Cinema e espectáculos
Estocolmo
O último filme de Ruben Östlund suscitou viva polémica
na Suécia. Porque os protagonistas – negros pobres e brancos da classe
média – jogam com os preconceitos do público para melhor os pôr em
causa.
Antes de ir ver o filme Play,
tinha lido alguns comentários que me transmitiram a impressão de que
Ruben Östlund pretendia lançar um debate sobre o racismo, e não ficar à
espera, para ver se este surgia por si mesmo.
Pensei que isso representava um desejo, que me irritava, de criar o
acontecimento. Depois de ter visto o filme, a minha opinião é que esse
debate não tem razão de ser. Play é obviamente um filme
antirracista. Contudo, hoje, compreendo o motivo por que Ruben Östlund
preferiu tomar a iniciativa. O debate sobre o racismo era inevitável.
Um ódio decorrente dos preconceitos
Play conta a história de um grupo de adolescentes
pertencentes a classes desfavorecidas que se servem dos preconceitos de
que são alvo (são negros) para roubar filhos de boas famílias, perdidos
na grande cidade. Os ladrões jogam com os preconceitos das suas vítimas e
o realizador com os preconceitos do público, ao ponto de ser difícil
saber que partido tomar.
No início do filme, eu estava do lado dos jovens dos subúrbios – meio
de que eu próprio sou oriundo – mas arrefeci um pouco, quando eles
atacaram um dos seus. E, depois, fiquei com pena daqueles frágeis filhos
de boas famílias e sustive a respiração por eles, até à cena em que um
pai da classe média se permite espancar o agressor do filho,
explicando-lhe porque o faz.
Ao meu ver, esse pai não é diferente daqueles que lançaram
abaixo-assinados para exigir a exclusão de Zlatan [Ibrahimović] do Malmö
FF, um incidente referido por várias vezes por este futebolista na sua
autobiografia [o jogador, filho de pais jugoslavos e nascido na Suécia, é
um dos melhores jogadores da equipa nacional]. Foi ao assistir a essa
cena que perdi o meu self-control e me deixei dominar por um
ódio irracional contra aquela classe, um ódio decorrente dos meus
preconceitos. Foi nesse momento que deixei de "jogar".
E é precisamente por isso que Play é um filme exemplar.
Apresenta-nos todos os nossos preconceitos e há um momento – que se
verifica mais ou menos cedo, consoante os indivíduos – em que o "jogo"
chega necessariamente ao fim. Os preconceitos residem no olhar do
espetador e Ruben Östlund dá-nos a liberdade de escolher o momento em
que carregamos no botão do stop ou do play.
Retrato de uma sociedade de classes cruel
A meu ver, Ruben Östlund é a estrela que há muito faltava no
firmamento do cinema sueco: alguém que segue um caminho próprio no plano
artístico, ao mesmo tempo que fala da sua época. Alguém que – apesar da
acusação esperada de racismo – ousa retratar uma sociedade de classes
cruel, na qual suecos roubam suecos.
Em meu entender, o filme fala sobretudo das classes, um tema que, ao
contrário do que se passa em relação ao racismo, poucas pessoas querem
abordar. Todos os adolescentes do filme falam sueco e nunca se fala de
raça ou origem étnica – critérios que tão facilmente permitem catalogar
um grupo em função da sua origem mas não da sua classe social: em vez de
vermos suecos sem um tostão e sem esperança, vemos negros. O debate
sobre as classes sociais torna-se étnico, ao ponto de, cada vez com
maior frequência, as desigualdades serem analisadas pelo prisma da
origem étnica e não pelo da classe social.
A antestreia do filme na Suécia realizou-se no Backateatern, no
bairro de Hisingen, em Gotemburgo, e o público refletia o espantoso melting-pot
que é a Suécia de hoje. Tudo menos branca e altiva. O filme ficou em
cartaz para as escolas de Gotemburgo, cujos habitantes são originários
de 200 países, e esteve na origem de debates sobre a pobreza, o medo, a
segregação e o ódio.
Portanto, Ruben Östlund conseguiu precisamente aquilo que alguns dos
seus detratores o acusam de não ter feito: assumiu as suas provocações e
exibiu o filme perante jovens que nunca tinham ido ver um filme de arte
e experimental.
Polémica
“Provocação” para enfrentar problema
Play, o filme que conta a história de uns jovens
negros que tentam roubar telemóveis a uns jovens brancos, suscitou
inúmeras reações na imprensa sueca.
No Dagens Nyheter, há um crítico que lamenta que Ruben
Östlund não dê ao espetador a possibilidade de ver as coisas na
perspetiva do ”outro” e se limite a ”reforçar a ideia de uma Suécia onde
um ‘nós’ implícito é reforçado contra um ’estrangeiro’ bem definido”.
Pelo contrário, considera um outro crítico
no mesmo jornal, o filme evita precisamente modelos de explicações
fáceis: ”Quem se encontra numa situação de superioridade e quem é
oprimido – e porquê – continua a ser uma questão em aberto e flexível.”
Para o Aftonbladet, Ruben Östlund é “um realizador ‘arty’ que faz provocações sem verdadeiramente assumir essa responsabilidade”.
O cineasta, por seu turno, mostra-se contente no Dagens Nyheter
pelo facto de o seu filme “contemplar um assunto sobre o qual muita
gente desvia o olhar e [que] é uma boa maneira de a pessoa se confrontar
com a questão, mesmo havendo outros pontos de partida para a discutir”.
Ruben Östlund inspirou-se nos roubos cometidos por adolescentes negros
em Gotemburgo e entrevistou autores e vítimas. Explica que
o que mais o impressionou ao falar com os jovens autores destes delitos foi terem já, numa idade tão jovem, interiorizado completamente a imagem estigmatizante do negro. Assumiram-na de uma forma consciente para criarem um sentimento de ameaça implícito na concretização dos roubos.
Fonte: PRESSEUROP
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