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domingo, 20 de março de 2011

Reconstruída, mesquita iraquiana gera conflito de interesses imobiliários


Religião e setor imobiliário travam disputa por aglomerado de antigas casas e ruas de pedra tortuosas próximas ao templo xiita, onde moram cerca de 1.500 pessoas




The New York Times

O templo de Askariya, na cidade de Samarra, foi destruído em 2007 por insurgentes iraquianos (Getty Images)


"O que está acontecendo agora é um desafio para o povo. Se eles tomarem esta área, a economia de Samarra irá morrer. Creio que um dia a cidade irá explodir em protestos depois de sofrer por tanto tempo"

Omar Mohammed Hassan, chefe do conselho da cidade de Samarra

A mesquita no centro da antiga cidade de Samarra, outrora um epitáfio bombardeado para o afundamento do Iraque na guerra civil, agora é proclamada como um símbolo de sua cuidadosa recuperação. Cinco anos depois de um bombardeio insurgente destruir parcialmente o templo e gerar ondas de assassinatos sectários, seu domo de concreto reconstruído paira como uma lua baixa sobre a cidade. Dois novos minaretes estão envoltos por andaimes. Com a drástica redução da violência por aqui e em todo o país, multidões de peregrinos voltam a rezar no templo Askariya, um dos locais mais sagrados do Islã xiita.

Mas no Iraque, até mesmo histórias de renascimento não são tão claras. E esta, que está na intersecção entre a religião e o setor imobiliário, reacendeu antigas suspeitas e divisões sectárias numa cidade onde as brigas nunca deixaram de existir por completo. A atual disputa está centrada num aglomerado de antigas casas e ruas de pedra tortuosas próximas ao templo xiita, onde cerca de 1.500 pessoas, a maioria delas sunitas, vivem e trabalham há várias gerações.

Enquanto Samarra se reconstrói, planejadores e empreiteiras ligadas ao governo central iraquiano, de liderança xiita, começam a imaginar um novo e reluzente centro da cidade ladeando o templo, com novos hotéis, parques, restaurantes e estacionamentos para servir 1 milhão de peregrinos que visitam o local todos os anos. "O plano para melhorar a mesquita é demolir tudo ao seu redor", disse Mohammed al-Mashqor, membro do parlamento iraquiano e de um comitê que lida com questões religiosas e locais sagrados. "Será uma grande área de entretenimento e turismo."

Alguns dos moradores sunitas da região consideram seu patrimônio em risco. Eles dizem que a Fundação Xiita, um conselho iraquiano que supervisiona os templos xiitas do país, tem feito generosas ofertas financeiras aos donos das casas, com o objetivo de obter o controle da velha cidade. "O que está acontecendo agora é um desafio para o povo", declara o chefe do conselho da cidade de Samarra, Omar Mohammed Hassan. "Se eles tomarem esta área, a economia de Samarra irá morrer. Creio que um dia a cidade irá explodir em protestos depois de sofrer por tanto tempo".

A remodelação da área ainda está em seus estágios iniciais, mas representa uma questão problemática, que ecoa em cidades etnicamente divididas e bairros segregados entre sunitas e xiitas: enquanto o Iraque se reconstrói após anos de guerra e estagnação, quem irá traçar os planos?

O templo Askariya, construído no ano de 944, é reivindicado por fiéis xiitas e pelos sunitas de Samarra. Para a multidão de peregrinos que chega de ônibus ao Iraque, vindos do Irã, trata-se do local onde foram enterrados dois dos 12 imãs do Islã xiita, destino espiritual que só perde para as cidades sagradas de Najaf e Karbala. Os peregrinos são pilar da economia da cidade e uma rica fonte de renda para donos de hotéis, lojas e negócios na área central. "Esta antiga vila é a verdadeira Samarra, o centro de Samarra", disse o xeque e líder tribal KhatanYehiyaal-Salim. "Estão querendo mudar a aparência desta área".


Getty Images

Membros da Unesco, que deu a Samarra o status de um dos três Patrimônios da Humanidade do Iraque, disseram que tentam negociar um acordo entre o governo central e as autoridades provinciais para equilibrar a preservação e o desenvolvimento. Al-Mashqor, membro do parlamento, disse que a Fundação Xiita planeja passar os próximos três anos comprando casas e lojas num raio de 198 metros ao redor da mesquita, para então começar as obras no bairro.

Ele afirmou que a expansão e a modernização eram essenciais para acomodar mais peregrinos e revitalizariam a cambaleante economia de Samarra. A Fundação Xiita já aumentou o preço de oferta das casas para incentivar as pessoas a vender, oferecendo mais que o dobro ou o triplo do valor que as casas tinham alguns anos atrás, de acordo com moradores. "Sabemos que alguns não querem vender suas casas", disse al-Mashqor. "Mas com dinheiro todos se convencem". O parlamentar relata que 80 casas foram compradas.

Dhia Abdul Rahman, 53 anos, disse ter agarrado uma oferta de quase 400.000 dólares por seu decadente imóvel. "Tenho seis filhos, todos desempregados", ele relata. "Com esse dinheiro, posso sustentá-los".

Hoje, as pessoas que moram à sombra da mesquita lamentam algo que, segundo elas, está ficando no passado. Embora a reconstrução do templo já tenha avançado bastante, os moradores relembram os dias antes de as bombas destruírem seu domo dourado, em fevereiro de 2006, e seus minaretes em junho de 2007. Contam sobre os tempos anteriores aos muros antiexplosão e às revistas, quando passeavam diante da mesquita, visitavam o local antes de casamentos e levavam os corpos antes de funerais.

Os moradores do bairro trabalharam no local há muito tempo, servindo comida e varrendo o chão no final do dia. "É muito doloroso para nossa história", disse Mustafa Abedal-Mounem, 36 anos, um corpulento estudioso do Corão que mora bem próximo ao templo. "Perdemos vizinhos, perdemos o bairro e perdemos a proximidade com os imãs".

Al-Mounem, descendente de plantadores de laranja e cultivadores de palmeiras, mora numa casa de oito cômodos construída por seu trisavô, numa terra que pertencia a sua família antes mesmo de o Iraque existir como país. Segundo ele, por 400 anos seus ancestrais moraram no mesmo bairro, observando impérios, líderes, golpes e invasões se desenrolarem como redemoinhos no rio Tigre. Ele diz estar determinado a ficar, mas acredita ser esforço predestinado ao fracasso. "Esta é a terra dos meus avós", disse. "Eu serei o último".

Fonte: VEJA

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