Mariana e D. Joaquim de Melo (1851-1861), em São Paulo. Assim, este trabalho enfocará três aspectos sobre a reforma da Igreja Católica na Bahia, Arcebispado Primaz no Brasil, mas, sem, contudo esquecer que esse processo atingiu um âmbito nacional, por que não dizer mundial. O primeiro
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aspecto a ser analisado é como a Igreja Católica baiana se portou perante o novo regime e sua elite dirigente para não perder sua participação na vida política; o segundo enfocará as estratégias de reforma interna nas estruturas eclesiásticas; o terceiro e último, analisará uma tentativa de reformular as crenças, associações e expressões de fé do catolicismo popular.
A Igreja e a política na Primeira República
Na Bahia e no Brasil a segunda metade do século XIX foi um período capital para as relações entre Igreja e Estado. O último, influenciado pelo pensamento liberal, introduzia mudanças e assumia posturas que muito desagradavam à primeira. Proibiu a admissão de noviços nos mosteiros (1855), fez cair o valor das côngruas pagas aos sacerdotes e não raras vezes abandonou os templos, fazendo vexatória sua situação. Mas nenhum desses problemas para a Igreja Católica parecia tão grave, tão aviltante quanto a ingerência do Estado em seus assuntos. Foi na famosa “Questão dos Bispos” ocorrida entre os anos de 1872 e 1875, que esse conflito se tornou evidente, quando o bispo de Olinda, D. Vital Maria Gonçalves de Oliveira, resolveu expulsar os maçons das confrarias e ordens terceiras de sua diocese. Exemplo que foi seguido pelo bispo do Pará, D. Antônio de Macedo Costa. Eles seguiam as indicações da Igreja romana que condenava pela Quanta Cura e pelo Syllabus (1864), do papa Pio IX, a existência desses indivíduos nas associações religiosas católicas. Tal decisão tomada pelos prelados, contudo, foi suspensa e por desobedecer à ordem de reintegração dos maçons nas associações religiosas ambos acabaram presos. Em “Aviso do Governo Brasileiro, na 4º Secção do Ministério dos Negócios do Império”, o Estado respondeu ao recurso do bispo, João Alfredo Correia de Oliveira:
Considerando que os decretos dos concílios e letras apostólicas, assim como quaisquer outras constituições eclesiásticas dependem, para sua 3
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execução, de beneplácito do governo, ou de aprovação da assembléia geral legislativa (...)
Considerando que não tiveram beneplácito as bulas que fulminam excomunhão contra as sociedades maçônicas;
Considerando que a maçonaria, como sociedade secreta, é permitida pela lei civil, não tem fins religiosos, e nem conspira contra a religião católica, e que, portanto, faltam-lhe caráter e intuitos que sujeitem à jurisdição eclesiástica e a condenação na forma e figura do juízo (...);
Houve por bem o mesmo Augusto Sr. conformar-se com o parecer de se dar provimento ao recurso e, mando no prazo de um mês seja cumprida esta decisão, cessando os efeitos do ato, de que a mencionada irmandade recorreu, como se não houvesse existido. (A Crônica Religiosa, 1873)
Nesse evento o arcebispado primaz prestou apoio aos bispos do Pará e de Olinda, mas, provavelmente, seguindo as recomendações da Santa Sé preferiu não entrar em confronto direto com o poder temporal, afinal corria o risco de agravar ainda mais a situação. Depois de muitas discussões no parlamento do Império e na imprensa leiga e religiosa, em 17 de setembro de 1875, saiu o decreto que revogou a condenação dos bispos do Pará e de Olinda. Mas o fato é que a Igreja se tornou inimiga declarada da maçonaria. E não por ser esta simplesmente uma sociedade secreta, como condenava a Quanta Cura, mas por seus membros serem representantes do pensamento liberal que a Igreja condenava.
Portanto, o grande inimigo da Igreja Católica era o liberalismo, que trazia idéias como a igualdade entre as diversas denominações cristãs, a “liberdade de consciência” e de ensino, a “liberdade religiosa” e a “separação entre Igreja e Estado”. Todo o pensamento político liberal, na segunda metade do século XIX no Brasil, organizou-se em dois partidos, oficialmente. O primeiro deles, o Partido Liberal monarquista, defendia essas idéias, mas também o fim do centralismo político (representado na figura do poder moderador), uma reforma no poder judiciário, além da instituição do casamento civil. O segundo, o Partido Republicano, defendia uma plataforma muito semelhante ao Liberal monarquista, mas seus membros já viam no Antigo Regime a impossibilidade de promover tais reformas e, por isso, resolveram investir na revolução, 4
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acrescentando as idéias de “soberania popular”, além da “extinção dos privilégios” e do “sufrágio universal”. Afirmavam em seu manifesto:
As tradições do velho regime, aliadas aos funestos preconceitos de uma escola política meticulosa e suspicaz, que só vê nas conquistas morais do progresso e da liberdade invasões perigosas, para quem cada vitória dos princípios democráticos se afiguram uma usurpação criminosa, hão por tal forma trabalhado o espírito nacional, confundindo todas as noções do direito moderno, anarquizado todos os princípios tutelares da ordem social, transtornado todas as consciências, corrompido todos os instrumentos de governo, sofismado todas as garantias de liberdade civil e política, que o momento atual tem de ser forçosamente – ou a aurora da regeneração nacional ou o ocaso fatal das liberdades públicas. (Chacon, 1981: 239)
As posições desses dois partidos fizeram, pelo menos na Bahia, a Igreja Católica pender para a ala do Partido Conservador nas eleições que se fariam no ano de 1889: “O partido conservador só conseguirá definir a sua posição na política do país, quando se declarar francamente católico” (Leituras Religiosas da Bahia, 1889). Como dissemos, nas eleições que se fariam, pois o golpe que implantou a República veio em novembro do mesmo ano.
Apesar desses dois partidos representarem o pensamento liberal, ainda assim, havia divergências quanto a certos aspectos. Um deles foi o tipo de relação que o Estado deveria firmar com a Igreja Católica ou qualquer outra denominação religiosa. Foi assim que se verificaram dois modelos liberais que definiam uma “ideal” separação entre Igreja e Estado. O modelo de Estado laico era aquele defendido pelos seguidores do constitucionalismo norte-americano e para eles: “O Estado, que não é teólogo, não arroga a si o direito de escolher entre as religiões uma considerando-a verdadeira, para impô-la à sociedade, deixando que cada indivíduo aceite a religião que lhe parecer mais conveniente” (Senado Federal, 1985: 65). Já o modelo de Estado ateu, defendido pelos positivistas republicanos, acreditava que o povo “já havia abandonado o teologismo e separou-se do clero católico em todas as questões onde ele já conhece as soluções dadas pela ciência”. O povo “sentia a vista deste espetáculo e, infelizmente, à vista da conduta moral dos sacerdotes
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teológicos, que a fé sobrenatural não lhe oferece mais um apoio seguro (...)” (Senado Federal, 1985: 29-32). Portanto, se a concepção de um Estado ateu prefigurava o banimento de qualquer influência religiosa da política e da sociedade, o modelo de Estado laico defendia que cada indivíduo poderia adotar a religião que bem lhe aprouvesse, mas o Estado, como a “reunião deles” deveria ser isento de qualquer forma de apoio. No momento da criação do decreto de separação entre Igreja e Estado, o modelo que se tornou hegemônico foi o norte-americano. Talvez, a explicação desse fato se encontre tanto no número reduzido de positivistas existentes no legislativo (se comparado ao número de americanistas) como também no fato da própria Igreja Católica, não podendo mais impedir a separação, ter defendido o modelo americanista, numa espécie de “dos males o menor”. Diziam: “A constituição federal dos Estados Unidos [da América] tão fora está de ser indiferente em matéria religiosa, que está toda baseada no princípio que existe uma Religião verdadeira incumbida de dirigir todas as ações dos homens, e que essa religião deve ser respeitada e mantida como primeiro elemento da ordem social (...)” Desta forma, “a lei dos Estados Unidos não só não professa o ateísmo, como nem permite a propagação desta infame doutrina” (Moog, 1983: 17-58). Como se vê, é clara a opção pelo modelo americanista por parte dos membros da Igreja.
Neste sentido, separada do Estado e extinta todas as prerrogativas do padroado régio, a Igreja Católica que sempre influenciou nos destinos políticos do país, tanto pelo sistema de união entre ambas instituições como pelo pertencimento de muitos sacerdotes à administração pública, passou a elaborar novas estratégias de participação na vida política do país. A primeira delas foi a tentativa de criação de um partido católico, para lutar na esfera legal pelos “direitos da Igreja”. Alegavam os eclesiásticos que o partido não era “um partido de padres, nem em sua organização, nem nos seus meios de ação, nem nos seus representantes”. Até porque, argumentavam, o clero nacional na situação em que se encontrava, “tão reduzido”, era mais importante cuidar dos 6
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“árduos deveres do seu sagrado ministério”, que se envolver diretamente em questões políticas (Leituras Religiosas, 1890). Assim, no dia 28 de maio de 1890, no Rio de Janeiro, como relatou o periódico católico baiano, “Leituras Religiosas”, “(...) reuniram-se mais de duzentas pessoas em uma das principais salas do Liceu de Artes e Ofícios, com o fim de fundar ali o partido católico” (Leituras Religiosas, 1890). Mas essa primeira estratégia de participação política por parte da Igreja minguou rapidamente por fatores internos e externos à instituição. Externamente, pela posição dos políticos brasileiros que de fato pretendia afastar o clero da vida pública e publicou um parecer para o projeto da Constituição de 1891(que sancionou a separação) que proibia o alistamento de “todos os religiosos de ordens monásticas, companhias ou comunidade de qualquer denominação, sujeitas a voto de obediência, regra ou estatuto que importe renúncia de liberdade individual” (Senado Federal, 1985: 20). Esse parecer gerou muita discussão e demonstrava a séria intenção desses políticos. Outro fator de ordem interna à instituição, talvez tenha sido mais importante – a indicação contrária de Roma à criação de um partido. Embora em Minas Gerais, Oscar Lustosa aponte para novas tentativas de criação de um Partido Regenerador, ligado à Igreja em 1909 e 1910 (Lustosa, 1983: 53-89), o fato é que a idéia acabou não vingando e estava abortada a decisão de criação do partido. Na Bahia, seus membros foram integrados ao Partido Nacional (Sampaio, 1975: 15-17).
A segunda estratégia de participação e influência da Igreja na vida política do país se deu de maneira informal. Num regime de colaboração entre as elites locais e os membros do clero católico. Por isso, Sérgio Miceli apontou que “a separação não significou uma ruptura com os grupos dirigentes locais (...)” (Miceli, 1988: 21). Embora legalmente vigorasse o regime de separação entre Igreja e Estado, o que se viu foi um conjunto de favores entre as principais figuras das políticas locais e os administradores apostólicos, isto é, os bispos. Os primeiros, muitas vezes patrocinavam a expansão administrativa da Igreja com recursos próprios (até onde podemos verificar) e também participavam e
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se faziam representar nas celebrações religiosas católicas, procurando legitimá-las. Os segundos legitimavam as campanhas políticas de certas figuras dando-lhes apoio e indicando seus nomes ao governo da coisa pública: “(...) os católicos devem escolher entre os candidatos que se apresentarem, os que se distinguirem pelas suas convicções e os que tiverem dado prova de amor e respeito à Igreja (...)” (Leituras Religiosas, 1902). Esse apoio mútuo justificou as palavras de Thales de Azevedo, quando afirmou ter a separação entre Igreja e Estado assumido por volta dos anos 20, um caráter de “separação de jure”, isto é, legal (Azevedo, 1978: 161). Não afirmamos exatamente o período apontado pelo autor, pois mesmo antes dos anos 20 já percebemos exemplos desse tipo de relação entre Igreja e elite política. Contudo, é certo que a separação entre Igreja e Estado já havia cumprido seu papel contextual, característico da segunda metade do século XIX.
A reforma da Igreja Católica na Bahia
Como já foi ressaltado, desde o século XIX a Igreja Católica clamava por reformas em suas estruturas. Na Bahia, queixava-se ainda mais do mau atendimento às populações espalhadas pelo território da arquidiocese (principalmente nos sertões mais afastados), da falta de clérigos que pudessem ministrar os sacramentos e mesmo da qualidade intelectual desses sacerdotes. Para os membros da instituição católica essa situação era, em boa medida, decorrente do abandono do Estado imperial que pouco se importava com os assuntos concernentes à religião. A Igreja que era “fundamental” ao regime, sustentáculo do Trono, não poderia viver aquele descalabro. E mais, na visão dos religiosos, essa situação passou a ocorrer desde que os liberais brasileiros passaram a influir de maneira significativa na política nacional, apresentando como anacrônico o sistema de união entre Igreja e Estado e a influência dela na política e na sociedade.
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O próprio padroado régio havia se tornado naquela conjuntura um elemento opressor para Igreja pelas constantes intervenções em seus assuntos (vimos o que ocorreu na “Questão dos Bispos”). Apesar de suas prerrogativas que concediam privilégios como o monopólio religioso ao catolicismo, uma subvenção, ainda que parca aos cultos, e o status de religião oficial, os membros da Igreja insistiam em justificar a desestruturação eclesiástica como fruto do desinteresse estatal em seus problemas. Em nossa concepção, o primeiro bispo a lutar de forma relevante em prol de uma reforma da instituição católica, foi o já citado D. Romualdo Antônio de Seixas quando foi arcebispo da Bahia. Além de lutar pela imagem da Igreja como sustentáculo do Trono e pela defesa da ordem, o arcebispo iniciou reformas que deveriam abranger a qualidade dos clérigos, no que diz respeito ao seu comportamento e ao conhecimento dos cânones. Também empenhou esforços para uma reformulação das expressões de fé e religiosidade do povo baiano, não condizente com determinados padrões do catolicismo romano. Contudo, com a sua morte em 1860, as tentativas de reforma ficaram barradas na constante vacância do solo primacial e na inconstância dos arcebispos que estiveram no cargo. Os mesmos, de acordo com Cândido da Costa e Silva, queixavam-se da “seara por se trabalhar”, apresentando motivos de “doença”, “velhice” e, estranhamente, “consciência” (Silva, 2000: 242-243).
Neste sentido, foi apenas depois da separação entre a Igreja e o Estado que a instituição católica pôde se dedicar as suas reformas. E embora fossem contrários a esse advento liberal do mundo moderno afirmaram em sua pastoral coletiva de 1890:
Será a liberdade da Igreja um bem? Incontestavelmente o é, dignos cooperadores e filhos muito amados; e sumo e inapreciável.
Tamanho bem, tão precioso, tão essencial ao pleno desenvolvimento de sua vida, que a Igreja o pede de contínuo a Deus na sua liturgia: ut destructis adversitatibus et erroribus universis. Ecclesia tua secura tibi serviat libertate. Senhor, diz ela, acabai com as adversidades que me oprimem com todos os erros que me assaltam e tolhem a ação, para que eu possa servir em segura liberdade (Moog, 1981: 37).
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No arcebispado primaz, coube ao primeiro arcebispo do período republicano, D. Jerônimo Thomé da Silva (1894-1924), as reformas pretendidas desde o século XIX. Reformas que, diga-se de passagem, foram levadas pelo ideal de romanização1 existentes no século anterior (séc. XIX). Era os seminários o ponto de apoio para a reforma da instituição, pois, como cita Oliveira, a reforma deveria começar pela instituição e depois chegar aos fiéis (Oliveira, 1985: 282). Em carta pastoral publicada pela “Revista Eclesiástica da Bahia”, o baiano Miguel de Lima Valverde, bispo da diocese de Santa Maria afirmou:
É disposição do S. Concílio de Trento, (sess. XXIII cap. XVIII) que cada diocese tenha o seu seminário. E no dizer do B. Gregório de Barbarigo é impossível dar a uma diocese boa direção e governo, sem auxílio de um ótimo e florescente seminário, onde é florescente um seminário, florescente também é a diocese e onde é decadente o seminário agonizará a diocese.
Nada há mais necessário para uma diocese do que ter bons sacerdotes, em número suficiente, para atender ao serviço das almas. Os meios devem ser adequados aos fins (Revista Eclesiástica, 1912: 165-171).
Desde 1856 no governo de D. Romualdo, os lazaristas dirigiam o Seminário da Bahia cumprindo apenas o papel de diretores e não de professores da instituição, como citou Kátia Mattoso (Mattoso, 1992: 386-387). A explicação da escolha pelo arcebispo, estava no fato desse mesmo instituto ter exercido um papel fundamental na reforma dos seminários eclesiásticos na França e em outros países da Europa. Contudo, em 1862 o contrato assinado foi suspenso, retornando os lazaristas apenas em 1888, no arcebispado de D. Luis Antônio dos Santos. No século XX, na administração de D. Jerônimo, a administração continuou sobre a batuta dos mesmos religiosos, mas desta vez, inclusive como professores.
1 A romanização é uma tentativa de centralização do poder nas mãos do pontífice e da hierarquia e também uma tentativa de reforma dos padrões de religiosidade popular conforme estabelecido por Roma.
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Além da melhora do nível intelectual e moral dos clérigos, a hierarquia enfrentava um outro problema que era a diminuição constante no número de ordenações. Enquanto a população crescia, a quantidade de indivíduos dispostos a seguir a carreira eclesiástica oscilava-se em baixos números. No século XIX, Mattoso assinalou que “em 1861 houve seis ordenações; em 1870, oito; em 1886 e 1889, cinco.” (Mattoso, 1992: 354). Por pesquisas feitas nos Boletins Eclesiásticos e por uma contagem dos processos de vita et moribus e genere et moribus existentes no Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador, percebemos que apesar dos esforços, o número de ordenações anuais, em média, entre os anos de 1890 e 1930 foi pequeno se considerarmos a necessidade de aumentar o efetivo. Pelos processos de vita e genere et moribus a média foi de 3.3 ordenações, como segue a tabela a baixo.
Ano
Número de ordenações
Ano
Número de ordenações
1890
08
1910
07
1891
02
1911
02
1892
01
1912
02
1893
07
1913
02
1894
04
1914
01
1895
04
1915
10
1896
_
1916
05
1897
03
1917
_
1898
01
1918
04
1899
05
1919
02
1900
07
1920
03
1901
07
1921
_
1902
04
1922
02
1903
05
1923
01
1904
05
1924
_
1905
01
1925
_
1906
08
1926
01
1907
02
1927
01
1908
07
1928
_
1909
05
1929
02
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Quanto aos Boletins Eclesiásticos, para os anos encontrados a média foi ainda menor, 1.8.
Ano
Número de ordenandos
1908
04
1915
03
1916
06
1917
01
1918
_
1919
02
1920
04
1921
01
1922
_
1923
01
1924
02
1925
04
1926
01
1927
01
1928
02
Por isso, comentaram os religiosos:
As ordenações sacerdotais tornam-se cada vez menos numerosas, os claros se abrem numa desproporção aterradora nas fileiras do clero, criando, assim, uma situação intolerável e cheia de gravíssimas ameaças para o futuro.
De fato, quando cresce o censo da população, decresce o do sacerdote; quando por toda parte se levanta o erro para suplantar a verdade, conseguindo muitas vezes extinguir a fé em corações simples, arrastando insensivelmente a massa do povo a indiferença religiosa. (Atas e Documentos do II Congresso Católico, 1910: 202-207)
O autor do artigo, o já citado Miguel de Lima Valverde, era nessa época monsenhor e diretor de um importante instrumento para a resolução do problema da escassez na Bahia – a Obra das Vocações Sacerdotais -, que tinha como objetivo, dar abrigo aos jovens vindos do interior do estado. Nesta fase, costumava-se afirmar, e com razão, que a maioria dos candidatos ao
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sacerdócio vinham do interior e de pequenas cidades2. Outro ponto importante nesse discurso do eclesiástico diz respeito aos motivos que levaram a tal situação. O “erro que suplantava a verdade” era em outras palavras, o pensamento liberal e mesmo as profissões liberais, como o jornalismo, a medicina, o direito e a engenharia, que se apresentavam como novas opções desde a segunda metade do XIX. Para nós, certamente essas profissões tinham um papel relevante na diminuição do número de candidatos ao clero, pois os que seguiam para os seminários em outros tempos, muitas vezes iam apenas para obter uma formação básica para depois poder seguir outras carreiras, já que todo “sistema” de ensino estava ligado aos religiosos.
Ora, ainda quanto à questão da escassez de efetivo do clero secular, a Igreja na Bahia tendeu a utilizar as diversas Ordens e Congregações como mão-de-obra substitutiva ao clero diocesano. Se no século XIX também este clero regular passava por um processo de decadência, no início do século XX, percebeu-se um incremento no número de religiosos aqui existentes, muitos vindos de países onde o anticlericalismo se fortalecia. Esses religiosos desempenharam importante papel na reestruturação interna e externa da Igreja. Internamente, como já vimos, os lazaristas foram responsáveis pela direção do Seminário Arquiepiscopal da Bahia. Já os agostinianos recoletos foram responsáveis pela administração de muitas paróquias na capital e no interior (Azzi, 2001: 241-242)3. Externamente, isto é, no contato com a sociedade, o papel dos institutos religiosos foi ainda mais importante. Destacaram-se na área da educação formal, pois dela dependia o controle ideológico da Igreja que se preocupava com o laicismo que invadiu as classes alta e média e com o crescimento das novas denominações protestantes, proselitistas, favorecidas pela liberdade religiosa. Foi exatamente para essas classes que uma rede de escolas de nível fundamental e médio foram criadas.
2 Pudemos constatar isso nas pesquisas feitas por uma análise dos processos de vita e genere et moribus.
3 O autor assinala que com a criação das dioceses da Barra e Caetité, os religiosos agostinianos passaram a se concentrar unicamente na capital do estado.
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Os jesuítas, por exemplo, dirigiam seu “grande e repleto Colégio Antônio Vieira”, onde “administram a educação moral e religiosa às crianças das principais famílias baianas”; os Irmãos Maristas também tinham “um grande colégio, em vasto edifício próprio, além de outras escolas que, nesta capital e fora dela, dirigem”; os Salesianos, por sua vez, tinham “um edifício de último construído, acham-se bem instalados, educando e ensinando com proveito os alunos que, em grande freqüência estudam os seus cursos e trabalham nas suas oficinas”. Já as Ursulinas “sustentam dois grandes colégios, com externato e internato, ambos frequentadíssimos...” (Revista Eclesiástica, 1915: 219-233). Mas esses institutos, em especial, os femininos, também deram importância às obras de beneficência social. Fundaram um conjunto de hospitais, asilos e orfanatos, que tornavam práticos o discurso da caridade cristã. As Irmãs Dorotéias dirigiam o Asilo Conde Pereira Marinho, na capital; as Irmãs Sacramentinas, o Asilo e Hospital Nossa Senhora de Lourdes, na cidade de Feira de Santana; e as Irmãs de Caridade, o Asilo da Lapa e o Orfanato do Sagrado Coração de Jesus, ambos na capital.
É importante dizer que esse clero regular também foi vital para o trabalho de missões desempenhadas nas regiões mais distantes dos centros urbanos. Exerceram pregações, nas quais se destacaram os capuchinhos italianos. De acordo com Fragoso estes “exteriorizavam, até certo ponto, espiritualidade franciscana”, que se tornava mais visível pelo “despojamento pessoal”, dedicando-se, sobretudo, ao trabalho para com os pobres (Fragoso, 1987: 21). Outra Ordem que exercia a atividade das missões eram os lazaristas, que davam ênfase à catequese de crianças e adultos, à divulgação de catecismos, à insistência na prática da confissão e da comunhão freqüentes e à restauração da paz e harmonia entre pessoas e grupos sociais (Fragoso, 1987: 26). Este último aspecto citado pelo autor merece destaque. As missões muitas vezes cumpriram um papel de apaziguamento nos conflitos ocorridos no interior. No caso de Canudos, foi o frei João Evangelista de Monte Marciano quem serviu a Igreja como informante e pacificador do conflito. Lá pregou uma
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santa missão, onde o tal Conselheiro edificou uma capela e acha-se entrincheirado com milhares de pessoas. O zeloso missionário, com a sua apostólica, conseguiu fazer dispersar-se a maior parte da gente que seguia o fanático, a qual constava-se por milhares; porém, não conseguiu que se retirassem aqueles que constituem o exército de defesa do Antônio Conselheiro, em número superior a mil homens, armados até os dentes (Leituras Religiosas, 1895).
Como se nota, nesse evento a Igreja assumiu uma postura contrária ao movimento. Provavelmente este fato se deve ao modelo centralizador que havia assumido por conta da romanização e também pela sua conhecida postura de combate a determinadas características da religiosidade popular. É relevante dizer ainda que a necessidade de mostrar lealdade à República e às autoridades naquele momento parecia fundamental.
Em suma, neste último ponto de análise da reestruturação interna da Igreja Católica, queremos destacar a reforma patrimonial e jurisdicional da Arquidiocese da Bahia. Nela o arcebispo D. Jerônimo Thomé da Silva, esmerou-se em recompor ou mesmo criar um patrimônio para a instituição católica que sofreu grande abalo com a perda da subvenção dos cultos e a perda de determinados bens. Ele é parabenizado por ser o grande responsável pelas reformas ocorridas no arcebispado. Como afirmaram os jesuítas em comemoração ao 25º aniversário de sua sagração episcopal, foi ele quem constituiu o patrimônio da mitra diocesana, que “nunca fora executada pela estribada confiança depositada no governo imperial”. Complementaram dizendo que, “o seu sucessor no sólio desta arquidiocese encontrará, para a garantia da livre ação do múnus episcopal, um patrimônio de mais de mil e quinhentos contos, formados pela fortuna própria e pelas sábias e justas indústrias do tino administrativo de S. Exc. Revmo.” Ao mesmo arcebispo é dedicado reaver o patrimônio da Igreja na Bahia, isto é, os terrenos que se estendiam do palácio do governo à Catedral; e também remover a Faculdade de Medicina e a Biblioteca Pública instaladas na mesma Catedral (Revista Eclesiástica, 1915: 219-233). Outras lutas empenharam o prelado no sentido
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de reconstituir o patrimônio da instituição católica no estado, mas aqui é suficiente dizer que não raras vezes teve de ir à justiça para alcançar seus objetivos.
Quanto à reorganização jurisdicional, diz respeito ao fracionamento do espaço geográfico do arcebispado. D. Jerônimo Thomé da Silva afirmou que quando assumiu a arquidiocese tinha “fresca idade e vigorosa saúde”, assumiu, pois, “uma das mais importantes obrigações de pastor, qual é conhecer as ovelhas de seu querido rebanho e ser por elas conhecido”. Sua visita pastoral, como relatou em sua Carta Pastoral anunciando a criação de novos bispados, “durou longos anos”, percorrendo quase todo o território da arquidiocese, que no período alcançava a Bahia e todo o estado de Sergipe. Cavalgou por lugares “difíceis e montanhosos”, tornando frágil sua saúde e reconhecendo a necessidade da ação episcopal que havia no interior da arquidiocese (Revista Eclesiástica, 1914: 1-5). Daí seu objetivo de dividir aquela jurisdição, que havia se tornado em outros tempos um dos grandes empecilhos administrativos dos bispos que o antecederam. Sua proposta foi enviada a Roma e aceita. A primeira diocese criada foi a de Aracajú, em 3 de janeiro de 1910, que correspondia a todo o território civil do estado de Sergipe. Depois, em 1913, foram criadas as dioceses de Caetité, Barra do Rio Grande e Ilhéus, todas na Bahia. Na verdade, a criação de novas dioceses não foi um processo restrito à Bahia, mas ocorreu em âmbito nacional e
...a Bahia, alma mater da nacionalidade brasileira, aureolada sempre de tradições tão gloriosas, não pode, nem deve deixar de acompanhar o exemplo edificante que lhes ofereceram os estados de São Paulo e Minas Gerais, onde se multiplicam as dioceses num testemunho eloqüente e insofismável do quanto vale a boa vontade quando posta a serviço das nobres causas (Revista Eclesiástica, 1912: 78)
Mas além da questão da dimensão da arquidiocese outros problemas podem ser apontados. Sérgio Miceli argumentou que existia uma tendência político-institucional da Igreja de seguir o modelo republicano de organização
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do Estado, ou seja, a federação. Em outras palavras seria descentralizar a administração para estar mais próximo dos fiéis e das elites governamentais. O autor fala de uma “estadualização” do poder eclesiástico. Se até 1890 as doze dioceses existentes estavam situadas em dez províncias e nove capitais, além daquela estabelecida na Corte, no período de 1890-1930, as outras onze capitais estaduais foram convertidas em sedes diocesanas (Miceli, 1988: 59-60). Contudo, existem outros fatores que nortearam esse processo de re-divisão espacial. É o que o autor chama de lógica da “segurança”, isto é, o combate a movimentos cismáticos como o de Canudos e o de Juazeiro, do padre Cícero. Para a instituição católica ambos desafiavam a autoridade da hierarquia, com até a possibilidade de jogar o governo republicano contra a instituição. Como colocamos, era importante para os membros da Igreja dar provas de fidelidade à República. Mais dois elementos são apontados pelo autor e que para nós parecem de relevância. Dizem respeito ao crescimento econômico e ao desenvolvimento das cidades e estados na Primeira República. Onde as cidades se desenvolveram e foi possível firmar um “acordo” com as elites locais, foi possível também angariar fundos para a formação do patrimônio dessas novas dioceses, uma vez que os recursos necessários vinham dessas elites. Na Bahia, por exemplo, a “Revista Eclesiástica” publicou os comentários de um jornal de Ilhéus sobre os recursos para a obtenção da residência do bispo e para a formação do patrimônio do bispado: “A comissão nomeada para esse fim (provimento da residência do Bispo) e para adquirir o patrimônio do bispado está se aparelhando para dirigir pedidos aos fazendeiros e negociantes no sentido de bem cumprir sua missão, confiante que ninguém se recusará a concorrer para um fim tão nobre e grandioso...” (Revista Eclesiástica, 1914: 59). Deste modo, o mesmo clientelismo característico dos próceres das oligarquias, também se estendeu aos membros da Igreja, sendo elemento providencial ao seu projeto de expansão administrativa. A criação de novas dioceses tinha, na prática, o
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objetivo de estar próximo às elites locais e próximos aos fiéis que a instituição procurava manter sob seu controle.
A Igreja Católica numa nova relação com seus fiéis
Indubitavelmente, devemos compreender o catolicismo como dois corpos distintos. A instituição, com seus membros, e o laicato, com seus fiéis que, a princípio, são o motivo da existência da instituição. Como nos aspectos já vistos a Igreja Católica tentou reformular suas estruturas internas e o mesmo ocorreu com a sua forma de se relacionar com os leigos. Especificamente, desde o século XIX a hierarquia católica se preocupou com o papel que o laicato ocupava na Igreja e com a própria forma deste expressar sua fé. Assim, foi também o arcebispo D. Romualdo Seixas que procurou reavaliar essa posição. Criticava-se desde as formas de organização do laicato, que geralmente se dava de forma muito independente ao clero até a forma como se transcorriam as festas religiosas. Ou seja, por conta da escassez de sacerdotes o próprio laicato organizava-se de forma muito independente da Igreja4, produzindo ritos e tradições não aceitas pela Sé romana. Lembremos que o processo de romanização acima de tudo foi um processo de centralização do poder e da autoridade do papa. E acrescentamos, do bispo sobre o padre e de todos sobre os leigos. Portanto, aquelas tradicionais organizações, irmandades, ordens terceiras e outras confrarias não cabiam mais no modelo pretendido pela Igreja.
No I Congresso de leigos, realizado em Salvador, em 1900, estabeleceu-se que as irmandades e confrarias poderiam ser formadas, mas deveriam “ser chamadas ao seu verdadeiro fim e postas em inteira sujeição ao Ordinário da Diocese em que se achavam”. Que deveriam se instituir sempre sob a “direção segura e salutar do Ordinário” (Atas e Documentos do I Congresso Católico de
4 É preciso esclarecer que essa não é uma característica produzida no Brasil, mas é resultado das próprias condições da Igreja na Europa.
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Leigos, 1900: 61-79). Neste sentido, decorreram conflitos como o fechamento das portas da igreja do Bonfim, em 1890, quando ficou proibida a lavagem do templo pelas baianas; o conflito pela posse dos bens da irmandade do S. S. Sacramento, instalado na igreja da Sé, que seria derrubada em 1933; e a dissolução de irmandades que “desrespeitavam” a autoridade dos prelados da arquidiocese.5
Analisemos agora mais de perto o problema das festas e celebrações que em sua maioria eram organizadas por esse laicato. O modelo de “culto externo” existente, na visão dos eclesiásticos, não representava a “religião católica”, mas um “fetichismo bárbaro”, proveniente da “ignorância religiosa” das massas. Questionavam assim:
(...) Senhores, será culto externo o que aqui tantas vezes vemos entre nós? Será culto externo essas festas ruidosas em que o estourar das bombas e o espoucar dos foguetes se misturam a essas melodias que só despertam lembranças profanas? Será culto externo esse agrupar de multidões sem respeito, sem acatamento dos Santos Altares? Será culto externo o envergar do hábito de uma irmandade, que não admite submissão inteira à autoridade espiritual e a hierarquia? Não senhores, mil vezes não. O culto externo é o grito sublime de nossa fé, atirada aos quatro ventos do mundo como o precursor do nosso triunfo futuro (...)
Trabalhemos, senhores, para reanimar o culto externo entre nós, demos-lhe este caráter inteiramente religioso que faz sua grandeza; alijemo-la de tantas inutilidades, que lhe deturpam a sublime majestade. (Atas e Documentos do I Congresso Católico de Leigos, 1900: 61-79)
Portanto, mais do que celebrações era fundamental dar provas de uma religiosidade “civilizada”, de uma religião “civilizada”, que pudesse atrair, inclusive, os descrentes na fé católica (para as elites não-católicas o catolicismo era freqüentemente atrelado ao atraso político e cultural do país). Assim, as tradicionais festas e celebrações promovidas pelo laicato passaram a ser alvo de duras críticas pela Igreja, que não tardou a incentivar outros tipos de eventos mais condizentes com o modelo romanizado. Deu ênfase ao
5 Esses conflitos foram narrados em nossa dissertação de mestrado, “Igreja Católica na Bahia: a reestruturação do Arcebispado Primaz (1890-1930)”.
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Santíssimo Sacramento e a Eucaristia. Mesmo novos cultos foram incentivados, em especial, o culto a Nossa Senhora, nas suas diversas versões, o culto ao Sagrado Coração de Jesus e a São José. Muitos deles, é bom que se diga, foram introduzidos pelas novas Congregações religiosas que entraram no Brasil no início do século XX (Oliveira, 1985: 286).
Quanto as tradicionais associações, foram perdendo gradativamente o poder sobre os fiéis, e, a própria hierarquia deixou de incentivá-las, percebendo seu caráter inapropriado. Daí passou a incentivar outros tipos de organizações mais próximas do modelo desejado. Essas organizações tinham objetivos diversos, mas uma coisa em comum – a total submissão à hierarquia. Apresentemos alguns exemplos: A Liga das Senhoras Católicas Brasileiras, fundada em 1914, deveria “congregar as vontades femininas, especialmente para defender a Santa Igreja Católica e propagar seus ensinos na família e na sociedade”, constituindo-se num “grande núcleo de energia moral feminina capaz de agir, trabalhar e resistir, disciplinada e metodicamente numa ação geral arregimentada (...) e mais eficaz” (Manuscritos de D. Jerônimo Thomé da Silva, 1894-1924); as Damas de Caridade centralizavam a sua ação no campo da beneficência social, ou seja, no atendimento às comunidades pobres da arquidiocese, chegando, inclusive, a dar “trabalho e abrigo as jovens ainda não bafejadas pelo conforto da fortuna” (Muller, 1923: 53); a Associação de Estudantes Católicos, visava levar o catolicismo aos estudantes das escolas leigas, procurando afastar o ensino liberal e “ateu” dos jovens baianos; já a Liga da Boa Imprensa, deveria congregar os órgãos de imprensa católicos numa associação única, para dar-lhes também uma direção única, pois “é, foi e será a imprensa, que há de decidir da vitória, por ser a arma de maior precisão e de maior alcance”. Com exceção desta última, todas as organizações até agora apresentadas reuniam as classes média e alta católicas na Bahia. Era uma estratégia consciente para não só mantê-las perto, mas também utilizá-las como instrumento de defesa aos interesses católicos e ataque aos valores do mundo moderno, afinal, como argumentavam os religiosos,
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(...) é mister sobretudo que as pessoas mais notáveis da sociedade, aquele que por sua posição social ocupar cargos honrosos, façam ato de culto público para o povo, influindo em seu ânimo, fazendo ter um alto conceito da religião e da piedade, estimulando seus iguais em condição, levar de vencido o respeito humano, que os escraviza longe das práticas da religião (Atas e Documentos do I Congresso Católico de Leigos, 1900: 61-79).
Para os populares, porém, a Igreja tinha um outro projeto de atração. Era a ação catequética. Para isso incentivou em diversas regiões as Congregações da Doutrina Cristã, que visavam, obviamente, promover a catequese em toda a arquidiocese. Este ensino, em tese, deveria caber aos párocos, mas na sua falta, este serviço deveria ser desempenhado por outras pessoas aptas a fazê-lo. O “Regulamento para o catecismo” estabelecia que deveria haver pelo menos duas aulas, “sendo a primeira destinada a preparar os alunos nos rudimentos da fé, e a segunda para lhes dar, depois da primeira comunhão, uma instrução mais sólida, de acordo com as necessidades dos tempos e a capacidade dos alunos” (Estatutos da Congregação da Doutrina Cristã, 1926: 13-18). Determinava ainda que deveria se fazer divisão entre alfabetizados e analfabetos, onde no primeiro o ensino deveria ser mais “demorado e intuitivo”, que no segundo, além de uma divisão entre meninos e meninas. (Estatutos da Congregação da Doutrina Cristã, 1926: 13-18)
Com essa diversidade de associações e fins, a Igreja na Bahia tratou de criar mais uma associação para “concentrar as forças vivas de cada associação.” A “Confederação das Associações Católicas”, foi fundada em maio de 1914, sob o patrocínio de D. Jerônimo Thomé da Silva e deveria envidar esforços na “defesa dos interesses do Catolicismo, principalmente no que diz respeito à ação católico-social”. Em sua inauguração já contava com 39 associações, desde as tradicionais irmandades e ordens terceiras às novas associações romanizadas. Abria ainda espaço para outras que também quisessem se filiar. Era regida por um Conselho superior de nomeação da 21
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autoridade diocesana, sob cuja inspiração e ordem deveriam sempre agir (Revista Eclesiástica, maio de 1914: 85-86).
Conclusões Finais
Em suma, se o final do século XIX se apresentou como um período de grandes dificuldades para a Igreja Católica no Brasil, o início do século XX, em especial, a Primeira República, mostrou-se decisivo no que concerne ao seu processo de reestruturação, tanto em suas estruturas internas, como também nas suas formas de relação com o Estado e a sociedade. Movida pelo ideal de romanização ela procurou homogeneizar seus discursos e suas práticas, tornando a hierarquia o centro de toda ação religiosa. Portanto, esse processo de romanização foi uma tentativa de centralização de uma Igreja que até então se queixava do isolamento entre párocos e bispos, entre povo e religiosos. De uma instituição que encontrou no fim do sistema de união entre Igreja e Estado a perda de privilégios, mas também a oportunidade de promover mudanças necessárias ao seu avanço. O discurso da imutabilidade, do a-historicismo, apenas se traduziu em suas posições conservadoras frente à política e a sociedade. Defendeu a monarquia e suas instituições até onde pôde, aliando-se depois à República; procurou alcançar espaços onde não se fazia presente por conta da concorrência protestante e espírita; buscou reformular seus quadros de pessoal, melhorando também a qualidade dos mesmos; finalmente, submeteu as tradicionais organizações laicas e incentivou novas organizações e novos cultos, que em sua essência possuíam o caráter do modelo desejado.
No demais dizemos que apesar de ter assumido essas características no Bahia e no Brasil, esse processo foi um processo mundial que pôs a Igreja contra os valores da modernidade. Contra o liberalismo, político e muitas vezes econômico, contra o socialismo, o protestantismo, o indiferentismo religioso e o cientificismo. Uma cadeia de erros que estava levando o mundo ao caos e
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afastando o homem de Deus. Só a Igreja poderia fazer volver a paz, o consórcio entre Deus e os homens.
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Recebido em abril/2007.
Aprovado em junho/2007.
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Fonte: http://www.unicamp.br

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