Por Rui Martins
Berna (Suiça) - Quando tomei o trem para me encontrar com o teólogo Hans Kung (em alemão com trema no u), na cidade de Tubingen, via Zurique e Horb, tinha digerido um volumoso livro com mais de 700 páginas. Em alguns dias, minhas anotações e orelhas lhe deram uma feição de livro batido e envelhecido.
O título – Memórias, uma Verdade Contestada, uma foto de Hans Kung, ele sim um intelectual idoso de 82 anos, mas lúcido, vivo e de hábitos bem suíços, nascido que foi em Lucerna. Mal cheguei em sua casa, que é também sede do seu Instituto de ética planetária, já nos sentamos para a entrevista que gravei no meu digital mini-disk profissional, para evitar qualquer dúvida depois da publicação.
A quase íntegra ocupa uma página no Expresso, deste sábado, jornalão semanário de Lisboa. O título – O grande problema é o celibato dos padres, com um sobretítulo – teólogo reformador diz que é urgente agir. Kung queria que falássemos só do conteúdo do livro, respondi que para isso não precisaria ter viajado mais de quatro horas. Aceitou, me deu um máximo de 45 minutos, que acabaram sendo mais de uma hora e disparei – a Igreja ainda tem um futuro ?
Hans Kung é um teólogo contestador que se poderia também dizer provocador. Não foi proibido de falar, como aconteceu com o nosso Leonardo Boff, mas há vinte anos, a Cúria romana lhe tirou o direito de ensinar a teologia católica na Universidade de Tubingen. Naquela época não se falava em pedofilia, mas num dogma duro de se engolir, mesmo para um teólogo católico apostólico romano – o da infalibilidade papal. Kung escreveu um livro contestando, lembrando que, no primeiro milenário cristão, isso não existia, mas que o absolutismo da Igreja veio bem depois.
Ao lhe aplicar a punição, a Igreja pensava ter aplicado uma pena inquisitorial capaz de silenciar o irreverente e reduzi-lo a um padre anônimo. Nada disso aconteceu. Kung recebeu o apoio dos estudantes, do governo alemão revoltado com a intromissão do Vaticano numa de suas universidades e até de teólogos protestantes, não só alemães mas de todo mundo. Deixou de ensinar teologia, mas a universidade criou a cadeira de ecumenismo e, enquanto o novo professor de teologia católica ficava com a classe às moscas, as aulas de Kung eram disputadas, ainda mais por já não terem um cunho confessional.
Durante a entrevista, Kung lembrou-se dos brasileiros que encontrou durante o Segundo Concílio do Vaticano, convocado pelo Papa João XXIII, para uma grande reforma na Igreja; Paulo Evaristo Arns, Aloísio Lorscheider, Helder Câmara e Sérgio Mendes Arceu.
Em pouco tempo, logo depois da morte de João XXIII e a eleição de Paulo VI, a Cúria Romana reassumiu o controle da situação e todas as reformas foram esquecidas, cometendo-se ainda outros absurdos como a encíclica contra os anticoncepcionais, justamente quando as mulheres descobriam a pílula. A chegada do polonês João Paulo II foi ainda mais contundente, acentuando o reacionarismo, fundamentalismo e o mediavelismo de uma Igreja, hoje rejeitada pelo jovens e cedendo rapidamente terreno aos evangélicos na América Latina.
O livro de Hans Kung conta com pormenores a época em que Joseph Ratzinger, convidado por Kung, veio também lecionar em Tubingen. Ambos despontavam como jovens teólogos da Igreja, porém, pouco a pouco foram se distanciando ideologicamente a ponto de estarem, hoje em posições opostas.
O Papa Bento XVI nada tem a ver com o jovem Ratzinger que também participou com Kung dos encontro do Vaticano II. A Igreja Católica de hoje vive num impasse e para sobreviver precisa rever alguns de seus dogmas e posições, como o celibato clerical, o absolutismo Papal e sua pretensa infalibilidade, o dogma da assunção de Maria, a questão dos anticoncepcionais, sua posição diante do ecumenismo e o próprio papel da mulher dentro da Igreja.
Kung argumentou num artigo no jornal Le Monde que o celibato clerical criou problemas no clero católico e é uma das principais causas da pedofilia dentro da Igreja e das instituições dirigidas pela Igreja. Enfim, a Igreja – segundo ele – tem ainda seu futuro mas os bispos e os fiéis precisam agir, durante este Papado, ou na eleição do próximo Papa, a fim de se retornar aos princípios do Vaticano II.
Resumindo, a hora é grave para a Igreja, que insiste em não querer ver o mundo no qual vivem seus fiéis. Muitos bispos não estão dispostos a continuar aceitando os escândalos, mesmo se o Vaticano substituiu todos os cardeais e bispos reformadores por reacionários não só no Brasil mas em todo mundo.
Rui Martins - Sobre o autor: Ex-correspondente do Estadão e da CBN, após o exílio na França. Autor de O Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre a Suiça e Maluf. Criou os Brasileirinhos Apátridas e propôs o estado dos Imigrantes. Vive na Suiça, colabora com os jornais portugueses públicos e expressos.
Fonte: A Hora
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Hans Küng (Sursee, 19 de março de 1928) é um teólogo suíço, filósofo, professor de teologia, escritor e sacerdote católico romano.
Küng estudou teologia e filosofia na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roi. Foi ordenado sacerdote em 1954. Continuou a sua educação em várias cidades européias, incluindo SorbonneParis. Sua tese doutoral foi "Justificação: A doutrina de Karl Barth e uma reflexão católica". em
Em 1960, Küng foi nomeado professor de teologia na Universidade Eberhard Karls em Tübingen, Alemanha. Juntamente com o seu colega Joseph Ratzinger (futuro Papa Bento XVI), foi apontado como perito pelo Papa João XXIII como consultor teológico para o Concílio Vaticano II.
No final da década de 1960, Küng iniciou uma reflexão rejeitando o dogma da Infalibilidade Papal, publicada no livro Infallible? An Inquiry ("Infalibilidade? Um inquérito") em 18 de janeiro1970.
Em conseqüência disso, em 18 de dezembro de 1979, foi revogada a sua licença pela Igreja Católica Apostólica Romana de oficialmente ensinar teologia em nome dela, mas permaneceu como sacerdote e professor em Tübingen até a sua aposentadoria em 1996.
Em 26 de setembro de 2005, ele e o Papa Bento XVI surpreenderam ao encontrar-se para jantar e discutir teologia.
Küng defende o fim da obrigatoriedade do celibato clerical, maior participação laica e feminina na Igreja Católica, retorno da teologia baseada na mensagem da Bíblia.
Obras publicadas
- Structures of the Church (1966) (ISBN 0824505085)
- Infallible? An Inquiry (1971) (ISBN 0385184832)
- Why Priests? (1972) (ISBN 0006430155)
- On Being A Christian (1977) (ISBN 038519286X)
- Does God Exist? An Answer For Today (1980) (ISBN 08245-1119-0)
- Eternal Life? (1984) (ISBN 1592442099)
- Why I Am Still a Christian (Woran man sich halten kann) (1987) (ISBN 0567291340) (the title of the English translation echoing Russell's essay Why I Am Not a Christian)
- Paradigm Change in Theology (1989) (ISBN 0567094944)
- Reforming the Church Today. Keeping Hope Alive (1991) (ISBN 0567095789)
- The Church (1992) (ISBN 0860121992)
- Yes to a Global Ethic (1996) (ISBN 0334026334)
- A Global Ethic for Global Politics and Economics (1997) (ISBN 0334026865)
- Women in Christianity (2002) (ISBN 0826456863)
- Tracing the Way. Spiritual Dimensions of the World Religions (2002) (ISBN 0826456839)
- The Catholic Church. A Short History (2002) (ISBN 1842124943)
- Der Anfang aller Dinge. Naturwissenschaft und Religion (2005) (ISBN 3492047874)
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