Perfil

Advogado - Nascido em 1949, na Ilha de SC/BR - Ateu - Adepto do Humanismo e da Ecologia - Residente em Ratones - Florianópolis/SC/BR

Mensagem aos leitores

Benvindo ao universo dos leitores do Izidoro.
Você está convidado a tecer comentários sobre as matérias postadas, os quais serão publicados automaticamente e mantidos neste blog, mesmo que contenham opinião contrária à emitida pelo mantenedor, salvo opiniões extremamente ofensivas, que serão expurgadas, ao critério exclusivo do blogueiro.
Não serão aceitas mensagens destinadas a propaganda comercial ou de serviços, sem que previamente consultado o responsável pelo blog.



quarta-feira, 16 de junho de 2010

Mais uma bizarria religiosa - A erguedela - Culto ao falo

A "erguedela" do Pinheiro de S. João (Fareja)
Quem vive atento neste interior beirão não lhe passa despercebida a "costumeira" que, na povoação de Fareja, concelho de Castro Daire, tem lugar anos a fio e que consiste em levantar um pinheiro junto à capela de S. João. Será que esta tradição nada terá a ver com o culto de Adónis e/ou Priapo vindos da Antiguidade?. E quem tinha sido Priapo?

Diligente e sabedora, a musa que inspirou este texto, conhecedora da história do Amor e dos rituais a ele ligados apressou-se a dizer estas palavras aladas:

"Na Grécia, e mais tarde em Roma e em toda a Itália, estava em voga o culto de falo e de Priapo (...) o deus do amor - era representado por uma coluna rematada por um busto e quase sempre ornada com um falo em erecção."

(...)

"Vison mostra sem grande trabalho, que o culto de falo, considerado como sendo o emblema da geração é uma das mais notáveis formas religiosas. Acrescenta que não há nisto nada de obsceno: é uma simples homenagem aos instintos e às necessidades naturais, a indicação de um fenómeno essencial e necessário. Encontra-se por toda a parte, salvo na América, o culto fálico ou vestígios desse culto."

(...)

Desde as primeiras celebrações das Dionisíacas, Plutarco menciona a presença do falo em honra de Baco. Mais tarde, esse carácter erótico acentua-se ainda. Eis (...) a descrição dessas festas:

"À frente avançavam os mystos, compreendendo as bacantes e os iniciados. (...) Depois vinham as anéphoras, jovens virgens que conduziam cestos doirados cheios das primícias de todos os frutos, de flores, de bolos, representando os órgãos genitais masculinos e um falo coroado de flores (...)

Foram os Coribantes, os sacerdotes de Cybele que trouxeram da Frigia para a Etrúria o culto do falo.

(...)

Em Roma o símbolo falo transformou-se no deus Príapo que era representado com um pénis rígido e de dimensões fantásticas. Esse falo era quase sempre de madeira (...) os homens ofereciam a Priapo os primeiros frutos do seu campo e dirigiam-se a ele para que os curasse.

(...)

Um doente explica assim o dom de um ex-voto desse género colocado no templo de Priapo:

Voti solutio

Cur pictum memori sit in tabella
Membrum quaeritis, und procreamur?
Cum penis mihi forte laesus esset
Chirurgique manum miser timerem
Dis me legitimis nimisque magnis
Ut Phaebo, puta, filioque Fhaebi
Curatum dare mentulam verebar

"Perguntais porque se representa em um quadro votivo o membro que nos procriou? Eis a razão: quando o meu pénis estava seriamente danificado e que, por meu mal, receava as mãos do cirurgião, não me atrevi a dirigir-me aos deuses que a medicina consagra, por exemplo: a Apolo e a seu filho Esculápio, porque eles são muito imponentes e parecia-me atrevimento pedir-lhes para me curarem a minha verga".

(...)

Finalmente o falo usava-se também em amuletos. Penduravam-no ao pescoço das crianças e havia falos guarnecidos com asas e com pernas de aves, e até com guisos. No gabinete secreto do museu de Nápoles existe uma grande quantidade de adornos e de utensílios de todas as espécies em forma de falo" (1).

- Compreendo. Sendo assim é bem possível, então, que os mastros de S.João bem possam representar o falo ou o deus Príapo, já que a costumeira de levantar o pinheiro de S. João está rodeada de alguns ingredientes que faziam parte do culto àquele deus pagão. Os jograis, esses...

"intermediários culturais por excelência, insinuando-se com a gazua invisível do canto e da música, para a qual não há portas fechadas, em todas as regiões e em todos os níveis sociais (...) representantes do Diabo e perseguidos pelos membros do clero(2) passaram certamente por aqui, já que "todos os anos no primeiro domingo de Junho, a pequena sineta, suspensa no campanário da capela de S. João de Fareja, convida os habitantes da povoação a juntarem-se no largo que lhe fica em frente a fim de irem cortar o pinheiro que, ali mesmo, se há-de levantar na véspera da festa do Santo.

(...)

As duas mordomas, a da Senhora da Conceição e a da Santa Bárbara, (raparigas solteiras e virgens, pois só nessa qualidade poderão ser mordomas), acompanhadas de outras raparigas e crianças têm o encargo e obrigação tradicional de irem esperar o pinheiro fora da povoação. Indo ao seu encontro, algures, levam com elas um ramo dos primeiros frutos da terra: as cerejas. E também muitas rosas.

(...)

À entrada da aldeia o carro pára. O pinheiro é recebido pelas mulheres com alegria e vinho. Feito o juízo de valor sobre o monstro, comprido e grosso... " mas que grande"... umas dão de beber aos homens e, outras, em coro desconcertado, cantam quadras eróticas alusivas a S. João:

No altar de S. João
Nascem flores amarelas
S. João desceu á Terra
A pedir pelas donzelas

(...)

S. João adormeceu
Dentro de uma canastrinha
Os ratos deram com ele
E roeram-lhe a bandeirinha

(...)

No largo da capela, descascado pelos arrematantes com a ajuda de machados, marretas e pás, o pinheiro, viscoso e nu, espera o dia da erguedela. E este chega na véspera de S. João.

(...)

Os homens, colocadas as cordas em sítio apropriado e orientadas para os lugares convenientes comandam a operação. As mulheres, que nunca põem as mãos no pau, ajudam a levantá-lo puxando as cordas, conjuntamente com outros homens até que é dada por finda a "erguedela".

(...)

Erecto e volumoso ali passará o solstício do Inverno e aguardará o solstício do Verão, o mesmo que há-de trazer o seu substituto"

(...)

Pode dizer-se que a parte profana da Festa de S. João tem por centro o pinheiro. Festa na descida do velho, festa na erguedela do novo. É à volta deste que tem lugar o "arraial" e se salta a fogueira, outrora consumidora de rosmaninho recolhido atempadamente por rapazes e raparigas, namorados, ou em vias de se namorarem.

(...)

Se se perguntar a qualquer morador a razão de tudo isto ter-se-á por resposta que "é tradição, que sempre foi assim".

(...)

Preocupado com a significação das coisas é bem diferente o posicionamento do estudioso. Ele não se contenta em descrevê-las, mas procura explicá-las. E na via da explicação e do entendimento, faz perguntas, relaciona dados, formula hipóteses, interroga-se sem descanso. E nesta sua deambulação ... pode ser bem ou mal sucedido, pode encontrar ou não resposta certa e acabada para as interrogações que se pôs, mas nada fica como dantes, em bruto, sem explicação alguma, mesmo que essa explicação possa ser apenas uma de entre outras. E isto bem pode ser aplicado ao caso vertente do "pinheiro de S.João".

Sendo a erguedela do pinheiro uma tradição com raízes que se distendem pelo subterrâneo dos tempos, pergunta-se que símbolo é este que se levanta no adro, qual menir de madeira, numa verticalidade que não dobra e resiste aos ventos, nevadas e temporais?

(...)

Excluída a liturgia religiosa da festa, componente insubstituível da parte profana, há que buscar o seu significado e a sua razão de ser e estar no campo semântico que aqui, em Fareja e na generalidade das terras do País, envolve as festas de S. João. Somos herdeiros da cultura greco-latina. Não há humanista que se preze que não levante esta bandeira, que não se regozije de tal herança. E no testamento da História constam como herdados, goste-se ou não do legado, restos de antigos rituais pagãos que a cristianização não conseguiu expurgar de todo.

No S. João do Porto "o tradicional, verdejante e viril alho porro, emblemático das festividades solsticiais, onde se surpreendem ritos e mitos ligados à fertilidade" está presente.

Na Grécia e mais tarde Roma (essa cidade tornada País e Império, modeladora da nossa cultura, a diferentes níveis, naturalmente) esteve em voga o culto a Príapo, culto que se espalhou por toda a parte, excepto a América, culto que levava os homens a oferecerem a essa divindade os primeiros frutos da terra.

Ao pinheiro de S. João são também oferecidos os primeiros frutos da terra: as cerejas. E quem faz a oferta sãos as mordomas, solteiras ou virgens, pois só nessa condição podem ser mordomas. À volta do pinheiro se faz o "arraial", onde casados, viúvos, solteiros se entregam à volúpia da dança, se deixam embalar por Eros e até as crianças ensaiam os primeiros passos com o sexo oposto, em extravagante reinação. Por todo o País aparecem mastros de S. João a marcar de modo idêntico o lugar da festa e à volta deles, no largo ou no adro, longe ou perto do templo, o povo dança até ao esgotamento.

(...)

E no meio de tudo isto, neste ambiente profano, licencioso e mágico, sobressai altaneiro, erecto, o pinheiro de S. João, qual Priapo disfarçado a vigiar pela saúde e fertilidade, substituído todos os anos depois de perder o viço. A tradição é tradição e quando um seca, vergastado pelas intempéries, logo outro se levanta cheio de cio. Núcleo da festa, atracção de novos e velhos, de vizinhos e forasteiros, dele emanam as forças da vida, nele se espelha o ciclo da Natureza e, por certo, rejeitadas (disfarçadas) que foram, como convinha, as formas e o volume identificadores, ele representa para as comunidades cristãs o que Príapo representou paras as comunidades pagãs de antanho que, além de lhe prestarem culto público, o traziam ao peito como amuleto"(1).

O "Catálogo da Exposição Histórica no Âmbito do V Centenário dos Descobrimentos Portugueses" elaborado por Rainer Daehnhardt, presidente da S.P.A.A., exposição que teve lugar na cidade de Tomar no ano de 1988, contava com alguns exemplares de "pénis romanos em bronze". Os números 512 a 528 desse "Catálogo" eram assim legendados: "como símbolo de felicidade e fertilidade era bastante frequente não somente usarem-se pequenos pénis em bronze como amuletos, mas também de pendurar os mesmos nas janelas das casas. Datam entre o século I antes e o IV depois de Cristo".

- Ah! Os pagãos penduravam ao pescoço o pénis fundido em ouro e os cristãos penduram medalhas, medalhinhas, crucifixos, santos e santinhas, figas e tantos outros amuletos que, também um dia bem poderão ser remetidos para um qualquer gabinete secreto como aconteceu com os adornos e os falos referidos.


Lembremos, contudo, a última décima de um poeta popular, José da Costa Pinto, natural de Cetos, concelho de Castro Daire, escrita lá pelos anos cinquenta, referindo-se à cruz onde Cristo deu o último suspiro:

Muitos veneram a cruz
mas não aquele madeiro
Em que padeceu Jesus
Como Cristo verdadeiro.
Pois o que a muitos seduz
É uma cruz ao pendurão
Que ao pescoço no cordão
Trazem como seu tesouro
E é a isso, ao metal, ao ouro
Que eles fazem adoração (2).

Nenhum comentário: