O trabalho de doméstica como existe hoje vai acabar. A transição será difícil. Mas as famílias brasileiras – todas – deveriam celebrar a mudança
Algumas horas do início de 2012, a advogada paulistana Silvia
Hauschild, mãe de dois filhos, se preparava para a ceia de Ano-Novo,
tranquila. Ela confiava na ajuda que receberia de uma diarista, mas
estava errada: sem nenhum aviso, a empregada faltou. “Tínhamos
convidados para a ceia e para um churrasco no dia 1º e, de repente,
fiquei na mão”, diz Silvia. O imprevisto que aconteceu com a advogada na
entrada de 2012 poderia ser explicado apenas como um acidente de
percurso, mas não. Ele faz parte de um quadro muito maior, que marca a
entrada do mercado de trabalho brasileiro no século XXI: o sumiço das
empregadas domésticas como existem hoje. A mãe da advogada, de sólida
classe média, tinha empregadas em casa noite e dia. Silvia tem uma
empregada que não dorme em casa e sabe que não pode contar
indefinidamente com ela. Nos próximos anos, essa personagem, que já foi
onipresente nas casas brasileiras de maior renda, vai simplesmente
deixar de existir, ao menos da forma como a conhecemos. O fenômeno não
ocorrerá de forma rápida nem será o mesmo em todas as regiões do país,
mas já está em curso em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte ou
Porto Alegre e é inevitável que se espalhe. Por causa dele, os lares
brasileiros terão de mudar.
Essa mudança gigantesca está sendo movida por três fatores simultâneos:
a melhor distribuição de renda regional, o crescimento da economia e a
escolarização da população, que está causando uma espécie de revolução
cultural. A questão regional é fácil de entender. Com o aumento de renda
no Nordeste, secou a fonte de fornecimento de empregadas baratas. As
meninas que antes vinham trabalhar em casas de família no Sudeste podem,
agora, trabalhar com famílias de classe média de sua região ou arrumar
outro tipo de emprego, sem migrar. O crescimento da economia, por sua
vez, fez com que as moças que trabalham de empregada no Sudeste tenham
alternativas de emprego e carreira. Podem escolher entre o trabalho
doméstico e as atividades que pagam melhor ou oferecem mais horizontes.
Por fim, a revolução cultural: tendo ido à escola, as jovens brasileiras
simplesmente não querem mais trabalhar na casa dos outros, um fenômeno
que já ocorreu em outros países. O trabalho doméstico carrega um estigma
social e uma intrínseca falta de expectativas profissionais, problemas
difíceis de compensar com mero aumento de salário. Quem pode escolher
prefere não trabalhar na casa alheia, mesmo que seja para ganhar menos.
A transformação demorou a chegar. O Brasil se acostumou à abundância de
trabalho doméstico ao longo de quase 200 anos. Mesmo antes da abolição
da escravidão, em 1888, moças de todas as raças migravam do campo para
as cidades, a fim de trabalhar para famílias mais ricas, escapar da
pobreza e aumentar a chance de encontrar um bom marido. Eram enredadas
em relações de caráter dúbio, meio de trabalho, meio familiar, num
novelo de padrinhos, madrinhas, agregados e favores. As moças recebiam
normalmente abrigo e comida em troca de dar “ajuda” nos trabalhos da
casa, como explica a economista Hildete Pereira de Melo, da Universidade
Federal Fluminense (UFF), que há 20 anos estuda a evolução do emprego
doméstico na história do Brasil. A “ajuda” virou trabalho remunerado na
segunda metade do século XX. Mas esse mercado continuou dependente dos
bolsões de pobreza, da desigualdade de renda entre regiões e do número
de adultos sem instrução. Juntas, essas peças garantiram, até
recentemente, uma oferta constante de pessoas dispostas a migrar para as
capitais, morar na casa alheia e trabalhar por salários muito baixos,
pequenos o bastante para caber no bolso da classe média tradicional. Mas
o arranjo faz com que a economia funcione abaixo do grau de eficiência
com que poderia. Uma parcela grande demais de mulheres (17% das que
trabalham) se dedica ao serviço doméstico remunerado. Ele pode parecer
precioso para quem conta com uma empregada eficiente e de confiança, mas
produz pouco para a sociedade, não incentiva o estudo (também por causa
das jornadas de trabalho imprevisíveis) e tolera a informalidade – não
paga impostos nem forma poupança para a aposentadoria de quem trabalha.
Trata-se de uma estrutura danosa para a economia. Nos últimos anos, ela
começou a ruir.
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