Conhecido por suas teses controversas, filósofo analítico diz que não existe mais uma filosofia alemã, critica a presença da Alemanha no Afeganistão e afirma que o Brasil agiu certo ao tentar negociar com o Irã.
O filósofo Georg Meggle, professor emérito da Universidade de Leipzig, é conhecido por suas teses polêmicas e pelo estilo singular de abordar problemas atuais de relevância internacional. Representante da Filosofia Analítica, uma escola de pouca tradição na Alemanha, ele é autor de inúmeros artigos e livros sobre temas como comunicação e teoria semântica da ação.
Ultimamente, tem se preocupado em escrever algo não apenas para o público especializado, mas também para o público em geral. Em seu novo livro Intervenções Filosóficas [Philosophische Interventionen. Paderborn: mentis, 2011], Meggle aborda temas controversos, como a Guerra do Iraque, o conflito no Oriente Médio, o programa nuclear do Irã, o antissemitismo e o terrorismo.
Deutsche Welle: Para que precisamos ainda hoje – ou especialmente hoje – da Filosofia?
Tão logo se coloquem certas questões fundamentais (como, por exemplo, o que é o ser humano?) está-se praticando Filosofia, ao menos em princípio. Por sorte, tais questões continuam sendo colocadas ainda hoje, o que torna a primeira parte da sua pergunta muito fácil: enquanto nos colocarmos perguntas filosóficas, precisaremos da Filosofia.
Mas por que precisamos especialmente hoje da Filosofia? Por exemplo, pelo fato de haver hoje pessoas que se consideram as mais inteligentes e que são da opinião de que perguntas sobre a nossa existência não devem mais ser levantadas.
Diante disso, parece-me especialmente importante que, através de uma boa filosofia, fique claro como tais opiniões se baseiam numa falsa imagem de nós mesmos. Justamente a função crítica da
Filosofia é hoje especialmente necessária.
Há outro campo de ação da filosofia crítica que ganha atualmente maior importância, embora tenha sido pouco enfocado até então: parece-me que há amplas partes do discurso comum que não são suficientemente esclarecidas e conduzem a um olhar totalmente falso sobre a realidade.
É o caso, por exemplo, do terrorismo, uma área especial da filosofia prática da qual me ocupo há dez anos. Grosso modo, não apenas não há clareza quanto à interpretação do termo “terrorismo” no discurso comum, mas a clareza se tornou mesmo um tabu. Porque não se quer enxergar que terrorismo não é apenas uma prática "dos outros".
Como lidar, enquanto filósofo – especialmente filósofo analítico – com esse e outros fenômenos chamados de dissonâncias cognitivas coletivas? Um problema de suma importância que, no entanto, foi muito pouco debatido, e no qual qualquer declaração pode ser imediatamente interpretada como um lance estratégico no jogo entre argumentos contrários e favoráveis ao terrorismo.
Isso torna a Filosofia muito mais próxima da realidade e mais empolgante para os próprios pensadores, porém, ao mesmo tempo, muito mais perigosa. Nesse sentido, hoje em dia uma filosofia de relevância prática é inevitavelmente perigosa.
Quais são hoje as tendências da filosofia, mais concretamente da antropologia filosófica, na Alemanha?
Pois bem, as velhas ordens do pós-Guerra – a filosofia crítica da Escola de Frankfurt de um lado, o positivismo de outro, e o amplo espectro de tradicionalistas (kantianos, hegelianos, existencialistas) – já são história. Na Antropologia, Arnold Gehlen [1904-1976] e Helmuth Plessner [1892-1985] continuam sendo referência.
No entanto, os principais debates hoje giram em torno de teses sobre uma – em maior ou menor escala – radical naturalização do espírito, provenientes principalmente de países anglo-saxônicos. Eu acredito que uma boa filosofia analítica é, também nessa área, a mais apropriada para separar o sentido [Sinn] do sem sentido [Unsinn].
Se é que se pode falar ainda em filosofia alemã, o que a distingue das demais? Onde o senhor vê diferenças com relação a pensadores europeus e norte-americanos?
Não, uma filosofia alemã já não existe mais. Isso, graças a Deus, já é passado. O conceito de filosofia alemã remete hoje somente ao idealismo alemão (Kant, Fichte, Hegel etc.), uma tradição que naturalmente continua a ser preservada em meu país. Até demais, pro meu gosto.
Por outro lado, e aí eu vejo uma grande diferença em relação aos colegas norte-americanos, pode ser uma vantagem não se orientar apenas pela "mais nova tendência das neurociências" e ignorar os conhecimentos dos filósofos antigos só porque nada mais se sabe sobre eles. O problema é que alguns dos melhores filósofos alemães ainda escrevem em alemão e simplesmente nem existem no mundo da atual lingua franca, que é o inglês.
A Alemanha ainda é a terra da Filosofia?
Não.
Como o seu trabalho se diferencia do de outros filósofos alemães?
Eu sou um filósofo analítico e meus principais campos de atuação foram as filosofias da comunicação e da linguagem. Eram áreas trabalhadas também por muitos colegas, mesmo antes de a Filosofia da Mente [que avalia fenômenos psicológicos de processos cerebrais] ter se tornado moda na Alemanha.
No entanto, uma especialidade minha é a chamada Filosofia Aplicada (Angewandte Philosophie). Não apenas a Ética Aplicada, que de fato tem uma natureza prática, mas também algo como a Teoria da Linguagem Aplicada.
Remeto, mais uma vez, às diferenciações que fiz entre a semântica e a pragmática do conceito de "terrorismo". Ou sobre minhas tentativas de esclarecimento analítico de conceitos como "danos colaterais", "direito de existência de um Estado X, Y ou Z", "intimidação bem-sucedida" [erfolgreiche Abschreckung] etc. Não são termos filosóficos, mas conceitos de combate [Kampfbegriffe] do arsenal de beligerância semântica.
Se tentarmos avaliar tais conceitos como aprendemos a avaliar conceitos como "liberdade", "causalidade", "verdade", entre outros, as diferenciações obtidas podem ser muito esclarecedoras.
Para ilustrar, costumo fazer uma comparação de impacto: é como se alguém, a fim de remediar os danos causados por uma lavagem cerebral político-midiática, se submetesse voluntariamente a outra lavagem cerebral terapêutica (filosófica). Este tipo de filosofia eu pratico não apenas nas salas de aula, mas também na sociedade. Claro que, com isso, não faço apenas amigos.
Vejo numa tal Filosofia Aplicada – na qual aplicados são os métodos, não os resultados – um importante instrumento contra a constante deseducação da população pelos meios de comunicação. Por isso, considero meu trabalho inserido na tradição do Iluminismo.
O senhor leciona Ciência da Cognição e Antropologia Filosófica. A seu ver, a Filosofia precisa de outras disciplinas ou mesmo das artes para ousar algo novo?
Eu não acredito que a filosofia dependa de outras disciplinas, sem as quais se tornaria inoperável. Mas certamente seria tolo ignorarmos o conhecimento de outras disciplinas.
Gostei de você ter mencionado também as artes. De fato, elas são a melhor – e mais profunda – maneira de ampliarmos a imagem que temos de nós mesmos e também de entender melhor a imagem que os outros fazem deles mesmos. Aprender a ver o mundo sob uma nova perspectiva através da arte é uma experiência maravilhosa, por mais que algumas vezes dolorosa.
No seu livro mais recente, o senhor trata, entre outros temas, da guerra e do terrorismo. A Alemanha se envolveu na chamada “guerra contra o terrorismo” no Afeganistão. O senhor acredita que esse envolvimento trará problemas no futuro?
Isso não será um problema apenas no futuro, mas já é um problema no presente. A população alemã é majoritariamente contra o envolvimento das Forças Armadas no Afeganistão. Não há uma justificativa convincente para esse envolvimento. Todos os objetivos alegados teriam sido mais bem alcançados – pelo menos em longo prazo – sem guerra. Até mesmo generais americanos veem o problema dessa forma: cada afegão morto gera dez novos opositores. A única questão que interessa é por que o fim de uma guerra que não se pode vencer e à qual a maioria da população se opõe continua sendo tabu para o governo alemão?
O Brasil tentou ser, juntamente com a Turquia, um mediador na disputa nuclear entre Irã e Estados Unidos. Apesar do esforço brasileiro, o Conselho de Segurança da ONU impôs novas sanções contra o Irã. Em sua opinião, quem estava certo: o governo brasileiro ou o Conselho de Segurança?
Está mais do que claro que o governo brasileiro agiu certo. Todo mundo sabe que o atual Conselho de Segurança tornou-se obsoleto, um vestígio de tempos passados, e hoje contradiz o espírito da Carta das Nações Unidas. Diante dessa problemática, o Brasil e a Turquia falaram muito mais do que os EUA a esta que é frequentemente designada como a "comunidade internacional".
Onde o senhor vê a América do Sul nesta moderna ordem mundial?
Na visão de mundo que até há pouco ainda prevalecia e era praticamente dominada pela perspectiva dos Estados Unidos, a América Latina pertencia, assim como o Hemisfério Sul no geral, à periferia. Na nova ordem mundial, essa periferia talvez não se torne ela própria o centro, mas com certeza deixará de ser periferia. A dinâmica do progresso estará situada no sul. Agora só resta esperar que o Sul não cometa os mesmos erros que o Norte cometeu.
Depois de minha primeira estada na América do Sul em 1991 (especialmente no Brasil), a região desde o começo me pareceu muito mais viva – e, com isso, mais promissora – que os países do Norte. Eu, por exemplo, preferiria viver em Salvador a em Detroit.
Entrevista: Pedro Proscurcin Jr.
Revisão: Rodrigo Rimon
Revisão: Rodrigo Rimon
Fonte: DEUTSCHE WELLE
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