Várias
décadas de distanciamento histórico foram necessárias para que, com
extremada relutância, nossas elites atrasadas (ressalto a autocrítica
de Afonso Arinos na Constituinte de 1988, já no ocaso de uma bela vida),
pudessem conhecer a justa medida da importância da chamada ‘era Vargas’
na construção do Brasil moderno e das bases de um Estado que, hoje,
caminha para a conquista de sua soberania e do respeito internacional.
Este texto vale como ressalva às minhas limitações na avaliação do
governo de centro-esquerda inaugurado em 2003, e com o qual tenho a
honra de colaborar. Destaco uma só de suas inumeráveis virtudes, o
projeto de uma nação desenvolvida, apoiado em crescimento sustentável e
inclusivo, sustentável porque inclusivo, pois a inclusão é o cerne
moral de nosso humanismo: a dignidade do indivíduo e a cidadania, a
liberdade na igualdade de direitos e oportunidades. Ela é um fim em si
mesmo, de cuja efetivação decorre tudo o mais. Deste ponto de vista o
crescimento nacional é apenas desdobramento, relevante, mas apenas isso,
uma consequência, um instrumento da realização humanística.

'O
que os princípios republicanos exigem de todos os poderes é a abertura
de todas as caixas-pretas, a máxima transparência, e o dever de prestar
contas à cidadania' . Foto: Douglas Fernandes/Flickr
Este avanço, nos planos político e objetivo, é fundamental, mas não
encerra a história toda, pois o ciclo de governos de centro-esquerda
deve ao país a reforma do Estado. Se realizá-la é propósito sem
viabilidade, pelo menos chamar a sociedade para discuti-la é possível, e
para isso ainda há tempo, pois não se pode ignorar os obstáculos que o
mundo real muitas vezes apresenta para contestar a vontade. Não por
outra razão administrar é a arte de eleger prioridades, ou adversários a
serem enfrentados. Os adversários que podem ser enfrentados. A guerra,
como a política, uma de suas variantes, depende muito pouco do
voluntarismo do comandante, e muito mais da correlação de forças entre
as tropas que comanda e as que enfrentará.
Certamente por isso e tão-só por tal razão nosso governo não
intentou, até aqui, a reforma do Estado. (Poderia haver escrito ‘reforma
política’, mas a expressão foi desmoralizada ao ser confundida pelo
Congresso e pela imprensa ligeira com ‘reforma eleitoral’.)
É que em nosso país há ainda possessões inexpugnáveis, como, para
citar apenas duas montanhas, o latifúndio que atrasa por séculos a
reforma agrária e o monopólio dos meios de comunicação (um Estado dentro
do Estado). Pervardindo toda a sociedade, e pano de fundo de todo o
atraso, há ainda os interesses do grande capital e da miopia
regionalista, que impedem, por exemplo, a reforma do nosso iníquo
sistema tributário. A classe dominante fala muito e tão-só no excesso
nominal de tributos e em sua carga, a qual sonega com a competência de
seus contadores-advogados-auditores, quando o cerne da questão é a
infâmia de o rico e o paupérrimo pagarem o mesmo imposto sobre o arroz
que consomem, e o Imposto sobre a Renda incidir quase que exclusivamente
sobre os rendimentos dos assalariados. Falar em imposto progressivo
eriça os cabelos dos rentistas da Avenida Paulista. Igual heresia,
digna da pena do fogo eterno, é mencionar a ‘democratização dos meios de
comunicação’, ou, simplesmente, reclamar do Congresso Nacional a
instituição do Conselho de Comunicação Social, determinada pelo art. 224
da Constituição.
As óbvias e portentosas dificuldades políticas de levá-la a cabo não
diminuem a necessidade de empreender a mais profunda reforma do Estado
brasileiro, visando à sua democratização e à democratização de seu fim,
que deve estar associado à retomada do papel indutor-desenvolvimentista
destruído pelos muitos anos da irresponsabilidade neoliberal. Quanto a
esta, não me refiro apenas à ‘privataria’, mas ao ataque promovido à
essência do Estado, desconstituindo-o, dele retirando os meios de ação e
gerência, e legando-nos como herança, maldita, uma estrutura
burocrática infuncional, até aqui intocada, embora todos, à direita e à
esquerda, reclamem do Estado ‘que não faz’, sem considerar que há um
Estado, ainda mais poderoso, montado para impedir que o Estado
encarregado do fazer faça alguma coisa.
O pano de fundo da resistência a qualquer reforma ou inovação,
limitando o fazer dos governantes, é o corporativismo, presente em todos
os setores da vida pública, do mais distante sindicalismo ao mais
presente e nocivo, perverso e poderoso de todos eles, o
corporativismo do Judiciário, um Judiciário olímpico, majestoso e
autoritário, ensimesmado, arcaicamente monárquico, e por isso mesmo sem
disposição para a transparência que a República requer de todos os
Poderes, de todos os agentes públicos, de todos os seus funcionários.
Esse desprezo pelos bons costumes republicanos está retratado no
lamentável episódio da inexplicável resistência à ação fiscalizadora do
Conselho Nacional de Justiça. Rejeição que vem de longe, pois é de
sempre a recusa do STF a qualquer controle externo. Esse estranho apego à
irresponsabilidade ou ao extremado corporativismo – privilégio
indefensável que os militares também reclamam para si, isto é, o
viciado julgamento inter pares — já era defendido pelo Ministro Carlos Velloso em artigo no Correio Braziliense de 13/02/2004, do qual extraio significativo parágrafo:
“Sete ministros do Supremo Tribunal, Maurício Corrêa, Sepúlveda
Pertence, eu próprio, Marco Aurélio, Gilmar Mendes e Cezar Peluso,
concluímos que o Conselho deve ser integrado por magistrados. Pertence
vai mais longe: admite a participação de advogados e membros do
Ministério Público. Nós sustentamos que a participação dos
advogados ocorrerá mediante representações e manifestações junto ao
Conselho. E, quanto ao Ministério Público, sua presença será
imprescindível, mas na condição de custos legis, fiscal da lei e da Constituição.”
Ou seja, controle externo, jamais.
Mas o que a sociedade deseja, o que os princípios republicanos exigem
de todos os poderes, do Legislativo, do Executivo e do Judiciário é a
abertura de todas as caixas-pretas, a máxima transparência, e o dever de
prestar contas à cidadania.
Fonte: CARTA CAPITAL
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