por Serge Latouche - Le Monde Texto Um
Para o Vaticano, o capitalismo, o lucro, a mundialização, a exploração da natureza, a exportação de capital, o mercado financeiro, o crescimento e o desenvolvimento não são grandes problemas. A dificuldade atual da humanidade estaria “apenas no excesso”
A economia segundo a Igreja
O uso da “política do oximoro” pelos governos de países ocidentais tornou-se sistemático1. O oximoro, figura de retórica em que duas noções contrárias aparecem justapostas, permite aos poetas sentirem o indizível e expressarem o inexpressável.
Na boca dos tecnocratas, serve, sobretudo, para produzir equívocos grosseiros. A burocracia do Vaticano não escapa à regra; podemos inclusive dizer que foi ela quem inaugurou esse tipo de linguagem. A Igreja tem, de fato, uma longa tradição na prática de antinomias: dos hereges queimados vivos “com amor”, passando pelas cruzadas, até outras “guerras santas”. Agora, Bento XVI nos dá um exemplo atual em relação à economia na encíclica Caritas in veritare.
Aos olhos de certos religiosos como Alex Zanotelli, Don Achille Rossi, Don Ciotti, Raimon Panikkar, sem esquecer a “demoníaca” Teologia da Libertação, assim como aos de intelectuais como Ivan Illich ou Jacques Ellul, a sociedade atual, que preza pelo crescimento, é condenável por sua perversidade intrínseca e não por eventuais desvios.
O Vaticano, no entanto, não compartilha essa visão. O capitalismo, o lucro, a mundialização, a exploração da natureza, a exportação de capital, o mercado financeiro, o crescimento ou o desenvolvimento não são problemáticos para a Igreja; a dificuldade residira “apenas no excesso”.
O que chama a atenção é a predominância da doxa (crença) econômica sobre a doxa evangélica. A economia, invenção moderna por excelência, é apresentada como uma essência que não pode ser questionada. “A esfera econômica não é neutra do ponto de vista ético, nem inumana ou antissocial por natureza” (p. 57). Dessa afirmação, pode-se concluir que a esfera econômica pode ser boa apesar de tudo, de modo que a mercantilização do trabalho não é denunciada nem condenada. Paulo VI ensinava que “todo trabalhador é um criador” (p. 65). Isso vale também para a caixa de supermercado? A afirmação parece nos perguntar: “trabalhar é destino?”. Há algo nessa linha de pensamento que soa como o humor involuntário e sinistro de Stalin, que dizia: “Com o socialismo, o trabalho fica mais leve”.
A encíclica de Bento XVI é um exemplo gritante de desenvolvimentismo. Aliás, a palavra “desenvolvimento” aparece 258 vezes em 127 páginas, ou seja, uma média de duas vezes por página. Trata-se de uma perspectiva humanista: desenvolvimento de “casa pessoa”, “pessoal”, “humano” e “humano integral”, “verdadeiramente humano”, “autêntico”, “de todo homem e de todos os homens” e até “um autêntico desenvolvimento humano integral” (p. 110). Vê-se que o bem-estar social foi incorporado, assim como a necessidade de uma “solução adequada aos graves problemas socioeconômicos que afligem a humanidade” (p. 7). Esse entusiasmo não escapou aos partidários do papa, que não economizam argumentos em seu favor. “O ‘desenvolvimento humano integral’ é o conceito fundamental de toda encíclica, utilizado pelo menos 22 vezes para ampliar o conceito tradicional ‘dignidade humana’”, sublinha a universitária britânica Margaret Archer, membro da Academia Pontifical de Ciências Sociais2.
É possível observar inclusive a fetichização/sacralização dessa ideia: “Se o homem (…) não tivesse uma natureza destinada à transcender, (…) seria possível falar em aumento ou evolução, e não em desenvolvimento”. O desenvolvimento do povo é considerado, assim, uma “vocação”. “O evangelho constitui um elemento fundamental do desenvolvimento”, pois revela o homem a si mesmo. Tudo com o respaldo do papa Paulo VI, cuja encíclica de 1967, Populorum progressio, já dizia: “hoje, os povos da fome interpelam de maneira dramática os povos da opulência” (p. 24) – referência do papa à famosa fórmula de seu predecessor: “o desenvolvimento é o novo nome da paz”.
Contrariamente às palavras infelizes de Paulo VI, no entanto, o desenvolvimento não é o novo nome da paz e sim da guerra: guerra pelo petróleo ou por recursos naturais em vias de desaparecimento. Desde sua origem, o crescimento econômico e o desenvolvimento foram empreendimentos agressivos: guerra contra a natureza, guerra contra a economia de subsistência, chamada por Ivan Illich de “vernácula”.
Muito antes de o presidente estadunidense Eisenhower explicitar o complexo militar-industrial em torno da guerra, ela já havia se tornado símbolo do desenvolvimento na substituição de carroças por tratores, de pesticida por gás de combate e adubos químicos por explosivos.
Fonte: liberdadereligiosa.org
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