Roberto Mangabeira Unger
Ao contrário das democracias européias, as tres maiores democracias do mundo -- a Índia, os Estados Unidos e o Brasil -- compõem-se majoritariamente de crentes em Deus. Em todas as tres, é crucial a relação entre religião e política. Em todas as tres, essa relação representa tema desgostoso para as elites do dinheiro e da cultura.
Tratemos de fazer diferente da Índia e dos Estados Unidos. Na Índia, a democracia contemporânea mais vibrante, religião e política misturam-se como maneiras convergentes de expressar as aspirações mais poderosas; não se confunde lealdade aos princípios republicanos com tentativa de isolar a política da religião. O mal é que a abertura da fronteira entre religião e política tem servido na Índia para insuflar ressentimentos sectários e violentos: embate de temores as vezes substitui concurso de esperanças.
Nos Estados Unidos, as convicções religiosas também influem decisivamente nos posicionamentos políticos. O dogma constitucional, porém, é fechar a fronteira entre religião e política e tratar religião como matéria apenas privada. Há tabu contra a crítica religiosa das religiões dos outros. Cada um pode esconder-se atrás de um escudo, dizendo: aqui não mexa; é minha religião, sem expor-se a luta aberta de formas de consciência. O resultado é empobrecer imensamente a experiência religiosa e política dos americanos.
E o Brasil? A vida política do povo brasileiro é pobre, mas sua vida religiosa é rica. Trava-se hoje entre nós conflito desconhecido de formas de fé. Surge nova cultura de auto-ajuda e de iniciativa. Seu maior protagonista social é uma classe média de emergentes, que desenvolve, longe da política, exemplos de vida que representam a antítese daquela mistura de subjugação e de doçura -- aquela sentimentalização das trocas desiguais -- que marcou a sociedade brasileira tradicional. Cultúam o esforço e a responsabilidade individuais ao mesmo tempo que revelam pendor para as práticas de associação. Abraçam uma fé que dispensa intermediários entre Deus e a humanidade e que insiste no sacerdócio de todos. Procuram uma teologia de sacrifício e de libertação que não se esgote em sectarismo de esquerda. Avançam tanto por obra do movimento evangélico quanto por meio de uma tentativa, ainda sem voz ou doutrina, para reconstruir o catolicismo brasileiro.
Que maneira de ligar religião e política convém a um povo de crentes que vive tais transformações? Comprometamo-nos com uma república laica. Evitemos partidos políticos confissionais, instrumentos de igrejas. Ampliemos o espaço republicano no qual cidadãos de convicções divergentes possam conviver e cooperar. Não confundamos, porém, república laica com privatização da religião. Nossa construção nacional exige confronto vigoroso de concepções do mundo -- em política e em religião, em discurso secular e em discurso profético.
Ao contrário dos Estados Unidos, derrubemos as muralhas entre política e religião que cerceiam o aprofudamento do debate nacional e que impedem a mobilização declarada -- e portanto também sujeita a crítica e a confronto -- da energia religiosa na vida pública. Ao contrário da Índia, ponhamos tais muralhas abaixo sem transigir com ódios, confiando em nossa capacidade, repetidamente demonstrada, para combinar diversidade com tolerância. Construindo uma república que não exija de seus cidadãos calar em público sobre as coisas mais importantes, daremos liberdade a nós mesmos e exemplo para a humanidade.
19 de dezembro de 2005
Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nessa coluna. www.law.harvard.edu/unger
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